sábado, 9 de março de 2024

Como todos os regimes do passado, as democracias também se desfazem



O nacionalismo - que começou por ser uma extraordinária ideia cívica e emancipadora em finais do século XVIII, e durante grande parte do século XIX - tornou-se, gradualmente, uma ideologia destrutiva. As duas grandes guerras europeias da primeira metade do século XX, as quais adquiriram dimensão mundial pela influência europeia, mostram bem isso. Hoje, com distanciamento histórico, sabemos que as sementes dessa engrenagem destrutiva estavam lá desde o início do movimento dos nacionalismos. 

A ideia de nação no início foi boa, pois foi libertadora da opressão do Antigo Regime. Pertencer à nação, ser um cidadão nacional, significava ter direitos fundamentais, poder escolher os seus governantes, não ser propriedade de um monarca absoluto, nem estar sujeito à total arbitrariedade de quem governava. Foi assim que o Império da Áustria, mais tarde Austro-Húngaro, e o Império Otomano, desapareceram. Foi assim que em Portugal se depôs a monarquia. Quanto ao Império, o seu desaparecimento só aconteceu muito mais tarde depois de 13 anos de guerra em África desencadeada pelos movimentos de libertação. Agora não é a nação, nem o nacionalismo radical, ao contrário do que muitos julgam, que está a minar a democracia. O que não significa que não persistam movimentos nacionalistas radicais importantes. Há múltiplas instituições e vários mecanismos criados contra o seu ressurgimento, desde logo a União Europeia.

A questão é saber se a ideia de identidade promovida por movimentos de certa intelectualidade académica - à semelhança do que aconteceu no passado com a ideia de nação, originalmente libertadora e emancipadora, a qual se transformou em nacionalismo agressivo - não estará a transformar-se num movimento radical e destrutivo. 
Em termos de movimentos, a teoria pós-colonial abrange o estudo e a análise das obras produzidas tanto em países que foram colonizadores como colonizados. É o exemplo de Edward Said e a sua análise de Joseph Conrad no âmbito das relações entre ingleses e africanos no século XIX.

Há hoje uma ideologia identitária que corre numa grande vaga pelo mundo a partir da América, onde foi criada. É uma ideologia que exacerba uma determinada identidade social e de grupo. Hoje há uma fratura na direita, espaço ideológico onde trava uma verdadeira luta pelo poder. A tradicional fratura ideológica esquerda/direita está a diluir-se para uma coisa diferente, chamemos-lhes de um lado partidos identitários tribais e do outro partidos de causas emergentes. Está a emergir um novo padrão político no qual a esquerda e a direita se confrontam cada vez menos segundo linhas ideológicas clássicas, normais numa democracia pluralista.

As implicações sociais e políticas são vastas e potencialmente destrutivas da coesão social. Há, assim, demasiados sinais que apontam para que a ênfase na identidade, ideia originalmente emancipadora e libertadora da discriminação social e racial, esteja, gradualmente, a transformar-se numa ideologia destrutiva. A democracia que se estruturou a partir da Revolução Francesa, a qual pressupõe uma identidade nacional partilhada, sem tribalismos identitários, está em crise.


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