quinta-feira, 2 de março de 2023

A nova lei das Ordens Profissionais. Uma evocação das guildas medievais





A nova lei das Ordens Profissionais – tal como está – prevê alterar questões como as condições de acesso às respetivas profissões, introduzir estágios profissionais remunerados e criar uma entidade externa para fiscalizar os profissionais. No texto final foram introduzidas – no ano passado – alterações como precisões sobre as taxas cobradas durante o estágio e a possibilidade de serem reduzidas. A duração dos estágios fixou-se em 12 meses, podendo ser maior em casos excecionais. Outra das alterações foi a aprovação da existência de um órgão disciplinar, que não estava previsto na anterior lei-quadro, que prevê a fiscalização sobre a atuação dos membros das ordens profissionais, composto por elementos externos às profissões respetivas. Outra das questões polémicas é a introdução das sociedades multidisciplinares.

Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais.

Apesar de ser um diploma complexo, Marcelo Rebelo de Sousa teve dúvidas sobre alguns aspetos e decidiu pedir a fiscalização ao TC. Entre as dúvidas do chefe de Estado está:
  • Avaliação final do estágio profissional feita por um júri independente, de “reconhecido mérito”, com elementos externos à atividade profissional em causa;
  • Um órgão disciplinar com elementos externos à profissão em causa, que não sejam membros da associação pública profissional;
  • A criação de um órgão de supervisão que exerce funções de controle dos profissionais da classe em questão;
  • O exercício de uma função na Ordem Profissional em causa ser incompatível com o exercício de funções dirigentes em qualquer cargo da função pública;
  • A criação da figura do provedor em cada associação pública que seja externo à profissão em causa e que defenda os destinatários dos serviços da profissão em causa e que seria designado pelo bastonário, sob proposta do órgão de supervisão e que não poderá ser destituído a não ser por “faltas graves” no exercício da função.

As guildas medievais, corporações de ofício (do latim "corpora" ou "collegia") também chamadas guildas ou mesteirais, associações de pessoas qualificadas em um ofício, que surgiram a partir do século XII com as transformações no sistema feudal. O seu objetivo consistia no controlo económico e no regulamento das profissões nas cidades. Essas corporações de artesãos eram organizadas por uma hierarquia (mestres, oficiais e aprendizes) que providenciava pela qualidade técnica da produção das mercadorias. Uma pessoa só poderia trabalhar num determinado ofício, e teria de ser membro da corporação. Caso esse costume fosse desobedecido, corria-se o risco de até mesmo ser expulso da cidade.

Uma guilda (no inglês arcaico “geld” = pagamento) era provida de solenidades, ligadas por alguma modalidade de juramento de vinculação entre elas por meio de formas rituais de comer e beber. Instituições desse tipo aparecem em numerosas culturas. E, embora o pagamento de joia e taxas de filiação seja uma característica constante das guildas, há na base uma ligação mais antiga entre pagamento e sacrifício pagão que o cristianismo tentou eliminar. A guilda era, contudo, uma instituição com profundas raízes, mais fácil de assimilar do que de abolir; e durante toda a Idade Média suas únicas rivais como forma de organização social eram a família, com todos os seus dependentes e servidores domésticos, e a corte.

As guildas clericais surgiram no século X. Londres tinha uma guilda para a manutenção da paz, a qual contava com o bispo entre seus membros. O mais importante papel da guilda na Igreja era, provavelmente, a edificação de igrejas e, de certa maneira, a definição da paróquia como uma comunidade de fiéis. A manutenção de uma igreja paroquial, excetuando-se o altar-mor e o coro, era responsabilidade dos paroquianos, e o empreendimento de construir o edifício e conservar a estrutura em boas condições exigia um esforço cooperativo que a guilda estava perfeitamente apta a promover. As guildas paroquiais e as guildas sociais que se encarregaram do acréscimo e manutenção de capelas e altares em igrejas paroquiais fixaram honorários para os sacerdotes e financiaram a aquisição de luminárias e serviços particulares, mantendo a estreita associação entre guilda e vida paroquial até ao fim da Idade Média.

