A vida no deserto é extremamente precária. Os nómadas por natureza sofrem de subnutrição; também competem ferozmente uns contra os outros para garantir a satisfação das suas necessidades básicas. O único modo de sobreviver é pertencer a um grupo bastante unido; sozinho, um beduíno não tem nenhuma possibilidade de sobreviver. Assim, os nómadas se juntam em grupos autónomos, agrupados por laços de sangue (clãs) ou parentesco em grupos maiores formando tribos. Estão unidos por intermédio de uma ancestralidade comum, real ou mítica. Os árabes, contudo, em geral não fazem distinção entre clãs e tribos. Para evitar que as tribos se tornassem muito grandes e difíceis de controlar, os grupos constantemente se reconfiguram. Era essencial cultivar uma ardente e absoluta lealdade ao qawm e a seus aliados. Somente a tribo poderia garantir a sobrevivência dos indivíduos, e isso quer dizer que não havia lugar para o individualismo.
Nem a Pérsia nem Bizâncio pensavam em invadir aquela região desolada e ninguém poderia sequer imaginar que nela estava prestes a nascer uma nova religião que logo se tornaria uma grande potência mundial. Nas terras civilizadas, muitos árabes se converteram ao cristianismo e, no século IV, formaram sua própria Igreja Siríaca. Mas, em geral, os beduínos árabes da Arábia Deserta desconfiavam tanto do judaísmo como do cristianismo, mesmo percebendo que essas religiões eram mais sofisticadas que a sua.
Ao se afiliar à Abissínia, Bizâncio encorajou o seu governante, o negus, a invadir o Iémen, para submetê-lo à suserania de Constantinopla. Contra a ameaça da Abissínia, os árabes do Sul pediram auxílio à Pérsia dos sassânidas. Finalmente, em 570, o rei Cosroes invadiu a região e o orgulhoso reino do Sul se tornou colónia da Pérsia. Dessa vez foi a heresia cristã do nestorianismo (que afirmava a existência de duas naturezas em Cristo, uma humana e outra divina), protegida pela Pérsia, que se tornou religião oficial. Os árabes beduínos de Hedjaz e Najd tinham imenso orgulho de seus vizinhos ao sul da Arábia e viram a sua queda como uma catástrofe. Inevitavelmente, o judaísmo e o cristianismo se tornaram suspeitos. Depois da morte de Maomé, os exércitos muçulmanos invadiram as fronteiras a norte com Bizâncio e a Leste com a Pérsia sassânida. Aí os árabes estavam profundamente ressentidos com os poderes locais e prontos para tentar a sorte com o islão.
No começo do século VII, os árabes da Arábia Central estavam cercados por fações dissidentes do cristianismo: no Sul, estava a majestosa igreja cristã de Najran, que os beduínos tanto admiravam, embora mantivessem sua desconfiança em relação a esses sistemas religiosos e estivessem decididos a continuar independentes das grandes potências. Ao mesmo tempo, havia um sentimento de insatisfação. Os árabes se sentiam inferiores tanto religiosa como politicamente. Mas parecia haver poucas chances de formação de um Estado beduíno unificado. Durante séculos, os árabes do Hedjaz e Najd viveram agrupados em tribos nômadas e em constante pé de guerra. Com o passar dos anos, desenvolveram um modo de vida altamente especializado, que se tornara comum na península pelo século VI d.C. Mesmo os árabes que viviam em cidades e assentamentos organizavam-se de acordo com o antigo etos pastoral: ainda criavam camelos e viam-se como filhos do deserto.
