terça-feira, 30 de maio de 2023

Tolstoi visita Chekhov


Em 1897, Tolstoi fez uma visita a Chekhov [1860-1904], que estava gravemente doente. A prolongada tuberculose piorara de forma súbita e drástica, terminando na clássica hemoptise fulminante. Chekhov até então ignorara a doença, tendo acabado por ser obrigado a chamar o médico. Quando Tolstoi chegou à clínica, seis dias depois de uma hemorragia, encontrou Chekhov sentado na cama, de humor alegre, rindo e contando piadas, e tossindo sangue num grande copo de cerveja. Chekhov tinha consciência do perigo que corria — afinal de contas, era médico —, mas mantinha o bom humor e chegou a falar de planos para o futuro. Tolstoi ao observar Chekhov com o humor cortante de sempre, ficou “quase desapontado” ao não encontrar o amigo à beira da morte. Tolstoi terá ido visitá-lo com a intenção de falar sobre a morte. Tinha uma grande admiração pelo modo como Chekhov parecia aceitar a morte e apenas continuar vivendo e, talvez com inveja da sua atitude calma.

Tolstoi, enquanto Chekhov cuspia sangue, discorria sobre a morte e a vida depois da morte. Chekhov inicialmente escutou-o com atenção, mas, no final, perdeu a paciência e começou a discutir. Via a força misteriosa na qual Tolstoi achava que os mortos se dissolveriam como “massa congelada e informe”, e disse ao amigo que não queria esse tipo de vida eterna. Na verdade, disse Chekhov, ele não entendia a vida após a morte. Não via razão para pensar nisso nem para se consolar, como disse, com “ilusões de imortalidade”.

Ali estava a diferença fundamental entre os dois homens. Quando pensava na morte, a mente de Tolstoi sempre se voltava para o outro mundo, enquanto a de Chekhov se mantinha neste aqui. “É assustador virar nada”, disse na clínica ao amigo e editor A. S. Suvorin depois que Tolstoi saiu. “Eles nos levam para o cemitério, voltam para casa, começam a tomar chá e dizem coisas hipócritas sobre nós. É medonho pensar nisso!” Não que Chekhov fosse ateu, embora nos últimos anos da vida afirmasse não ter fé. Na verdade, a sua atitude religiosa era muito complexa e ambivalente. Chekhov crescera numa família religiosa e, durante a vida inteira, manteve forte apego aos rituais da Igreja. Colecionava ícones. Na sua casa em Ialta havia um crucifixo na parede do quarto. Gostava de ler sobre os mosteiros russos e a vida dos santos. Pela correspondência, sabemos que Chekhov adorava ouvir o dobre dos sinos, que frequentava a igreja e gostava dos cultos, que ficava em mosteiros e que, em mais de uma ocasião, chegou a pensar em se tornar monge. Via a Igreja como aliada do artista e a missão do artista como espiritual. 

Certa vez Chekhov disse ao amigo Gruzinski: “a igreja da aldeia é o único lugar onde o camponês pode viver algo belo”. As obras literárias de Chekhov estão cheias de temas e personagens religiosos. Nenhum outro escritor russo, com a possível exceção de Leskov, escreveu com tanta frequência ou com tanto carinho sobre o culto do povo ou sobre os rituais da Igreja. Muitos contos e peças importantes de Chekhov (como “O bispo”, “O estudante”, “Na estrada” e “Enfermaria n. 6”) são profundamente versados na busca da fé. O próprio Chekhov tinha dúvidas religiosas; certa vez, escreveu que se tornaria monge se os mosteiros aceitassem pessoas não religiosas e se ele não tivesse de rezar. Mas sentia clara simpatia por quem tinha fé ou ideais espirituais. Talvez a opinião de Chekhov seja mais bem expressa por Masha que, em Três irmãs, diz: “Parece-me que o homem precisa ter fé ou buscá-la, senão a sua vida é vazia, bem vazia.” Chekhov não se preocupava abertamente com a questão abstrata da existência de Deus. Como disse a Suvorin, os escritores deviam saber que esse tipo de coisa não se pergunta. Mas ele adotava o conceito de religião como um modo de vida, um código moral básico; para ele, religião era isso, e achava que era assim também para o homem simples da Rússia.

Em 1899, quando publicou Ressurreição, Tolstoi era mais famoso como crítico social e dissidente religioso do que como escritor de ficção. Foi o ataque religioso do romance às instituições do Estado dos czares — a Igreja, o governo, os sistemas jurídico e penal, a propriedade privada e as convenções sociais da aristocracia — que o tornou, de longe, o romance mais vendido em vida do autor. Quanto mais a Igreja e o Estado atacavam Tolstoi, maior o séquito do escritor, até que, finalmente, ele foi excomungado em 1901. A intenção da excomunhão fora provocar uma onda de ódio popular a Tolstoi, e houve reacionários e ortodoxos fanáticos que responderam à caça ao Tolstoi. Recebeu ameaças de morte e cartas agressivas, e o bispo de Kronstadt, famoso pelo apoio aos nacionalistas extremados, chegou a escrever uma oração pela morte do escritor que foi muito divulgada pela imprensa de direita. Mas para cada mensagem ameaçadora Tolstoi recebeu cem cartas de apoio de aldeias do país inteiro. As pessoas lhe escreviam para contar abusos do governo local ou para lhe agradecer a condenação ao czar no famoso artigo “Não me posso calar”, escrito em resposta à execução dos revolucionários desde 1905. De repente, milhões de pessoas que nunca tinham lido romances começaram a ler os de Tolstoi. E por toda parte aonde ia o escritor, surgiam multidões imensas para cumprimentá-lo — muito maiores do que as aparecidas para receber o czar.

