segunda-feira, 21 de novembro de 2022

O planeta Terra visto do Sol


Estando no Sol, vejo oito esferas a girar à minha volta, umas mais perto do que outras mais longe, cada qual com a sua mania, mas há uma que chama mais à atenção, a terceira a contar da que está mais perto. Colocando na máquina a teleobjetiva de maior alcance verifico que é a única que é preenchida nuns sítios por florestas e muitos organismos a mexerem, outros sítios por desertos, e ainda outros por betão com muita bicharada fumegante. Não é fácil ser um organismo. Em todo o universo, pelo que sei até agora, não existe outro lugar como este lugar, um posto avançado indiscreto da Via Láctea que sustenta este pacóvio observador, ainda que com muita má vontade. Mas, eis que chego a um lugar que aina não falei - o Oceano, o Mar - melhor parar por aqui para não sofrer o verdadeiro terror das profundezas.

Do ar que respiramos, 78% é azoto; 21% é oxigénio; 1% é dióxido de carbono, argónio, vapor de água e outros gases. E, todavia, é com este 1% que estamos muito incomodados. Ora, quando o corpo humano está sob pressão, o azoto é transformado em bolhas minúsculas que migram para o sangue e os tecidos. Se a pressão mudar muito depressa – quando um mergulhador está debaixo de água do mar, e sobe rápido demais –, as bolhas presas no corpo começam a borbulhar, como uma garrafa de champanhe que acabou de ser aberta, obstruindo os vasos sanguíneos menores, privando as células de oxigénio e causando uma dor tão terrível que a vítima se contorce em agonia. A doença da descompressão é um risco profissional, por exemplo, dos pescadores de esponjas e pérolas. Noutros tempos, os trabalhadores de pontes, para construir os pilares debaixo de água, metiam-se em caixas pneumáticas, que eram câmaras secas e fechadas e enchidas de ar comprimido. Quando emergiam, após um período extenso de trabalho sob essa pressão artificial, sofriam sintomas brandos como formigueiro nas extremidades do corpo, e prurido à superfície do corpo, na pele. Mas um pequeno número desses profissionais, imprevisivelmente, sentia uma dor mais insistente nas articulações e alguns ocasionalmente acabavam por cair em agonia, às vezes para nunca mais se levantarem. Ora isto era desconcertante, ao ponto de alguns trabalhadores iam para a cama dormir, sentindo-se bem, mas acordavam paralisados, quando alguns nem sequer chegavam a acordar.

Como disse, se mesmo assim, a Terra não é meiga para a vida de um organismo como o homo sapiens viver, imagine-se todos os outros. Em todo o caso, a Terra é um lugar único, ainda que seja o único lugar onde apenas uma pequena porção é habitada pela espécie humana sapiens. Com pouca água potável para ser habitada, com uma parte surpreendentemente grande que é quente e seca, e outra que é fria húmida, ou muito elevada e íngreme demais. Admite-se que, em parte, o sapiens tem muita culpa das suas desgraças, por ser demasiadamente atrevido. Há uma imensidão de outros animais, mas a maioria está adaptada apenas aos sítios que gosta. Nas piores circunstâncias – um sapiens a pé sem água num deserto quente, rapidamente (cinco a sete horas no máximo) entra em delírio e perde a consciência para nunca mais levantar. Mas o sapiens não é mais resistente diante do frio, nas zonas geladas. Como todos os mamíferos, os seres humanos sabem gerar calor, contudo – devido à escassez de pêlos – só conseguem conservá-lo com roupa apropriada ou com outros recursos mais sofisticados. Mesmo num clima ameno, metade das calorias queimadas serve para manter o corpo aquecido. Ainda assim, as porções da Terra para o sapiens viver com tranquilidade são bem modestas, apenas 4% da superfície total se incluirmos os oceanos, ou seja, 12% da área terrestre.  

É preciso muita sorte para encontrar um planeta adequado à vida. E quanto mais avançada a vida, mais sortudo é preciso ser. Constitui uma curiosidade da física que, quanto maior uma estrela, maior a velocidade com que ela queima. Se o Sol tivesse uma massa dez vezes maior, já teria desaparecido e não estaríamos aqui agora. Também temos a sorte de orbitar à distância certa. Se orbitássemos muito mais perto do Sol, tudo na Terra teria evaporado. Se orbitássemos muito mais longe, tudo teria congelado. A descoberta de extremófilos nas fontes térmicas de Yellowstone e de organismos semelhantes em outros lugares fez os cientistas perceberem que, na verdade, certo tipo de vida poderia estender-se até mais longe – até talvez sob a superfície gelada de Plutão.

Para percebermos o que se passa, basta olhar para Vénus, o planeta mais próximo do Sol que está a 40 milhões de quilómetros. A luz solar alcança Vénus dois minutos antes de chegar à Terra. Em tamanho e composição, é muito semelhante à Terra, mas a pequena diferença na distância orbital mudou completamente a história. Parece que, nos anos iniciais do sistema solar, Vénus era só ligeiramente mais quente do que a Terra, e provavelmente possuía oceanos. Mas esses poucos graus de calor extra fizeram com que ele não conseguisse reter a água da superfície, com as devidas consequências para a temperatura e o clima. À medida que a água evaporava, os átomos de hidrogénio escapavam para o espaço. Assim, os átomos de oxigénio combinaram-se com o CO2 para formar uma atmosfera de denso efeito estufa. A temperatura na superfície de Vénus com cerca de 470° C, calor suficiente para derreter chumbo, e a pressão atmosférica 90 vezes superior à da Terra, incompatível com qualquer corpo animal.

