sábado, 15 de abril de 2023

A questão do Estado e da Nação



Um dos mantras muito citado acerca da legitimidade de um Estado diz que essa legitimidade reside no monopólio da violência. Seja a violência física através das polícias e dos exércitos. Seja a violência simbólica através das suas instituições. A monopolização do capital jurídico e militar, que é o que permite o acesso ao capital social e cultural, dá azo à perpetuação de uma classe dominante cujo poder reside no capital financeiro e económico.

No Antigo Regime, uma designação herdada da Revolução Francesa, muito se dissertou sobre a morte do rei: a morte física do rei era talvez o corte simbólico indispensável para afirmar a irreversibilidade da imposição de um princípio de tipo jurídico diante de um princípio de tipo dinástico. Deixou de haver súbditos e passou a haver cidadãos de pleno direito.

Os revolucionários franceses fizeram o Estado universal. E é desse Estado que resulta a Nação. Essa visão jurídica/política e universalista está vinculada à sua competência e aos interesses. Por outras palavras, são construções de intelectuais que, pertencendo a uma classe, acabam por ter de defender os seus interesses. 
A vontade geral só existe no mito. As razões emocionais afetivas costumam ser reservadas a seitas religiosas, ou a grupos de futebol, só para dar dois exemplos. Mas é mítica essa construção social produzida a uma escala de todo um povo. 

Por isso, a Nação, é uma comunidade imaginária, produto de um trabalho de construção intelectual. Um caso que na atualidade está na ordem do dia é o que se está a passar na Ucrânia, em que os senhores do Kremlin, com Putin à cabeça, determinaram-se através da invasão e da guerra eliminar a nação ucraniana. Uma forma de racismo sublimada. Trabalho de inculcação de categorias de percepção e de apreciação comuns, que se realiza por meio de inúmeras influências. A Nação é uma encarnação imaginária do povo, uma autorrepresentação de quatro atributos essenciais: língua, história, geografia e religião. O cidadão, como entidade jurídica, existe como alguém que mantém relações de direito e de dever com o Estado. No fundo, o cidadão é alguém que aceita um contrato social de direitos e deveres com o Estado de Direito. Um Estado de Direito acolhe o cidadão ao abrigo de uma série de direitos: direitos humanos; o direito ao trabalho; o direito à saúde; o direito à segurança.

Em Portugal o cidadão é reconhecido como tal pela Constituição. Ao contrário de alguns países que se regem pelo jus sanguinis (propriedade ligada ao sangue), Portugal rege-se pelo jus solis (propriedade ligada à terra onde se nasce). 
Portugal é uma unidade jurídica/territorial, constituído como tal por um enunciado de Direito, através de uma Constituição. O cidadão pode ser diverso em termos de etnia ou cultura, mas cabe ao Estado criar condições de integração. Uma forma de atribuição da cidadania pode ser através da língua.  através da língua. Aqui, é o Estado que faz a Nação, em que o cidadão é ligado pela terra e pela língua. Ao passo que, por exemplo, na Alemanha, é a Nação que se expressa no Estado. Todos os que têm as mesmas origens étnicas e culturais são cidadãos da Alemanha. É de lembrar a reunificação depois da queda do Muro de Berlim. A via alemã é muito diferente. O modelo alemão saiu dos pensadores românticos do século XIX, corrigido pelos reformadores prussianos — é absolutamente simplista, mas é útil para se localizar. No modelo alemão a Nação é uma individualidade enraizada historicamente, organicamente desenvolvida, e unida por um Volksgeist, por um espírito do povo comum que o distingue das outras nações e que se exprime numa linguagem, num costume, numa cultura e no Estado. É evidente que o Estado pode ratificar juridicamente tudo isso, mas ele é mais uma expressão, é mais produto que produtor.

Por aqui se pode compreender como se processa a integração dos imigrantes, num caso ou noutro. Portugal é inspirado pela visão política e jurídica de cariz universalista, ou cosmopolita, influenciada pelas luzes da Revolução Francesa de 1789. É, portanto, uma comunidade de base territorial: para se tornar cidadão basta ter nascido nesse solo; é a naturalização automática, numa lógica de assimilação, em que cabe ao Estado fazer a Nação por um trabalho de integração. No que se refere à Alemanha, o Estado remete à filosofia romântica do século XIX, ao espírito de um povo, conceção que remete para o étnico e cultural pela via do jus sanguinis (direito de sangue). A cidadania aqui, tal como na Rússia, é ligada à hereditariedade, ao sangue, à transmissão “natural” tanto quanto histórica. Os povos germânicos são "por natureza" alemães. Assim, um estrangeiro que nasça na Alemanha não é necessariamente, ou automaticamente como em Portugal, um alemão. Na Alemanha não há integração ou assimilação automática. 

Concretamente, a partir dessas duas filosofias, jus solis ou jus sanguinis, podemos nos deparar com dois tipos diferentes de política de integração do imigrante. Embora os tratamentos reais no que diz respeito aos Direitos Humanos sejam semelhantes. Os turcos na Alemanha são tratados mais ou menos como os ucranianos em Portugal. Mas, do ponto de vista do Direito, há uma grande diferença. A confusão de conceitos gera violência na discussão sobre os problemas que decorrem das migrações, são do domínio do inconsciente, a que alguns autores acrescentam o seu caráter coletivo. As pessoas não sabem do que falam quando falam desses problemas. Daí ser muito fácil a manipulação por parte de forças políticas populistas. Infelizmente, a lógica do debate político não tem nada a ver com a lógica do debate científico. E estamos longe do tempo em que a inteligência podia fazer alguma coisa de modo que os políticos fizessem aquilo que deviam pela nobre missão de ser político.

Em geopolítica, os diplomatas falam de interesses. Aqui, “interesse”, não se reduz ao sentido utilitário do interesse material ou económico. O sentido é muito mais lato, que vai desde as trocas culturais e de inteligência até à segurança no contexto de alianças entre países. Ter interesses é estar associado a alguém.

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