Ainda que o anarquismo cristão de Tolstoi fosse motivado pelo anseio de pertencer a uma livre comunidade de amor e fraternidade cristãos, a origem pessoal da sua religião era o medo da morte, que ficava mais intenso a cada ano que passava. A morte foi uma obsessão durante toda a sua vida e em toda a sua arte. Ele era criança quando os pais morreram; depois, quando jovem, perdeu também o irmão Dmitri, episódio inesquecível que descreveu na cena da morte de Nicolai Levin, irmão de Konstantin, em Anna Karenina. Tolstoi tentava com desespero racionalizar a morte como parte da vida. “Os que temem a morte temem-na porque ela lhes surge como vazio e treva”, escreveu em “Sobre a vida” (1887), “mas veem vazio e treva porque não veem vida.” Depois, talvez por influência de Schopenhauer, ele passou a ver a morte como dissolução da personalidade em alguma essência abstrata do universo. Mas nada disso era convincente para os que o conheciam bem. Como explicou Chekhov numa carta a Gorki, Tolstoi se apavorava com a própria morte, mas não queria admitir, e se acalmava lendo as Escrituras. 

Tolstoi tem uma abordagem mística de Deus. Achava que Deus não podia ser compreendido pela mente humana, apenas sentido por meio do amor e da oração. Para ele, a oração é um momento de consciência da divindade, um momento de êxtase e liberdade no qual o espírito se liberta da personalidade e se funde com o universo. De fato, a sua abordagem mística tinha afinidades em comum com o modo de oração dos eremitas do Optina. No entanto, a divisão entre Tolstoi e a Igreja russa era fundamental e nem mesmo o Optina podia satisfazer as suas exigências espirituais. Ele passou a rejeitar as doutrinas da Igreja — a Trindade, a Ressurreição, toda a noção de um Cristo divino — e, em vez delas, passou a pregar uma religião prática baseada no exemplo de Cristo como ser humano vivo. 

A pobreza e a desigualdade, a crueldade e a opressão — nenhum cristão num país como a Rússia podia ignorar. Ali estava a base religiosa da crise moral de Tolstoi e da renúncia à sociedade a partir do final da década de 1870. Cada vez mais convencido de que o verdadeiro cristão tinha de viver como Jesus ensinara no Sermão da Montanha, Tolstoi prometeu vender a sua propriedade, distribuir o dinheiro entre os pobres e viver com eles em fraternidade cristã. Em essência, Tolstoi era um anarquista, a sua crença rejeitava todas as formas de Igreja e autoridade estatal. Mas Tolstoi não era revolucionário. Rejeitava a violência dos socialistas. Era pacifista. Na sua opinião, a única maneira de combater a injustiça e a opressão era obedecer aos ensinamentos de Cristo.

Pelas 4 da madrugada de 28 de outubro de 1910, Tolstoi, de forma sorrateira, sai de casa em Iasnaia Poliana, apanha uma carruagem até à estação vizinha e compra uma passagem de terceira classe para Kozelsk, estação do Optina Pustin. Com 82 anos, renunciava a tudo — a mulher e os filhos, o lar da família, no qual vivera quase cinquenta anos, os camponeses e a carreira literária — para se refugiar no mosteiro. As discussões intermináveis com a esposa Sónia, devidas principalmente às opiniões religiosas dele, tinham tornado insuportável a vida em casa. Ele queria paz e silêncio nos seus últimos dias. O mosteiro não ficava longe da propriedade de Iasnaia Poliana, sob a direção dos monges do Optina. Nos trinta anos anteriores, em várias ocasiões ele andara até lá como um camponês para acalmar a mente perturbada conversando sobre Deus com o ancião Amvrosi. A vida ascética dos eremitas do Optina era uma inspiração para Tolstoi. Na verdade, a busca da fé foi elemento constante da vida e da arte de Tolstoi. Toda a sua identidade ligava-se à busca de significado e perfeição espirituais, e ele se inspirava na vida de Cristo. Tolstoi pensava em Deus em termos de amor e unidade. Queria sentir-se parte de uma comunidade. Esse era o ideal que sempre procurou na simbiose com o campesinato. Para Tolstoi, Deus é amor: onde há amor, há Deus. O âmago divino de todos os seres humanos está na compaixão e na capacidade de amar. O pecado é a falta de amor. Anna Karenina, isolada e recolhida totalmente sobre si mesma, estava destinada a perecer no universo de Tolstoi. No camponês Karataiev, de Guerra e Paz, sintetiza o amor através do sofrimento por outros seres humanos.

Tolstoi morreu a 20 de novembro de 1910. Em 1917 viria a Revolução. Em março de 1917 (ainda era fevereiro na Rússia que seguia o calendário Juliano) os revolucionários derrubaram a monarquia do Czar Nicolau II. Mas seria em novembro (outubro na Rússia) que os Bolcheviques derrubariam o governo provisório que era apoiado pelos partidos socialistas moderados, impondo o verdadeiro socialismo soviético. Revolução de 1917 obscureceu aos nossos olhos a ameaça que a leitura simples que Tolstoi fazia dos Evangelhos representava para a Igreja e para o Estado. Na década após a sua excomunhão, 1900, Tolstoi reuniu à sua volta um partido verdadeiramente nacional. O seu anarquismo cristão era extremamente atraente para o campesinato e, desse modo, percebido como grande ameaça à Igreja oficial e até ao Czar. Toda a revolução social na Rússia estava fadada a ter base espiritual, e até os socialistas mais ateus tinham consciência da necessidade de dar conotações religiosas às suas metas declaradas.

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