Duas manifestações da guilda serviram para distorcer a sua história. Uma foi a guilda mercantil, que nos aparece quando a documentação da vida urbana se intensifica do século XI em diante, e que manteve um papel central nos negócios de algumas cidades durante séculos. Sua natureza e função foram largamente incompreendidas, porque os historiadores tentaram classificar as guildas como entidades e não como meios adaptáveis a uma variedade de fins. Com o aumento do comércio, as cidades cresceram. Essas cidades eram construídas com a união de burgos (fortificações), igrejas e terrenos. Seus habitantes eram mercadores. Com o passar do tempo, criou-se um embate entre a lógica feudal e a lógica das cidades, que era comercial. Para solucionar esse conflito, surgiram as corporações, que nada mais eram do que associações de mercadores, que tinham como objetivo garantir liberdade para as cidades em que viviam, de modo que houvesse crescimento contínuo desses locais. O homem da cidade queria ser livre e muitas vezes buscava a liberdade através da violência. Por isso, muitas das guerras travadas nas cidades foram lideradas pelas corporações de ofício. As mercadorias deveriam, ao chegar na cidade, serem, a princípio, analisadas e compradas pelos membros das corporações. Caso algum estrangeiro ou não membro comprasse ou trocasse alguma mercadoria antes dos membros, o infrator seria punido e o produto confiscado pelo rei. Ou seja, as instituições de poder estavam diretamente ligadas e dispostas pelas associações de mercadores, que determinavam os preços, assim eliminando a concorrência e ganhando cada vez mais poder.

Quando os cidadãos procuravam obter privilégios do rei ou de algum outro senhor, era natural que usassem a guilda como símbolo e como reforço de seu objetivo comum; também era natural que os mercadores protegessem seus interesses no país e no estrangeiro do mesmo modo. A partir do século XII, os boroughs ingleses, com frequência, mas não invariavelmente, procuraram assegurar-se do direito de estabelecer uma guilda mercantil entre os privilégios da cidade e, em alguns lugares, como Ipswich em 1200, a filiação à guilda era equiparada à liberdade do borough.

Há muitas cidades, contudo, onde não existe o menor vestígio de uma guilda mercantil; aquelas na Inglaterra nas quais a guilda desempenhou um destacado e duradouro papel nos assuntos cívicos ou apenas uma função secundária, como Calne, no Wiltshire, ou então, como Leicester, tinham senhores que não estavam dispostos a permitir o controlo burguês de seus próprios tribunais. O funcionário que presidia uma guilda chamava-se alderman [intendente], e os intendentes municipais podem ter tido sua origem nas guildas. O principal magistrado de Grantham foi conhecido por esse título até ao século XIX. Na maioria dos boroughs, entretanto, a guilda mercantil logo perdeu o significado dominante que pudesse ter tido para o tribunal do borough, que se converteu num órgão tanto administrativo como judicial. Mesmo assim, o edifício no qual o tribunal se reunia era frequentemente conhecido como Guildhall, como aconteceu em Londres, onde nunca houve qualquer guilda mercantil.

O outro uso urbano da guilda foi como um meio de organizar e controlar as artes e ofícios. É quase certo que as guildas foram usadas em algumas incipientes tentativas de artesãos afirmarem uma independência corporativa em relação aos patrões comerciantes, mas na época de documentação mais completa, final da Idade Média, as guildas ou corporações de ofícios regulamentavam a qualidade, a produção e o recrutamento para os diversos ofícios visando os interesses do empregador e do artesão qualificado e estabelecido. Uma vez mais, era a finalidade da organização, não a sua forma, que a distinguia das outras guildas, e era o contexto social do momento, não alguma ideologia peculiar da guilda, o que determinava seu objetivo. Entretanto, nos séculos XIV e XV, numa sociedade profundamente impregnada de formas religiosas, todas as guildas tinham fins religiosos e sociais que eram tão proeminentes quanto quaisquer outros fins. A manutenção de capelães, de orações pelos mortos, de providências para assistir aos irmãos e enfermos e indigentes e a seus dependentes, eram características regulares das guildas ou corporações de ofícios, assim como eram os únicos objetivos confessados de muitas outras irmandades.

Também era usual, nessa época, as guildas professarem o culto de determinado santo ou santos padroeiros, uma convenção que refletia e promovia a associação de santos com certos ofícios e profissões. A Virgem era objeto generalizado de devoção, mas de todos os cultos, o de Corpus Christi foi, provavelmente, o mais influente. Desde começos do século XIV, representações rituais da Paixão de Cristo na Páscoa evoluíram para elaborados espetáculos teatrais em igrejas e procissões alegóricas nas ruas; foi nesses eventos que os autos e outras formas de dramaturgia laica encontraram suas origens. No século XVI, a Reforma varreu as guildas e muitas de suas obras, mas as formas sociais da nova era ficaram devendo suas origens ao mundo medieval, em que a solene irmandade da guilda tinha sido não só uma força estabilizadora, mas também um potente motor de mudança.



Síndicos dos comerciantes de fazendas em Amsterdam. Rembrandt, 1662

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