terça-feira, 4 de novembro de 2025
Realismo na geopolítica
Na geopolítica só há interesses, a moral não é para aqui chamada. O equilíbrio da ordem mundial só aceita um no poder hegemónico. Nesta ótica, as nações não agem por valores, mas por interesses de poder e sobrevivência, e a moral é uma camada retórica aplicada a posteriori, para justificar ou tornar aceitável o que, na prática, é determinado pela necessidade estratégica. A ordem mundial tende sempre para um centro de gravidade, seja unipolar (como o mundo pós-Guerra Fria com os EUA), seja bipolar (como na Guerra Fria), seja multipolar (como parece emergir agora). Em cada caso, a estabilidade depende de um equilíbrio de forças, e esse equilíbrio raramente é mantido com “mãos limpas”.
O caso do Chile de Pinochet (1973) ilustra bem essa lógica de “realpolitik”. Para Washington, o risco de um Chile comunista sob Allende – aliado potencial de Moscovo e Havana – era inaceitável num continente que os EUA consideravam parte da sua “esfera natural de influência” desde a Doutrina Monroe. A alternativa “moralmente preferível” (manter Allende, respeitando o voto popular) cedia diante da lógica estratégica: o medo do contágio ideológico na América Latina. Assim, a CIA apoiou o golpe de Pinochet, com pleno conhecimento de que instauraria uma ditadura brutal. Mas do ponto de vista da racionalidade geopolítica americana, a operação foi um “sucesso”: o Chile não se tornou comunista, e a influência soviética foi contida. É o mesmo raciocínio que explica os apoios da URSS a regimes igualmente despóticos no Leste Europeu e em África. Tudo em nome do equilíbrio global.
Em suma, a moral individual não tem o mesmo estatuto na política internacional. Os Estados não têm amigos; têm interesses. O equilíbrio global é quase sempre assegurado por meios “sujos”, porque as potências agem sob a pressão de não poderem permitir que a outra parte vença. O que fica em aberto é talvez o ponto filosófico mais interessante. É saber se essa lógica é inevitável ou se apenas reflete o estado atual de consciência política da humanidade. Ou seja, será possível uma ordem mundial estável sem cinismo e sem violência estrutural, baseada numa racionalidade cooperativa?
Os EUA e a China seguem duas racionalidades civilizacionais diferentes. A chinesa é estratégica e paciente, moldada pelo confucionismo e pelo pensamento de Sun Tzu. A americana é mais emocional e moralizante, proveniente da influência liberal/democrática. De facto, Xi Jinping encarna algo que raramente se vê hoje no Ocidente: uma visão de longo prazo, com uma teleologia imperial clara, não messiânica, mas civilizacional. O seu poder não depende de ciclos eleitorais, de sondagens ou de sensibilidades mediáticas. Ele age num horizonte de décadas, e essa paciência é herdeira direta da sabedoria confucionista: o equilíbrio, a hierarquia, o autocontrolo, a espera do momento propício. O Ocidente, pelo contrário, mergulhou numa lógica que poderíamos chamar “damasiana” ou “golemaniana”, ou seja, guiada por uma inteligência emocional que valoriza a empatia, a inclusão, a expressão individual e os direitos sentimentais, muitas vezes à custa da frieza estratégica. Esta cultura emocional democrática, que é bela num plano humano, torna-se vulnerável no plano geopolítico: reage a choques momentâneos, moraliza tudo, e perde a coerência estrutural.
Xi, ao contrário, joga com o tempo e a coerência. A China cresce com calma e método, infiltrando-se nas cadeias de produção, nos portos, nas comunicações, nos minerais estratégicos e nas instituições multilaterais. É um poder de soft domination mascarado de cooperação, mas profundamente racional e paciente. E há, ainda, um paradoxo irónico: enquanto o Ocidente se torna emocionalmente hiperconsciente e eticamente fragmentado, a China toma estrategicamente o poder mundial. A questão de fundo é: será que o liberalismo ocidental, impregnado dessa inteligência emocional democrática, pode sobreviver como força hegemónica num mundo em que a racionalidade fria e impessoal da civilização confucionista começa a dominar o jogo global? Ou, dito de outra forma: o Ocidente não estará a perder precisamente porque humanizou demasiado a sua política, enquanto o Oriente a manteve como arte da sobrevivência e da paciência?
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