segunda-feira, 4 de março de 2024

A questão da historicidade bíblica





Do ponto de vista histórico, a historicidade da Bíblia é encarada de um modo diferente das pessoas que, de um ponto de vista religioso, a tomam como uma narrativa verdadeira tal como se se tratasse de um livro histórico. A História 
é uma disciplina que lida com o estudo de vestígios e documentos de épocas pretéritas tendo por vista pensar, interpretar e reconstruir o passado. A Bíblia é um livro considerado sagrado por diversas denominações religiosas. Por séculos foi vista como um documento derivado diretamente da inspiração divina, e por isso o que ela narrava era tido como verdade inquestionável, e mesmo suas narrativas puramente "históricas" eram consideradas relatos fidedignos do que acontecera no passado. Não importava, então, o contexto cultural, político e social em que havia sido escrita, uma vez que o estudo deste livro estava limitado ao debate teológico, moral e doutrinal.

Mas à medida que a civilização ocidental foi caminhando com o desenvolvimento do método científico para se aproximar da verdade de um modo mais fidedigno, certas passagens dos textos, designados como canónicos, a sua veracidade passou a ser questionada. A crítica historiográfica baseada na abordagem científica ganhou força quando uma série de descobertas, entre elas o deciframento da escrita hieroglífica egípcia, em 1822, e o deciframento da escrita cuneiforme acadiana, em 1857, complementado pelas pesquisas sistematizadas dos arqueólogos, passou a vir à luz do dia muta informação que até aí estava escondida do conhecimento moderno. E foi assim que a Bíblia deixou de ser um documento exclusivo das exegeses teológicas para passar a ser estudada segundo o método da ciência histórica das universidades.

Desde então, muito do seu conteúdo histórico passou a ser encarado como fazendo parte do domínio do mito, lenda e alegoria. Além disso, há muitas contradições internas e larga porção está baseada em alegações de milagres e intervenções divinas, aspeto que não tem nada de científico.  Hoje os livros da Bíblia são tratados como documentos iguais a quaisquer outros, devendo ser lidos criticamente e comparados com outras fontes (textuais, arqueológicas, epigráficas, etc.), para distinguir-se o que têm de informação valiosa para elucidar alguns factos e eventos e entender como a tradição religiosa e cultural da região se articulou e desenvolveu, e o que não é confiável, possuindo elementos fantasiosos, tendenciosos e de redação tardia em relação aos factos narrados.

É claro que toda esta abordagem tem implicações mais amplas do que o mero exercício erudito, se considerarmos o que ainda hoje se passa no Médio Oriente por causa das reivindicações que os fundamentalistas religiosos fazem em Israel pela posse de terra na Palestina. Hoje, a história antiga, tem de ser feita com os contributos da crítica textual, dos registos arqueológicos e a comparação de fontes diferentes para a sua reconstrução. Philip Davies, por exemplo, entende que os textos bíblicos são necessários para se reconstruir uma história do pensamento israelita. William G. Dever, Israel Finkelstein e Amihai Mazar fornecem análises sobre os interesses ideológicos e o contexto social, cultural e político que influíram na redação. Para Mario Liverani a história de Israel se divide entre uma história "normal", construída a partir de uma diversidade de fontes, entre elas as arqueológicas, e uma história "inventada", a forma como os redatores bíblicos reinterpretaram o passado.

Por conseguinte, a questão de considerar a Bíblia como um documento histórico é complexa e frequentemente discutida. A Bíblia é certamente um texto antigo que contém relatos de eventos e figuras históricas, mas a sua historicidade varia de acordo com diferentes contextos e relatos. A Bíblia menciona várias figuras e eventos que são corroborados por evidências históricas fora das Escrituras. Por exemplo, figuras como os reis David e Salomão, bem como eventos como o cativeiro da Babilónia, têm confirmação histórica em registros arqueológicos e escritos de outras fontes antigas.
Por seu turno, a interpretação da historicidade bíblica muitas vezes depende do contexto em que os eventos são colocados e das interpretações dos estudiosos. Alguns eventos podem ser interpretados literalmente como históricos, enquanto outros podem ser vistos como mitos, lendas ou parábolas com significados simbólicos.

