sexta-feira, 29 de março de 2019

O problema da fé religiosa


O problema da fé religiosa é que a fé se baseia no dogma. E como os dogmas são tenazmente considerados invioláveis, irrefutáveis e não suscetíveis de revisão, levam a que quem está por ela possuída de uma forma fanática, ou como se costuma dizer “fundamentalista”, está disposta a morrer. A fé é aquilo por que morre, mas o dogma é aquilo por que pode inclusivamente matar se for induzida a fazê-lo.

O problema da crença religiosa é que quer no passado como no presente trouxe sempre a todo o lado a guerra, intolerância e perseguição, distorcendo a natureza humana para formas repudiantes. Isto, independentemente do que possa contribuir para o reconforto dos temerosos, quando tomados pelo fanatismo a uma qualquer falsidade, é abraçada até à morte.

Como toda a gente sabe, a fé religiosa é a negação da razão, inclusivamente contra todas as evidências em sentido contrário. Ainda que o conhecimento seja definido como crença, sem a qual não seria possível ter conhecimento, não é suficiente sem que esse estado mental esteja ligado aos factos, simultaneamente verdadeiros e justificados. O conhecimento implica verificação, e depende da existência do tipo certo de relação entre a mente e o mundo. A crença religiosa existe apenas na mente, não se baseando em nada do que existe no mundo.

O ser humano é um ser espiritual, e a espiritualidade é importante, tudo bem. Mas por serem criaturas espirituais não ficaram impedidas de ter ideias e de imaginar e inventar coisas. E Deus, ainda que seja um conceito com muita força, não passa de uma invenção que ao longo da história, desde que foi inventado, se revestiu sempre de muita manigância.

Cada uma das numerosas religiões no mundo conhece a sua própria versão de uma história em que uma ou outra força sobrenatural age sobre o caos para trazer ao mundo a criação e a existência do universo. Para a maioria das religiões, a história da criação é um facto de fé, uma verdade absoluta.

O que é espantoso, e de certa forma misterioso, é ainda alguns cientistas de renome internacional, poucos, conseguirem conviver dentro de si com as contradições entre uma fé religiosa e os seus conhecimentos científicos. À medida que o conhecimento científico progrediu na melhor explicação da origem do universo, permitiu às pessoas em geral não necessitarem de invocar forças sobrenaturais para explicar o mundo. A ciência tem uma grande vantagem, uma vez que trabalha com hipóteses cuidadosas e abrangentes, estando sempre pronta a revelá-las e a revê-las sempre que surgem novos dados sempre dentro de factos e evidências não especulativas, uma vez que é assumida com humildade as nossas limitações no conhecimento de um universo tão complexo e enigmático. Mas a nossa ignorância em relação a uma coisa tão vasta e poderosa não tem necessariamente que nos levar para derivas tão contraditórias com o melhor que a ciência nos pode oferecer, e aceitar a oferta das certezas eternas das religiões que se baseiam apenas em superstições antigas.

