segunda-feira, 20 de março de 2023

A Irlanda da Idade Média

  


The Temple Bar, no distrito de Dublin, grande reputação na vida noturna irlandesa.

Tomando a história da Irlanda desde a Idade Média, verifica-se a sua identidade como um caso único, não só porque havia muitos reis exercendo o seu senhorio sobre pequenas unidades populacionais e seus territórios (chamados tuaths), mas também porque havia muitos graus de realeza, com regras e costumes elaborados a respeito da sucessão.

No século VIII, quatro províncias tinham surgido, definidas efetivamente pelas tentativas das principais famílias em exercer uma suserania consistente e dominante sobre as demais: Uí Cheinnselaig no sudeste (Leinster), até serem substituídos pelos Uí Dúnlainge a partir de cerca de 738; os Eógannachta no sudoeste (Munster), especialmente o ramo da família Cashel; os Uí Briúin no noroeste (Connaught) desde meados do século VIII; e os Uí Néill (O’Neill) no nordeste (Ulster) desde o começo do século VII. Os O’Neill desenvolveram um padrão de realeza alternante entre os ramos setentrional e meridional da família, associada à realeza de Tara, um foco simbólico similar ao da Rock of Cashel dos Eógannachta no sul. O conflito entre os super-reis tornou-se comum, se bem que, nessa altura, a subestrutura de reis secundários e tuath permanecesse substancialmente intacta.

A partir de 795, um novo elemento foi introduzido na política irlandesa pelos vikings, que assolaram e devastaram no início vastas zonas, mas depois acabaram instalando bases permanentes, a primeira delas em Dublin, em 841. A chegada dos vikings não significou uma total mudança na política irlandesa, uma vez que a sua tendência era ajustarem-se aos padrões existentes, aliando-se aos principais reis e sendo por estes usados como mercenários. A competição pelo estatuto de suserano continuou sendo os Uí Néill os mais bem-sucedidos em suas tentativas de ampliação de seu poder além de suas próprias fronteiras; a partir de meados do século X, eles assumiram títulos que sugerem o predomínio sobre a totalidade da ilha. Entretanto, suas pretensões foram abaladas pela penetração na direção leste dos Uí Briúin, embora estes fossem, por sua vez, ultrapassados por uma nova família, os Dál Cais de Munster, que tomaram Cashel em 964. A partir de 976, o mais famoso membro da família, Brian Borumha, desenvolveu uma série de operações militares até conseguir a submissão do Sul e da região central em 1002 e do resto do Norte em 1005-11. O êxito de Brian foi efémero; uma revolta em Leinster, em 1012, culminou com a sua morte em Clontarf, dois anos depois. Contudo, o facto de que todos os principais reis se lhe submeteram, assinala uma importante mudança na política irlandesa, a qual daí em diante passou a estar cada vez mais intimamente vinculada à próspera cidade de Dublin.

A mudança também se evidenciou quando o poder foi territorializado: os reis secundários perderam a sua independência e as dimensões das unidades fundamentais da realeza aumentaram substancialmente. Nos séculos XI e XII, uma série de reis não aparentados, de diferentes famílias, estabeleceram uma vasta hegemonia. Assim como os reis anteriores tinham usado a capacidade militar viking para seus próprios fins, também os super-reis rivais buscaram ajuda no exterior e, num lance decisivo em 1167, um governante Leinster recorreu a Henrique II da Inglaterra. Henrique talvez já tivesse recebido o reconhecimento de sua suserania sobre a Irlanda pelo papa inglês Adriano IV em 1156, e sua resposta foi rápida e devastadora. Com a intrusão no quadro político de uma aristocracia anglo-normanda, o fim da velha ordem estava selado. Richard de Clare (Strongbow), conde de Pembroke, comandou uma força armada que desembarcou na Irlanda. Dublin caiu em 1170 e, em 1171, o próprio Henrique II realizou a travessia para Wetherford e efetuou o que se pode chamar um triunfal avanço de uma ponta à outra da ilha.

A conquista normanda da Irlanda foi muito diferente da conquista da Inglaterra. Nunca foi completa e, embora em 1300 a maior parte da ilha estivesse nominalmente sob o controlo do monarca inglês ou de seus representantes em Dublin, na realidade a situação era extremamente complexa, um emaranhado de senhorios com a sobrevivência de chefes tribais gaélicos governando suas comunidades de acordo com as antigas leis e costumes do mundo céltico. Alguns beneficiaram-se consideravelmente com a nova ordem feudal e foram criados grandes feudos, com destaque para os Fttz-Gerald, os Lacy e os Butler. Floresceram cidades; alguns dos anglo-normandos recém-chegados foram assimilados pela cultura gaélica, tornando-se mais irlandeses que os próprios irlandeses. 
O interesse da monarquia inglesa era constante, mas seu envolvimento foi esporádico. Ricardo II, no final do século XIV, e os yorkistas no século XV, tentaram impor a paz e a unidade mas seus êxitos foram efémeros. Os esforços no sentido da proscrição do uso da língua, leis e costumes irlandeses, como os consubstanciados nos Estatutos de Kilkenny, em 1366, fracassaram. No final da Idade Média registrou-se um ressurgimento gaélico fora das regiões diretamente controladas por Dublin e outras cidades. 

