sábado, 17 de junho de 2023

Os cossacos


Os cossacos foram uma casta especial de soldados russos que, desde o século XVI, viviam nas fronteiras sul e leste do império, em comunidades autogovernadas nas regiões do Don e do Kuban ao longo do rio Terek, no Cáucaso, na estepe de Oremburgo e, em povoados estrategicamente mais importantes, perto de Omsk, do lago Baikal e do rio Amur, na Sibéria. Esses guerreiros pouco se distinguiam das tribos tártaras das estepes orientais e do Cáucaso, de quem realmente podem ter descendido. Cossaco é uma 
palavra turcomana que significa cavaleiro. Tanto os cossacos como os tártaros exibiam grande coragem em defesa da sua liberdade; ambos tinham ternura e espontaneidade naturais; ambos amavam a boa vida. Gogol enfatizou o caráter “asiático” e “sulista” dos cossacos ucranianos no conto “Taras Bulba”; na verdade, usou esses dois adjetivos de forma intercambiável. Num texto relacionado - “Um olhar sobre a formação da Pequena Rússia” - isto é, a Ucrânia.

Os cossacos são um povo ao mesmo tempo europeu e asiático no modo de vida, nos costumes e modo de vestir. São um povo em que duas partes opostas do mundo, dois espíritos opostos estranhamente se reúnem: prudência europeia e abandono asiático; simplicidade e esperteza; uma forte noção de atividade e amor ao ócio; um impulso para o desenvolvimento e a perfeição e, ao mesmo tempo, um desejo de parecer desdenhoso de toda a perfeição. Gogol tentou vincular a natureza dos cossacos às ondas periódicas de migração nómada que varreram a estepe desde os hunos na antiguidade. Ele defendia que só um povo enérgico e belicoso como os cossacos seria capaz de sobreviver na planície. Os cossacos cavalgavam à moda asiática pela estepe. Precipitavam-se com a “rapidez de um tigre ao sair dos esconderijos quando lançavam um ataque”. Tolstoi, que conhecera os cossacos quando oficial do exército, também dizia que eles tinham uma costela asiática. Em "Os Cossacos", 1863, mostrou com detalhes etnográficos que os cossacos russos, do lado norte do rio Terek, tinham um modo de vida praticamente indistinto das tribos das colinas chechenas no lado sul do mesmo rio.

Lermontov era um aguarelista talentoso e, num autorretrato, ele se pinta com uma espada bem segura na mão, o corpo envolto numa capa caucasiana e um estojo de cartuchos usado pelos homens das tribos da montanha preso à frente do uniforme da Guarda. Essa mesma identidade mista, meio russa, meio asiática, foi atribuída por Lermontov a Pechorin, protagonista de "O herói do nosso tempo". Inquieto, cínico e desiludido com a alta sociedade de São Petersburgo, Pechorin sofre uma transformação ao ser transferido, como oficial da Guarda, para o Cáucaso. Apaixona-se por Bela, filha de um chefe circassiano, aprende a sua língua turcomana e usa roupas circassianas para declarar o seu amor a ela. Em certo momento, o narrador o compara-o a um bandido checheno. Parece que aí essa era a questão essencial: não havia fronteira clara entre o comportamento dos colonos russos e os atos “bárbaros” das tribos asiáticas.

Lermontov não foi o único russo a adotar o Cáucaso como seu “lar espiritual”. O compositor Balakirev foi outro “filho das montanhas”. O fundador da “escola de música russa” vinha de antiga linhagem tártara e se orgulhava dela, a julgar pela frequência com que posava para retratos com roupas caucasianas. Em Os circassianos”: não conheço roupa melhor do que a do circassiano. 
Rimski-Korsakov descreveu Balakirev como “meio russo e meio tártaro no seu caráter”.  Os recursos musicais que Balakirev usou vinham principalmente do acervo de “sons orientais” — escalas cromáticas sensuais, ritmos de dança sincopados e harmonias langorosas que visavam evocar o mundo exótico de prazer hedonista que o povo do Ocidente associava havia muito tempo ao Oriente.  Esse elemento oriental foi um dos marcos da escola de música russa desenvolvida pelos kuchkistas — o “poderoso punhado” (kuchka) de compositores nacionalistas que incluía Balakirev, Mussorgski, Borodin e Rimski-Korsakov. 

Para Stassov, a importância da característica oriental da arte russa ia bem além da decoração exótica. Ela era uma comprovação do facto histórico de que a Rússia descendia das antigas culturas do Oriente. Stassov acreditava que a influência da Ásia era “manifesta em todos os campos da cultura russa: na língua, na vestimenta, nos costumes, na construção, na mobília e nos utensílios quotidianos, em ornamentos, em melodias e harmonias e em todos os contos de fadas”. Stassov começou a delinear a discussão da sua tese sobre a origem da ornamentação russa durante a década de 1860. Ao analisar os manuscritos medievais da Igreja russa, ele vinculou a ornamentação das capitulares a motivos semelhantes (losangos, rosetas, suásticas, padrões quadriculados e certos tipos de desenhos florais e animais) da Pérsia e da Mongólia. Encontravam-se motivos comparáveis em outras culturas de Bizâncio nas quais a influência persa também era marcante; mas, enquanto os bizantinos tinham tomado emprestado somente alguns ornamentos persas, os russos adotaram quase todos.

Havia, por exemplo, semelhança fora do comum na imagem ornamental da árvore que, segundo Stassov, estava vinculada ao facto de que tanto os persas quanto os russos pagãos tinham “idealizado a árvore como culto sagrado”. Em ambas as tradições, a árvore tinha base cônica, uma espiral em torno do tronco e galhos nus com flores magnoliáceas na ponta. A imagem aparecia com frequência em rituais pagãos do culto da árvore, que, como Kandinski descobrira, ainda era encontrado no povo komi nas últimas décadas do século XIX. Stassov a encontrou até como o tronco caligráfico da letra “Б” (“B”) num evangelho de Novgorod do século XIV, no qual um homem se ajoelha em oração ao pé de uma árvore. Aí está uma ilustração perfeita da mistura complexa de elementos asiáticos, pagãos e cristãos que forma as principais tendências da cultura folclórica russa.


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