quinta-feira, 28 de março de 2019

A ordem ocidental e o colapso do planeta



          A bem dizer, apesar de estar por um fio, ainda vigoram no mundo os princípios básicos do Tratado de Vestefália, 1648, resumidos nos princípios de soberania e de igualdade.
          Tudo começou com os Portugueses quando se lançaram ao mar no século XV, dispostos a fazer o reconhecimento do globo e aperfeiçoar, explorar e “civilizar” as terras às quais chegariam, sobre os povos encontrados. Secundados depois sobretudo por Espanhóis, Ingleses e Holandeses, os europeus imprimiram suas visões sobre religião, ciência, comércio, governo e diplomacia, modeladas pela experiência histórica ocidental, a qual consideravam o ápice da realização humana. Passou então a ser considerada a Era Moderna, com um Ocidente confiante, se bem que truculento e territorialmente dividido.
          Os “Ocidentais” acabaram por revelar as características habituais do colonialismo, uma notável arrogância, deixando transparecer a convicção de que detinham o direito de moldar uma ordem mundial de acordo com suas máximas. Relatos a respeito da China e da Índia adotavam um tom condescendente, definindo a missão europeia como sendo a de educar as culturas tradicionais de modo a elevá-las a níveis mais altos de civilização. Com um número relativamente pequeno de funcionários, administradores europeus redesenharam as fronteiras de nações antigas, ignorando o facto de que esta atitude poderia não ser bem-vinda ou ser considerada anormal e ilegítima. É verdade que os seus melhores elementos tentaram promover uma espécie de método intelectual que encorajasse o ceticismo e um conjunto de práticas que conduziram à ciência que hoje é reconhecida por todos como um “bem universal”, em última instância também contaminou a política ao ponto de serem aceites pela maioria dos países os dois conceitos políticos fundamentais: democracia e direitos humanos.
          Recuando na história, não se pode esconder a prática sórdida da escravidão. E o Ocidente, mais uma vez, produziu o que nenhuma outra civilização escravocrata fizera antes: um movimento abolicionista global baseado na convicção de uma humanidade comum e da dignidade inerente ao indivíduo. Rejeitando sua adesão anterior a esse comércio desprezível, a Grã-Bretanha assumiu a liderança na aplicação de uma nova norma relativa à dignidade humana, abolindo a escravidão do seu império e proibindo a circulação de navios negreiros em alto-mar. A combinação singular de uma conduta autoritária, arrojo tecnológico, humanitarismo idealista e um fermento intelectual revolucionário provou ser um dos fatores que ajudaram a dar forma ao mundo moderno. Mas tudo isso, ainda assim não evitou as brutais depredações das potências expansionistas através das grandes empresas.
          E aqui chegamos agora ao grave problema do Ambiente. Todas as sociedades modernas dependem da extração de recursos naturais. Até aqui, apesar de alguma parte da energia de que necessitamos ter origem em recursos renováveis, como as barragens hidroelétricas e as torres eólicas, a maior parte tem sido extraída de fontes não renováveis e poluentes: petróleo, gás e carvão. Mas um outro setor que muitas vezes esquecemos, que é o setor dos nossos instrumentos e máquinas, é o dos metais. Para além da madeira e dos plásticos derivados do petróleo e outros produtos sintéticos, que dependem da exploração mineira.
Depois das grandes controvérsias abertas entre os ambientalistas e as empresas industriais que se arrastaram no quase último meio século, com acusações mútuas muitas vezes verdadeiras de ambos os lados, hoje já não há nenhuma controvérsia quanto ao contributo humano para as catástrofes ambientais que acontecem um pouco por todo o planeta cuja intensidade tem aumentado de ano para ano.
          No passado, houve sociedades e civilizações que colapsaram e desapareceram por sua própria culpa. Que lições podemos extrair daí? E o que ainda podemos fazer para não destruirmos mais os habitats naturais? Por exemplo, a destruição das florestas representa uma perda efetiva para nós, porque para além da madeira e outras matérias primas, é imprescindível ao ecossistema, como a proteção das bacias hidrográficas, a proteção do solo contra a erosão, habitat para a maior parte das espécies animais e vegetais terrestres, e essencial ao ciclo da água que gera uma grande parte da precipitação. As alterações na estrutura das florestas têm-se traduzido nas alterações nos regimes de fogos que colocam as florestas e matas sob um risco acrescido de incêndios cada vez mais anómalos e catastróficos.
          Mas se os exemplos do passado se limitaram a problemas nos ecossistemas terrestres, como foi o caso da Ilha de Páscoa ou da Gronelândia na Idade Média, hoje temos também problemas nos ecossistemas marítimos e oceânicos. Cerca de um terço dos recifes de coral – o equivalente no oceano às florestas tropicais húmidas, porque são habitats de uma percentagem desproporcionada de espécies marinhas – foram já gravemente danificadas. E isto deve-se não apenas aos agressivos métodos de pesca, mas sobretudo ao efeito do escoamento de sedimentos de terras adjacentes desflorestadas e convertidas em terras agrícolas, e poluentes industriais. A esta pressão acresce também o aumento da temperatura dos oceanos, que contribui para o incremento do branqueamento dos corais.

terça-feira, 26 de março de 2019

Anamorfose na pintura: Os Embaixadores, de Hans Holbein, o Jovem


Este quadro, de 1533, ano do nascimento de Isabel I de Inglaterra, incorpora com uma caveira, o exemplo típico de anamorfose na pintura. 

