domingo, 13 de novembro de 2022

As nossas maneiras, as nossas opiniões, entre a ética e a estética



A unidade que Shaftesbury estabelece entre a ética e a estética, entre a virtude e a beleza, aparece claramente no conceito de “maneiras”. Maneiras, para o século XVIII, significa aquela disciplina meticulosa do corpo que transforma a moralidade em estilo, desfazendo a oposição entre o apropriado e o agradável. Nessas formas reguladas da conduta civilizada, dá-se uma estetização extensiva das práticas sociais: os imperativos morais já não se impõem com o peso de um dever kantiano, mas infiltram-se na aparência da experiência vivida que algumas pessoas se lhe referem com expressões como tato, savoir faire, e por vezes bom senso
Segundo Ernst Cassirer, Shaftesbury precisa de uma teoria do belo “para responder à questão da formação correta do caráter, e da lei que governa a estrutura do mundo interno”.

O sujeito, em si mesmo, é assim harmonizado através da estética. Da mesma maneira que a obra de arte, o sujeito intromete os códigos que o governam. Althusser diz que devemos funcionar sozinhos, sem necessidade de constrições políticas, ou seja, vivermos sem a legitimação das leis. Isto já Kant havia encontrado na representação estética. É o Lebenswelt social, que parece operar com o rigor de uma lei racional, mas cuja lei nunca é aplicável ao comportamento particular concreto que a apresenta.

As revoluções tiveram sempre como proveito da classe média, que teve algumas vitórias históricas na sociedade política, à custa de muita luta. Mas o dilema desta luta é a desfiguração da lei através do discurso ao ser materializado no conflito político. É assim que Hegel escreve na Fenomenologia do Espírito, com um sarcasmo dirigido ao subjetivismo, sobre a “bendita unidade da lei e do coração”. As estruturas de poder são transformadas em estruturas de sentimentos, e a estética é uma mediação vital nesta passagem como regra de comportamento social. 

E foi assim que veio o tempo de as ações morais passarem a ser classificadas principalmente como “agradáveis” ou “desagradáveis”. E assim novos hábitos éticos se instalaram e naturalizaram como regra. A ordem social passou do ponto em que estava a cada momento submetida a uma discussão apocalíptica, para o descanso, que aproveitando os frutos do trabalho, entregue às malhas do prazer. 

Foi a desilusão que Burke teve Com a Revolução Francesa que o fez seguir por outro caminho.  Para ele, a obra de arte mais gloriosa era exatamente a Magna Carta, mãe de uma constituição inglesa que passou a dizer-se "não-escrita". Constituição inglesa informal, mas inelutável. O utilitarismo puritano só cederá espaço a um esteticismo do poder quando a sociedade for redefinida como um objeto de arte, que não tem nenhum propósito instrumental além da autoapreciação. É o que nós chamamos comumente de “consenso” ou “legitimação”. A imaginação é, verdadeiramente, para Hume, “o juiz último de todos os sistemas filosóficos”. Se a crença não passa de um sentimento um pouco mais vivaz, questiona-se David Hume, não poderá a sua crença, de que as coisas são assim, sofrer o mesmo questionamento, e voltar-se contra si mesma? “Depois de meus mais cuidadosos e exatos argumentos”, confessa, “não posso dar nenhuma razão pela qual deveria manter esta perspetiva. 
 
Não pode haver nenhum apelo para além da experiência e do hábito que estimulem a imaginação; é sobre esses apoios frágeis em que tudo se assenta, e assim se baseia todo o consenso social. “A memória, os sentidos e o entendimento são deste modo, todos eles, fundados na imaginação, ou na vivacidade de nossas ideias”. Numa adenda ao Tratado, Hume reconhece o quão completamente esta “vivacidade” atravessa a rede conceptual no esforço de distinguir entre crenças e ficções: “quando eu tento explicar quase não encontro palavras que respondam inteiramente à questão, e sou obrigado a recorrer ao sentimento de cada um, de forma a lhe dar uma perfeita noção desta operação da mente. Uma ideia assente na experiência é sentida de maneira diferente de uma ideia fictícia. 

David Hume chama "imaginação" à fonte de todo o conhecimento, uma conotação bem diferente da que se tem agora, o que explica porque a filosofia anda perdida por estes dias da ciência pura e dura. Mas Hume vem depois a contradizer-se, depois de reduzir a razão à imaginação, acaba por declarar que “Nada é mais perigoso para a razão que os voos da imaginação, e nada provocou mais erros entre os filósofos”. A chave para esta aparente inconsistência está na distinção entre as formas mais confiáveis e as mais selvagens do imaginar: devemos rejeitar “todas as sugestões triviais da fantasia, e aderir ao entendimento, isto é, às propriedades mais gerais e mais estabelecidas da imaginação”. O que nos salvará da imaginação é a razão, que é apenas uma outra versão sua.

