quarta-feira, 6 de março de 2024

A Espanha 1931/36 antes da Guerra Civil 1936/39





A Segunda República na Espanha era de fundação recentíssima, pois datava apenas de abril de 1931. Tinha sido obra da esquerda e era fundamentalmente rejeitada por quase toda a direita, cada vez mais extremada contra o socialismo, visceral e generalizado. A aversão à esquerda se inseria com facilidade na trama de valores católicos ferrenhos que caracterizavam grande parte da Espanha provinciana e que a direita tinha incorporado à sua imagem da nação espanhola. Essa hostilidade era secundada, naturalmente, pelos membros das tradicionais elites dominantes, os que mais tinham a perder no caso da ascensão do temido regime socialista — os proprietários de terras, os grandes industriais, a Igreja católica e, em especial, setores significativos da oficialidade do Exército. O poder dessas elites vinha caindo, mas ainda se mantinha intacto. Derrubar a república usando de força era uma opção. Afinal, a ditadura de Primo de Rivera só acabara alguns anos antes, em janeiro de 1930, e o golpe militar há muito que ocupava o seu lugar na política espanhola. Em março de 1936, os generais espanhóis conspiravam para tentar outra vez derrubar um governo eleito.

O fracasso da esquerda na França começou a ser eclipsado pela tragédia muito maior, que foi a derrota da esquerda na Espanha. Com muito apoio popular e os recursos do Estado à sua disposição, a esquerda espanhola se dispunha a lutar para defender o regime republicano. No entanto, estava seriamente debilitada por terríveis divisões faccionais, conflitos destrutivos e dissensões ideológicas, a que se sobrepunham separatismos regionais mais vigorosos do que em qualquer outra parte da Europa Ocidental (sobretudo na Catalunha e no País Basco, regiões relativamente desenvolvidas do ponto de vista económico). Ainda mais lesiva para a esquerda era a antiga e profunda polarização da sociedade espanhola. Muito mais do que na França, um abismo separava os agrupamentos ideológicos da esquerda e da direita na Espanha. As lealdades republicanas não eram tão arraigadas como na França.

O triunfo da esquerda socialista e republicana nas eleições de 1931 foi um fenómeno efémero. Em novembro de 1933, quando houve novas eleições, a direita tinha recuperado as forças. A esquerda sofreu uma derrota para uma coligação de direita liderada por Alejandro Lerroux, que se tornou primeiro-ministro. Os dois anos seguintes puseram fim, e em muitos casos subverteram, os modestos avanços sociais feitos desde a fundação da república. Para a esquerda, esse período foi o biénio negro, de crescente ameaça fascista e forte repressão.

Desmantelada a coligação de direita governante, derrubada por escândalos financeiros e discórdias políticas, novas eleições foram convocadas para fevereiro de 1936. Nesse intervalo, a esquerda formara uma Frente Popular, coligação eleitoral de republicanos (cujos eleitores pertenciam basicamente à classe média) e socialistas — as duas maiores forças —, apoiada, com graus variados de entusiasmo, por comunistas, separatistas catalães e sindicatos socialistas e anarquistas.

Apuradas as urnas, a Frente Popular obteve uma vitória histórica. O governo, formado apenas por republicanos, era fraco desde o começo. Os socialistas, eles mesmos desunidos, recusaram-se a participar. O partido estava dividido entre sua ala reformista, chefiada pelo moderado Indalecio Prieto, e a Unión General de Trabajadores, cada vez mais revolucionária, liderada por Francisco Largo Caballero, que adorava ser chamado de “o Lenine espanhol”, designação que lhe foi dada pela imprensa soviética. O Movimento Juventude Socialista, assim como a organização sindicalista, também viam o futuro em termos de uma revolução em grande escala, e não de reformismo fragmentário. Eram evidentes os atrativos do Partido Comunista, que ainda era pequeno, mas crescia depressa.