A Anamorfose é um efeito de perspetiva que força o observador a se colocar sob um determinado ponto de vista, o único a partir do qual o elemento recupera uma forma proporcionada e clara, que neste caso se trata da caveira colocada no centro da composição. Uma vanitas ou memento mori, opondo vida e morte num rito de passagem, não está claro por que Holbein lhe deu tal proeminência nesta pintura. A Anamorfose esteve em voga sobretudo na pintura mural dos séculos XVI e XVII para criar ilusões de óptica na pintura sobre superfícies curvas, como as abóbadas das igrejas, por exemplo, onde a deformação de perspectiva permite a visão correta somente a partir de um único ponto de vista: se o observador se colocar em qualquer outra posição, a imagem fica deformada e incompreensível.

Entre as pistas para a exploração das associações entre as duas figuras estão uma seleção de instrumentos científicos incluindo dois globos, um quadrante, um torquetum e dois relógios de sol (um horizontal e outro vertical), bem como vários tipos de têxteis, incluindo o mosaico do chão, com base no pavimento da Abadia de Westminster, e o tapete oriental na prateleira superior, um exemplo dos tapetes orientais frequentes na pintura renascentista. A escolha das duas figuras pode, além disso, ser vista como simbólica. A figura da esquerda está em trajes seculares, enquanto a figura da direita está vestida com roupas clericais. E a mesa exibindo livros abertos de cariz religioso, simboliza a unificação do poder secular com o poder espiritual.

Holbein nasceu na Alemanha, mas passou a maior parte da sua vida em Inglaterra. No entanto, Holbein mostra nesta obra a influência da pintura flamenga. Essa influência na pintura a óleo de Holbein veem-se nos detalhes meticulosos dos objetos do conhecimento científico misturados simbolicamente com os livros reservados ao espaço do sagrado.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Por Londres: Turner como metáfora do espaço infinito


Turner nasceu em Londres em 23 de abril de 1775, vindo a falecer a 19 de dezembro de 1851 em Chelsea. As suas obras mais importantes estão na National Gallery e na Tate Gallery, ambas em Londres. Está sepultado na Catedral de São Paulo, na capital inglesa.

A pintura de Turner serve e modelo, por sinal bastante interessante, de como a gramática da representação do espaço pode compor uma textura de uma estrutura narrativa. Apesar de a pintura, ainda no tempo de Turner ser a representação de corpos finitos, normalmente manifestados através de contornos, Turner ousou subverter o espírito da época para dar forma ao infinito. Neste aspeto Turner é um génio, com uma intuição audaciosa que acompanha outra intuição noutro campo do saber: a matemática.

Até 1800, os matemáticos mantinham uma oposição absoluta entre as ideias: ‘infinito’ versus ‘indefinido’; ‘linear’ versus ‘não linear’. Assim se introduziram os números chamados ‘indefinidos’, números que submetidos a certas operações, fazem que estas se prolonguem até ao infinito. E Turner apresenta também novas categorias: luminoso versus opaco; ortogonal versus circular; policromático versus monocromático; e contornado versus expandido.

Hegel, na Estética, diz que “o infinito pertence ao divino e o humano só pode chegar até ele através do indefinido”. É necessário estabelecer equivalências entre “infinito” e “indefinido”, de maneira que a representação do segundo tenha como significado o primeiro. O indefinido ao nível da expressão será portador do infinito ao nível do conteúdo. Foi isso que Turner pretendeu fazer na pintura: uma nova palavra pictórica.


“Sombras e Trevas (a noite do Dilúvio, 1843)” encontra-se no National Gallery of Art, Washington. E “Luz e Cor, 1843 (o dia seguinte ao Dilúvio), a teoria de Goethe) encontra-se na Tate Gallery de Londres. A referência a Goethe explicitada no título do quadro “Luz e cor”, revela que Turner conhecia bastante bem a obra do poeta alemão. No exemplar do livro de Goethe “Teoria das Cores”, 1810, que possuía, foi densamente anotado por ele.

Turner foi um génio incompreendido no seu tempo, mas considerado o antecipador da arte abstrata contemporânea. Os primeiros a darem-lhe valor foram os impressionistas. Com a sua intuição de ter chegado o momento da destruição de todas as leis da proporção e perspetiva até aí vigentes, levou a cabo uma caminhada de libertação espacial isenta da forma figurativa.