Assim não surpreende, em função do que está colocado nesse debate, que Edmund Burke comece o seu trabalho sobre o sublime e o belo tentando defender a possibilidade de uma ciência do gosto. Se a beleza é algo relativo, os laços que mantêm a sociedade coesa estão em grave perigo. A beleza, para Burke, não é somente uma questão da arte: "Para mim, a beleza é uma qualidade social; pois quando homens e mulheres, e não só eles, mas também quando os animais nos dão um sentimento de alegria e prazer ao observá-los (e há muitos que o fazem), eles nos inspiram ternura e afeição por suas pessoas; nós queremos tê-los por perto, e entramos facilmente em relação com eles, a não ser que tenhamos fortes razões em contrário."

Para Burke, tanto quanto para Hume, o que dá coesão à sociedade é o fenómeno estético da mimese, que deve ser considerado mais a partir dos costumes que das leis: “É a partir da imitação, mais que do preceito, que aprendemos todas as coisas; e o que aprendemos assim, o fazemos não só com mais eficácia, mas também com mais prazer. É isto que forma as nossas maneiras, nossas opiniões, nossas vidas. Trata-se do mais forte cimento da sociedade; uma espécie de assentimento mútuo, que cada um concede ao outro, sem constrição para si, e extremamente gratificante para todos.” A lei e o preceito são simplesmente derivados do que é primeiro constituído pela prática costumeira e a coerção, assim, é secundária em relação ao consenso. Nós nos tornamos sujeitos humanos imitando com prazer as formas práticas da vida social, e na fruição desta funda-se a relação que nos une hegemonicamente ao todo. Imitar é submeter-se a uma lei, mas de forma tão gratificante que a liberdade se baseia nesta servidão. Este consenso é menos um contrato social artificial, tecido e mantido laboriosamente, que uma espécie de metáfora espontânea ou constante produção de semelhança. O único problema é saber onde vai dar toda essa imitação: a vida social para Burke parece uma cadeia infinita de representações de representações, sem fundo nem origem. Se nós fazemos como os outros fazem, e os outros fazem o mesmo, então todas essas cópias vivem na falta de um original transcendental, e a sociedade é estilhaçada numa selva de espelhos.

Burke confessa não ver maneira de unir esses dois registos, o que coloca claramente um problema político. O dilema é que a autoridade que nós amamos, nós não respeitamos, e a que respeitamos, não amamos. “A autoridade de um pai, tão útil para o nosso bem-estar, e tão justamente venerável, acima de qualquer cálculo, impede-nos de ter aquele amor inteiro por ele, como temos por nossa mãe, em que a autoridade parental está quase dissolvida na doçura e indulgência maternais.” O paradoxo político é claro: só o amor nos ganhará realmente para a lei, mas esse amor corroerá a lei até destruí-la. Uma lei bastante atraente para envolver nossos afetos íntimos, e tão eficaz para a hegemonia, tenderá a nos inspirar um desprezo afetuoso. Por outro lado, um poder que estimula nosso medo filial, e assim, nossa obediência submissa, supostamente aliena nossos afetos e nos incita a um ressentimento edipiano.

Procurando desesperadamente uma figura reconciliadora, Burke nos oferece nada menos que a imagem do avô, cuja autoridade masculina enfraquecida pela idade ganha uma “parcialidade feminina”. Mary Wollstonecraft [1759-1797, considerada hoje uma das fundadoras da filosofia feminista] percebe rapidamente o sexismo na argumentação de Burke e o denuncia em seu Vindication of the Rights of Men. Segundo ela, as distinções que Burke faz entre o amor e o respeito estetizam as mulheres a ponto de retirá-las da esfera da moral. É o que ainda se passa hoje com a publicidade, sabendo o quanto as mulheres excitam os homens através da estética da perfeição. Tal afeto (afeção) como prazer, acaba por perturbar a ética do amor na sua intimidade com o prazer. Esta frouxidão moral consentida pelas mulheres é capturada pela imaginação libertina, argumenta Wollstonecraft. Um gosto sensual excessivo, que é quente, ofusca a argumentação crítica da razão, que é fria, como se o sexo estivesse muito distante da virtude. São estas confusões que colocam a relação da razão com o sentimento, com a relação da água com azeite.

Colocando a questão da relação entre a beleza e a virtude de outra maneira, seguindo os argumentos de Wollstonecraft, é certamente mais cativante uma imaginação libertina do que os frios argumentos da razão, para os quais não há sexo na virtude. Mas se a experiência provar que há beleza na virtude, que há encanto na ordem, o que necessariamente implica um esforço, um gosto sensual excessivo poderá ser sentimento do prazer subsumido pela razão. Para Wollstonecraft, Burke não é um esteta, o que faz toda a diferença; divorcia a beleza (mulher) da verdade moral (homem). A virtude não tem nada a ver com o sexo, nem com o gosto. 

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