O mundo arábico é um mundo semítico. O círculo, o quadrado (representando os quatro cantos do mundo) e os 360 símbolos parecem ter vindo da antiga religião suméria. O ano sumério era composto por 360 dias, mais cinco dias santos adicionais, passados, por assim dizer, “fora do tempo”, na realização de cerimônias especiais que ligavam o céu e a terra. Em termos árabes, esses cinco dias especiais talvez fossem representados pela peregrinação do hajj, que acontecia uma vez por ano e era feita por todos os árabes da península. O hajj começaria na Caaba e se encaminharia aos vários santuários fora de Meca, possivelmente dedicados a outros deuses. O hajj originalmente acontecia durante o outono, e as várias cerimónias podem ter sido um modo de acompanhar o sol poente para que viessem as chuvas do inverno. Os peregrinos iriam em grupo até ao vale de Muzdalifa, morada do Deus Trovão; fariam uma vigília noturna na planície em volta do monte Arafat, a aproximadamente 25 Km de Meca; atirariam pedras nos três pilares sagrados de Mina e, finalmente, ofereceriam um sacrifício animal. Hoje ninguém entende qual o significado desses ritos e, no tempo de Maomé, é provável que os próprios árabes já tivessem esquecido o significado original, embora continuassem fervorosamente ligados à Caaba e aos outros santuários da Arábia, realizando os rituais com devoção.
Os rituais ajudam a desenvolver uma postura interior. A secularização das sociedades desviou as pessoas da participação desse tipo de atividade simbólica. Tal atividade arquetípica passou para o artista, o melhor detentor de um imaginário criador de símbolos. Em ritos como a tawwaf, ou os rituais do hajj, os árabes estavam criando um tipo especial de arte prática, por meio da qual descobriam sentido ou relevância que não se podem descrever em palavras com facilidade. Provavelmente, tinham consciência, em algum nível profundo, embora inarticulado da natureza simbólica e figurativa daquilo que esta celebração cerimoniosa representa. Talvez seja particularmente difícil para os republicanos apreciar isso, devido ao facto de algumas formas de agnosticismo encararem o ritual com um preconceito supersticiosamente equivalente, com suspeição e hostilidade.
Quando Maomé nasceu na cidade de Meca, por volta do ano 570 da era cristã, nenhuma das potências se importava com a Arábia. A Pérsia e o Império Romano Bizantino estavam imobilizados numa desgastante luta entre si que terminou pouco antes da morte de Maomé. Ambos estavam ansiosos por estreitar laços com os árabes do Sul, na região onde hoje é o Iémen. O reino da Arábia do Sul era diferente do resto da região: como tinha o auxílio das chuvas trazidas pelas monções, era uma região rica e fértil, detentora de uma cultura antiga e sofisticada. As intratáveis estepes da Arábia eram um ermo aterrador, habitado por gente do deserto a quem os gregos chamavam “sarakenoi” (povo que vive em tendas). Por isso, naquela região desolada ninguém poderia imaginar que nela estava prestes a nascer uma nova religião que logo se tornaria uma grande potência mundial.
A muruwah supria muitas funções de uma religião, dando aos árabes uma ideologia e uma visão que os capacitava a encontrar sentido em sua perigosa existência. Era uma religião, contudo, totalmente terra-a-terra. A tribo era o valor sagrado; os árabes não tinham a noção de vida após a morte e o indivíduo não tinha um destino único e eterno. A única imortalidade que um homem ou uma mulher poderia obter estava na tribo e na continuação do espírito desta. Cada um tinha a obrigação de cultivar a muruwah como forma de garantir a sobrevivência da tribo. Assim, a tribo tomava conta de si mesma. Esperava-se de seu chefe que cuidasse dos membros mais fracos do grupo e distribuísse os bens e as posses de modo igual. A generosidade era uma virtude importante: um chefe demonstrava poder e confiança (logo, o poder de sua tribo) por meio da hospitalidade larga e generosa para com os membros da tribo e seus confederados de outros grupos.