Aida assim, estar à distância certa do Sol não é tudo, senão a Lua seria arborizada e habitável, o que não é o caso. 
A maioria das luas é minúscula em relação ao seu planeta. Os satélites de Marte - Fobos e Deimos - por exemplo, têm apenas uns dez quilómetros de diâmetro. A Lua, porém, tem mais de um quarto do diâmetro da TerraPara a vida é preciso o tipo certo de planeta. Entre outras coisas, o interior buliçoso da Terra com o seu campo magnético, e a libertação dos gases, ajudaram a formar uma atmosfera protetora das radiações cósmicas. Além disso, a tectónica das placas, em contínuo movimento, também contribui para uma orografia mais favorável à vida. Mas, por outro lado, sem a influência estabilizadora da Lua, a Terra oscilaria como um pião prestes a parar, com consequências imprevisíveis para o clima. A influência gravitacional permanente da Lua mantém a Terra girando na velocidade e no ângulo certos para proporcionar o tipo de estabilidade necessária ao longo e bem-sucedido desenvolvimento da vida. Isso não prosseguirá para sempre. A Lua está escapando do domínio da Terra a uma taxa de cerca de quatro centímetros por ano. Dentro de 2 mil milhões de anos, terá recuado tanto que não manterá mais a Terra estável. Durante muito tempo, os astrónomos pensavam que a Lua e a Terra se formaram juntas. Ou que a Terra capturou a Lua ao passar por perto. Mas o que aconteceu foi que há uns 4,4 mil milhões de anos, um objeto do tamanho de Marte colidiu com a Terra, arremessando escombros suficientes para criar a Lua. E se os dinossauros não tivessem sido exterminados por um asteroide que colidiu naquela época exata, não estaríamos agora aqui.

Quem imaginaria, por exemplo, que o silício é o segundo elemento mais comum na Terra ou que o titânio é o décimo? A abundância não está necessariamente associada à familiaridade ou à utilidade para nós. Muitos desses elementos mais obscuros são, de facto, mais comuns do que outros mais conhecidos. Existe mais cério na Terra do que cobre, mais neodímio e lantânio do que cobalto ou azoto. O estanho mal entra na lista dos cinquenta mais comuns, eclipsado por obscuridades relativas como praseodímio, samário, gadolínio e disprósio. A abundância não está relacionada à facilidade de deteção. O alumínio é o quarto elemento mais comum na Terra, representando cerca de um décimo de tudo o que está sob os nossos pés, mas nem sequer se suspeitava de sua existência até ele ser descoberto, no século XIX, por Humphrey Davy, e por muito tempo depois foi considerado raro e precioso. Mas se não fosse o carbono, a vida como a conhecemos seria impossível. Provavelmente qualquer tipo de vida seria impossível.

Outros elementos são críticos não para criar vida, mas para sustentá-la. Precisamos de ferro para fabricar hemoglobina, e sem ele morreríamos. O cobalto é necessário à criação da vitamina B12. Potássio e sódio são bons para os nervos. Molibdénio, manganês e vanádio ajudam a manter as enzimas felizes. Evoluímos para utilizar ou tolerar essas coisas – senão mal conseguiríamos estar aqui –, mas mesmo assim vivemos dentro de margens de aceitação estreitas. O selénio é vital para todos nós, com peso conta e medida. O grau em que os organismos necessitam de ou toleram certos elementos é uma consequência de sua evolução. No entanto se aumentarmos as doses, um pouquinho que seja, logo poderemos ultrapassar o limite. Ninguém sabe, por exemplo, se uma quantidade minúscula de arsénico é ou não necessária ao nosso bem-estar. Alguns especialistas afirmam que sim; outros que não. A única certeza é que arsénico demais mata. As propriedades dos elementos podem tornar-se mais curiosas quando eles são combinados. Oxigénio e hidrogênio, por exemplo, são dois dos elementos mais amigos da combustão, mas, ao se juntarem, formam a água incombustível. O oxigénio em si não é combustível, mas facilita a combustão de outras coisas. O gás hidrogénio, por outro lado, é extremamente combustível.

Ainda mais estranhos em combinação são o sódio, um dos elementos mais instáveis, e o cloro, um dos mais tóxicos. Uma porção de sódio puro na água comum, ela explodirá com força suficiente para matar. O cloro é mais notoriamente perigoso. Embora útil em pequenas concentrações para eliminar microrganismos, em volumes maiores também é letal para nós. O cloro foi o elemento utilizado em muitos dos gases venenosos na Primeira Guerra Mundial. E, como provam os olhos lacrimejantes de nadadores em piscinas, mesmo quando extremamente diluído agride o corpo humano. No entanto, reunindo esses dois elementos desagradáveis, obtemos Cloreto de sódio – o sal de cozinha comum.

Grande parte da razão pela qual a Terra parece tão milagrosa é que evoluímos para nos adaptar às suas condições. O que nos assombra não é que ela seja adequada à vida, mas o que seja a vida. Ninguém sabe ao certo. Desse modo, é possível que os eventos e as condições que levaram ao surgimento da vida na Terra não sejam tão extraordinários como gostamos de pensar. Mesmo assim, eles foram suficientemente extraordinários.


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