A Igreja irlandesa, embora a tradição atribua a conversão dos irlandeses a São Patrício, ficou claramente provado que alguns missionários já andavam por lá antes dele. Limitou a sua atividade evangelizadora ao norte e centro da Irlanda. Entretanto, a importância de São Patrício é indiscutível e sobrevivem dois de seus escritos do século V. As igrejas e os sacerdotes que ele instalou estavam sob a jurisdição de alguns bispos, sem os centros urbanos que caracterizaram a Igreja continental. No decorrer do século VI, a Igreja irlandesa começou a mudar com a fundação de numerosos mosteiros, frequentemente com patrocínio real. As comunidades de Bangor, Clonfert, Derry e Durrow, Iniscealtra e Terryglass, Lismore, Moville e Killeedy já existiam no final do século VI ou começos do século VII. Muitas delas retiveram fortes ligações com as famílias de seus fundadores, que exerceram influência na nomeação de abades e, assim, na administração de seus bens. No decorrer desse movimento, alguns monges viajaram para terras estranhas, estabelecendo outras comunidades monásticas e entregando-se ao trabalho missionário. No século VIII, muitos mosteiros na própria Irlanda tinham-se tornado excepcionalmente ricos, patrocinando a produção de obras de arte — missais e vasos de culto de grande esmero e requintado acabamento — e participando também na política. No final desse século, os abades dos principais mosteiros controlavam mosteiros menores e dependentes, por vezes muito dispersos, e se tornavam aos poucos mais poderosos do que os bispos a cuja jurisdição tinham estado originalmente sujeitos.

No final do século VIII e durante o século IX, seu envolvimento na política era tal que abades entraram em guerra, enquanto suas ligações com famílias aristocráticas eram tão estreitas que reis, por vezes, exerciam funções tanto clericais quanto seculares. Isso ocorreu de forma sumamente notória no caso dos reis de Munster, como, por exemplo, Olchobar, que foi abade de Emly e rei de Cashel em 848. Em contrapartida, alguns bispos esforçavam-se por afirmar sua superioridade sobre outros e a igreja de Armagh notabilizou-se pelas tentativas de estabelecer a hegemonia (à maneira de um suserano) sobre toda a Igreja irlandesa. Contentou-se inicialmente em dividir essa hegemonia com a igreja de Kildare mas, no século VIII, Armagh estava reivindicando para si jurisdição apelatória em toda a Irlanda e uma posição comparável à dos bispos de Roma na Itália. Essas pretensões não foram mantidas a longo prazo, embora Armagh continuasse sendo uma igreja poderosa.

Nesse meio tempo, alguns clérigos e monges tinham-se desiludido com a temporalidade da Igreja e deflagraram uma campanha em prol de uma prática mais ascética. Esse movimento Culdee, como é conhecido, estava em franco progresso por volta de 800, especialmente associado a Tallaght; levou à fundação de casas mais ascéticas, por vezes em lugares muito isolados, à reforma da prática em algumas casas existentes e à produção de obras eremíticas de devoção. Tanto a linha poderosa quanto a ascética continuaram marcando a Igreja irlandesa até ao século XI. Alguns dos mais elaborados cruzeiros esculpidos foram fruto do patrocínio e da habilidade do século X.

No final do século XI, o movimento de reforma continental começou a tocar a Irlanda; mas o grande avanço ocorreu em meados do século XII com a obra de São Malaquias (m. 1148); seus propósitos para a Igreja irlandesa frutificaram após sua morte quando, no Sínodo de Kells (1152), a Irlanda foi dividida em 4 arcebispados e 36 bispados. O novo movimento monástico passou a exercer influência e a conquista anglo-normanda (1169-72), liderada pelo conde Strongbow e Henrique II, colocou grande parte da Irlanda de um modo ainda mais direto na corrente principal da Cristandade ocidental. Catedrais foram construídas em típico estilo normando e fundaram-se novas e poderosas casas monásticas, sobretudo por parte dos cistercienses. No século XIII, foi especialmente encorajada a presença de frades mendicantes; e eles (sobretudo seus elementos mais pobres e mais ascéticos) conservaram boa reputação até ao final do período medieval. Nos últimos anos da Idade Média, a Igreja irlandesa continuou refletindo as divisões sociais da ilha, principalmente em decorrência das fronteiras linguísticas entre a fala inglesa e a gaélica; porém, de um modo geral, harmonizou-se então com os usos da Igreja ocidental, mais do que ocorrera no começo da Idade Média. 

Sem comentários:

Enviar um comentário