Hospitalidade e generosidade ainda são virtudes supremas para os árabes. Uma tribo hoje rica poderia estar na miséria amanhã, e se fosse egoísta durante os bons tempos quem a auxiliaria em sua hora de necessidade? Mas o cultivo da generosidade também ajudava os árabes a se elevar acima da árdua luta pela sobrevivência, não se preocupando com o amanhã. Ela estimulava a indiferença aos bens materiais, o que era essencial numa região onde não havia o bastante para todos, nem mesmo o essencial. Essa abordagem também delineava o profundo fatalismo da muruwah: o darh (tempo ou destino) era uma dura realidade e tinha de ser aceito com dignidade. A vida seria impossível se as pessoas não aceitassem que alguns desastres são inevitáveis. Os árabes, portanto, acreditavam firmemente que nada podia ser feito para prorrogar o término (ajal) da vida de um homem ou para assegurar provisões (rizq) suficientes de comida.
De facto, a Arábia era considerada uma região sem Deus, e nenhuma das religiões mais avançadas, associadas à modernidade e ao progresso, havia conseguido entrar nela. É verdade que havia umas poucas tribos judaicas de proveniência duvidosa nos assentamentos agrícolas de Yathrib (futura Medina), Khaybar e Fadak, mas esses judeus, cuja religião era de natureza algo rudimentar, eram praticamente indiscerníveis de seus vizinhos árabes. Nas terras civilizadas muitos árabes se converteram ao cristianismo e, no século IV, formaram a sua própria Igreja Siríaca. Mas, em geral, os beduínos, árabes da Arábia Deserta, desconfiavam tanto do judaísmo como do cristianismo, mesmo percebendo que essas religiões eram mais sofisticadas que a sua. Sabiam que as potências vizinhas estavam prontas para usá-las como forma de controlo imperial. Isso havia ficado tragicamente aparente no reino do Iémen, que perdeu para o império Sassânida a sua independência em 570, ano do nascimento de Maomé, convertido a uma satrapia persa. A heresia cristã do nestorianismo (que afirmava a existência de duas naturezas em Cristo, uma humana e outra divina), protegida pela Pérsia, tornou-se religião oficial. Os árabes beduínos de Hedjaz e Najd tinham imenso orgulho de seus vizinhos ao sul da Arábia e viram a sua queda como uma catástrofe. Inevitavelmente, o judaísmo e o cristianismo se tornaram suspeitos.Bizâncio encorajara os árabes das fronteiras a se converter por meio da construção de mosteiros e centros de culto. A tribo dos ghassan, que invernava na fronteira de Bizâncio, acabou se convertendo ao cristianismo monofisista e se tornou confederada dos bizantinos. Os gassânidas formaram um estado tampão de Bizâncio cuja função, supõe-se, era proteger o império cristão do império zoroastrista da Pérsia. Mas a Pérsia conseguiu retaliar. Os árabes lachmidas, a leste da Síria, tornaram-se nestorianos, uma fé também favorecida pelos árabes nas regiões mesopotâmicas do império persa. Os sassânidas, por consequência, também indicaram os árabes lachmidas como governantes de um estado tampão, com capital em Hira, para proteger as suas próprias fronteiras. Mas tanto a Pérsia como Bizâncio se retiraram dos estados árabes: como medida económica, o imperador Heráclio cortou os subsídios aos gassânidas durante a guerra contra a Pérsia, por volta de 584, e o rei Cosroés deu fim ao regime lachmida por volta de 602, designando governantes persas para substituir os árabes. Quando, cerca de trinta anos depois, após a morte de Maomé, os exércitos muçulmanos invadiram a região, encontraram os árabes profundamente ressentidos com os poderes locais e prontos para tentar a sorte com o islão.