O governo começou a restaurar as mudanças sociais e económicas, libertou presos políticos, expropriou latifúndios e devolveu a autonomia à Catalunha (prometendo o mesmo aos bascos). Entretanto, o controlo do país ia escapando. Camponeses pobres e trabalhadores agrícolas ocuparam grandes propriedades no sul da Espanha. Ocorreram greves em centros urbanos. Os incêndios de igrejas — símbolos da mão opressora da Igreja Católica — tornaram-se mais comuns do que em 1931 e alimentaram a propaganda da direita. Foram numerosos os assassinatos, cometidos tanto pela esquerda como pela direita. As posições iam-se extremando dos dois lados. A Falange, antes uma pequena facção da direita, viu-se de repente ganhando novos filiados, muitos deles pertencentes ao movimento de juventude da Confederação Espanhola da Direita Autónoma (CEDA), que apoiava uma posição antirrepublicana mais agressiva do que a defendida por muitos membros mais velhos do partido. Enquanto isso, sem que o governo percebesse, a conspiração fermentava.

Alguns comandantes do Exército, entre eles Franco, tinham aventado um golpe logo depois da eleição. Entretanto, o momento não era propício, e eles preferiram observar e esperar. Na tentativa de neutralizar possíveis problemas causados pelos militares, o governo afastou Franco da chefia do Estado-Maior e deu-lhe um comando nas ilhas Canárias. O general Emilio Mola, sabidamente hostil à república (e, na verdade, o principal instigador do golpe planeado), também foi posto fora de cena. Surpreendentemente, porém, Mola foi trazido de volta de um comando no Marrocos espanhol e posto à frente de uma guarnição em Pamplona, no norte da Espanha — de onde poderia forjar vínculos fortes com figuras que apoiavam o golpe de forma clandestina. Alguns falangistas foram presos, mas teriam sido capazes de levar adiante seus planos mesmo na cadeia. Mas o governo, em sua fraqueza, tomou poucas medidas além dessa para evitar problemas.

O putsch teve início no Marrocos espanhol e nas Canárias, em 17 de julho de 1936, e se espalhou para o território continental da Espanha nos dois dias seguintes. Os conspiradores contavam com um golpe rápido e a imediata tomada do poder pelos militares, mas logo ficou evidente que isso não iria acontecer. Em algumas áreas, unidades militares e grande parte da população apoiaram os rebeldes. A nomeação de três primeiros-ministros em dois dias foi um sinal claro de que o governo estava em pânico. Mola sentiu-se confiante o suficiente para rejeitar um pedido de trégua. Em outros lugares, porém, o Exército e a polícia se mantiveram leais à república, embora com frequência fizessem jogo duplo. Em Madrid, Barcelona e San Sebastián, no País Basco, trabalhadores pegaram em armas. Em questão de dias, a Espanha estava completamente dividida, tanto quanto estivera na eleição de fevereiro.


O leste e o sul do país mantiveram-se, de modo geral, ao lado dos republicanos. Entretanto, os rebeldes conseguiram avanços rápidos no Sudoeste, no Oeste e em grande parte da área central do país. Do ponto de vista militar, as forças da república e as dos rebeldes eram bastante equivalentes; as mais importantes áreas industriais ainda estavam nas mãos do governo. Até mesmo nas aldeias as pessoas tomavam partido: esquerda ou direita, a república ou o fascismo. A espiral de violência não parava de crescer. Já nos primeiros dias, registaram-se atrocidades infames dos dois lados. Nas áreas que dominaram, os rebeldes mataram ou executaram sumariamente grande número de pessoas. Não há como determinar a quantidade exata de mortes, mas com certeza chegaram a milhares. Do lado republicano foram comuns atos de violência contra partidários da sublevação ou inimigos de classe. Houve acerto de contas. A aplicação da “justiça revolucionária” em tribunais improvisados levou a numerosas execuções. O clero foi alvo de violências hediondas. Mais de 6 mil religiosos — sacerdotes, monges e freiras — foram assassinados, enquanto se queimavam igrejas e se destruíam imagens religiosas. O golpe já se estava transformando numa guerra civil em grande escala, embora não houvesse um vencedor claro à vista.

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