Turner elimina a narrativa a favor do abstrato, chamando-lhe “o sublime sem mediação”. Extraordinário exímio na manipulação do espaço e, sobretudo, das ideias de espacialidade, realizou uma reformulação da semiótica do mundo natural, como ponto máximo da sua autoconsciência.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Ter petróleo ou não ter, eis a questão


Os portugueses, por experiência própria, sabem que o 'rating' de um país é muito mais importante para o seu bem-estar económico do que as suas jazidas de petróleo. O rating indica a probabilidade de um país pagar as suas dívidas. 


Além de dados puramente económicos, estes tomam em consideração fatores políticos, sociais e culturais. A Venezuela é um país rico em petróleo, mas está amaldiçoado pelo seu governo de Maduro, e por um sistema político que deixa muito a desejar quanto a corrupção. 

Como tal, lamentavelmente os venezuelanos estão condenados à pobreza, uma vez que não conseguem angariar a confiança necessária para aproveitar ao máximo o seu petróleo enquanto é tempo. Daqui a alguns anos, pelo caminho que o aquecimento global está a tomar, o petróleo vai deixar de ter qualquer valor comercial.  

Assim, um país pode não ter jazidas de petróleo, mas se viver em paz consigo e com os outros, desfrutar de um governo livre e democrático de um estado de direito com um sistema judicial justo, tem mais hipóteses de obter crédito a juros baixos. 

Apesar de não devermos ser ingénuos em relação à doutrina do mercado livre, a verdade é que é esta crença que domina o atual sistema capitalista, que é global. E por mais que apregoem que o poder político não se deve meter na economia, um mercado, livre de toda a influência política, é algo que simplesmente não existe. 

O recurso económico mais importante é a confiança no futuro. Mas é também o recurso mais sujeito a ameaças, vindas de dentro ou de fora do país. 


segunda-feira, 18 de março de 2019

Europa: que futuro..?



Parece uma obviedade afirmar, no atual contexto de uma ordem mundial globalizada, que as sociedades europeias têm muito mais chances de se viabilizarem, com mais ou menos sucesso, unidas numa União Europeia, do que fragmentadas nos seus nacionalismos cada um por si. Daí a quantidade de pessoas apreensivas com o Brexit.

Contudo, afirmar a inevitabilidade de a sociedade europeia estar destinada a se unir para sobreviver não significa dizer que o resultado final tinha de ser este, a União Europeia que temos atualmente. Podemos naturalmente imaginar que podia ser diferente. Porque está a língua inglesa tão difundida hoje em dia? Não podemos efetuar experiências contra-factuais. Se quisermos saber como foi o passado, só temos um caminho. Mas se quisermos saber como será o futuro, temos uma miríade de caminhos. Às vezes a História segue por atalhos inesperados.

Podemos descrever como é que se chegou a este Brexit. Mas não se consegue explicar porque foi que este Brexit específico se concretizou.

Há uma diferença entre explicar como e explicar porquê. Pode-se reconstruir a série de acontecimentos que conduziu a este ponto. Mas para explicar porquê é preciso descobrir uma quantidade imensa de razões indeterminadas. Hoje a maioria dos historiadores não acredita nas teorias deterministas. Quanto mais informação se tenha, quanto mais se conheça, mais difícil se torna explicar porque aconteceu de uma forma e não de outra.

Em retrospetiva é sempre fácil dar uma explicação ad hoc. Em História as coisas passam-se assim: as pessoas que vivem os acontecimentos são aquelas que menos percebem o que se passa, porque o futuro é insondável. Ao passo que um acontecimento analisado em retrospetiva é mais fácil de entender, é quase sempre óbvio. Mas esteve longe de ser óbvio para as pessoas que o vivenciaram.

Não sabemos ainda o desfecho que vai ter a atual desregulação do clima e da ecologia. Existem bons argumentos para que seja uma catástrofe, um desastre ecológico. Mas não há certezas. E, todavia, dentro de algumas décadas, as pessoas vão olhar para trás e não entender como gerações passadas foram tão imprudentes, acreditando num certo tipo de paraíso tecnológico, quando era evidente o que está à vista de todos.