A Bíblia foi escrita por várias pessoas ao longo de séculos, com diferentes propósitos e perspectivas. Isso pode influenciar a forma como os eventos são relatados e interpretados. Alguns autores podem ter usado linguagem figurativa ou simbólica para transmitir mensagens espirituais ou teológicas, mesmo ao descrever eventos históricos. Ao longo dos séculos, a Bíblia passou por várias edições e traduções, o que pode introduzir variações nos relatos históricos. Erros de tradução ou interpolações podem afetar a precisão histórica de certos textos. Certos eventos e personagens bíblicos é apoiada por evidências arqueológicas e fontes históricas externas, mas nem todos os eventos bíblicos têm confirmação externa.
Ainda que a Bíblia contenha narrativas que envolva figuras que realmente existiram, e eventos históricos que tenham acontecido, a sua historicidade carece sempre de confronto com outros elementos externos que os contextualizem.

Seja como for, é importante notar que a discussão sobre a veracidade da narrativa bíblica é complexa e multifacetada, envolvendo interpretações teológicas, históricas, arqueológicas e científicas. As visões sobre a Bíblia variam significativamente entre diferentes tradições religiosas e indivíduos, e há um amplo espectro de opiniões sobre o assunto. Veja-se, só para dar um exemplo, o caso de Pedro. Há quem defenda que é uma lenda inventada no século III. O que é da narrativa canónica da Igreja é que Pedro, o apóstolo Pedro, viveu em Roma entre 42 e 67 desta era. Por exemplo, Ralph Woodrow, no livro Babilónia, relata que o Novo Testamento diz que ele foi para Antioquia, Samaria, Jope, Cesareia e outros lugares menos Roma. Em 42, no tempo de Herodes Agripa, esteve detido em Jerusalém. Entre 49 e 50 esteve com Paulo em Jerusalém. Pedro exerceria o apostolado entre os judeus e Paulo entre os gentios (Gálatas 2.7,9,10). Depois apareceu em Antioquia, onde Paulo lhe resistiu frontalmente (Gálatas 2.11). E no ano 55 é mencionado como "evangelista itinerante" (1Coríntios 9.5). Neste período, evangelizou o Ponto, a Galácia, a Capadócia, a Ásia, a Bitínia e Babilónia. Anos 61 a 63 - Paulo esteve preso em Roma por 2 anos, mas nunca Pedro o visitou. Na Segunda Epístola a Timóteo, escrita na prisão, no ano 63, Paulo queixou-se dos discípulos e amigos que se ausentaram: "Só Lucas está comigo". Pedro devia estar na Babilónia, de onde escreveu a sua Primeira Epístola (1Pedro 5.13). Em 67 Pedro escreveu as suas epístolas. Não há nenhum sinal da sua presença em Roma.

Por fim, faço aqui uma breve referência, de passagem, aos célebres Apócrifos da Bíblia. Os apócrifos bíblicos são uma coleção de textos religiosos que foram escritos durante o período intertestamentário, entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, e que não foram incluídos no cânone bíblico judaico ou protestante, mas que são reconhecidos por algumas denominações cristãs, como a Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa Oriental e algumas denominações protestantes. Esses textos incluem livros como Tobit, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (também conhecido como Sirácida), Baruque, 1 e 2 Macabeus, além de acréscimos aos livros de Ester e Daniel, entre outros. Os apócrifos são considerados parte do cânon bíblico por algumas tradições cristãs, mas não por outras.

As razões para a exclusão dos apócrifos do cânone judaico e protestante variam, mas geralmente incluem considerações como a falta de reconhecimento pelos líderes religiosos da época, questões doutrinárias e canónicas, além de dúvidas sobre a autenticidade e autoridade desses textos. No entanto, os apócrifos são considerados valiosos por algumas denominações cristãs por sua contribuição para a compreensão da história e teologia judaico-cristãs, bem como por seu valor devocional e espiritual. A Igreja Católica, em particular, considera os apócrifos como parte do cânone bíblico e os inclui em suas versões da Bíblia. É importante notar que o reconhecimento dos apócrifos varia entre as diferentes tradições cristãs, e suas opiniões sobre esses textos podem diferir significativamente.


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