O sistema tribal e o antigo paganismo haviam servido bem aos beduínos por séculos, mas, durante o século VI, a vida havia mudado. Mesmo que a maior parte da península arábica estivesse fora da civilização dominante, os árabes começavam a ter consciência de algumas das ideias e motivações dessa civilização. Alguns talvez tivessem ouvido falar, por exemplo, na noção religiosa de vida após a morte, que faz da vida do indivíduo um valor supremo. Como se ajusta isso ao antigo ideal comunitário do tribalismo? Os árabes que haviam começado a travar relações comerciais com os países civilizados voltavam com histórias impressionantes, e os poetas descreviam as maravilhas da Síria e da Pérsia. Mas parecia que os árabes não poderiam aspirar a tanto poder e esplendor. O sistema tribal impossibilitava-os de juntar os poucos recursos de que dispunham e encarar o mundo como o povo unificado que tinham apenas vaga consciência de ser. As tribos pareciam presas num ciclo sem fim de guerras e vendetas: uma rixa de sangue levava inevitavelmente a outra, ao mesmo tempo que novos indícios de individualismo minoravam sensivelmente o valor do etos comunitário.
Durante o século VI, uma tribo emigrara da problemática região da Arábia do Sul para o oásis de Yathrib, estabelecendo-se junto às tribos judaicas. Prosperaram com a agricultura e, no entanto, achavam que o sistema tribal simplesmente não funcionava quando não estavam percorrendo vastos territórios. No começo do século VII, oásis inteiros pareciam imersos num ciclo crónico de violência e guerra. Mas em Meca, a tribo dos coraixitas [quraysh], na qual nascera Maomé, tornara-se a mais poderosa da Arábia. Mas vivia um tipo de mal-estar sombrio, já que também sentia que a antiga ideologia não a tinha preparado para a vida urbana. Os coraixitas haviam-se estabelecido em Meca por volta do fim do século V.
Quando Maomé começou a pregar em Meca, era reconhecido por todos que a Caaba era dedicada a al-Llah, o Deus Supremo dos árabes pagãos, a despeito da efígie de Hubal. Por volta do começo do século VII, al-Llah se tornara mais importante que nunca na vida religiosa de muitos árabes. Muitas religiões primitivas mantêm a crença num Deus Supremo, às vezes chamado Deus do Céu. Acreditava-se que tivesse criado o céu e a terra e depois se retirado, como que exaurido pelo esforço. As pessoas perdiam o interesse nesse ser transcendente, que desaparecera de vista, e seu lugar era tomado por divindades mais atrativas e acessíveis. Deusas da fertilidade, em particular, afetavam de modo mais imediato as vidas de homens e mulheres, depois que se estabeleciam e começavam a cultivar a terra. Podemos ver isso nas Escrituras judaicas. Os antigos israelitas, ao se estabelecerem em Canaã, começaram a render culto a Baal, Anat e Ashtaroth, paralelamente a seu deus Iahweh. Parecia estupidez negligenciar essas divindades, que conheciam a terra muito melhor que eles. Mas em tempos de perigo se voltavam uma vez mais para Iahweh.
Durante o período de vida nómada, as funções de fertilidade das deusas árabes provavelmente tinham sido esquecidas, de modo que al-Llah, o Deus Supremo, tornou-se mais importante. O Corão deixa claro que todos os coraixitas acreditavam que al-Llah havia criado os céus e a terra. Isso era um dado a priori. Mas alguns deles, ao que parece, estavam dispostos a ir mais longe. No início do século VII, a maioria dos árabes passou a acreditar que al-Llah, o Deus Supremo, era o mesmo deus adorado por judeus e cristãos. Os árabes convertidos ao cristianismo chamavam seu Deus de “al-Llah” e parece que faziam o hajj juntamente com os pagãos. Mas os árabes tornavam-se cada vez mais conscientes de que al-Llah não lhes enviara uma Escritura. Podemos ver pelas primeiras biografias de Maomé que os árabes pagãos sentiam grande respeito pelo Povo do Livro, detentor de um conhecimento que eles não possuíam. Alguns deles decidiram procurar uma religião autêntica e não associada às grandes potências nem corrompida por sua conexão com o imperialismo e com o controlo estrangeiro. Já no século V, o historiador cristão palestino Sozomenus nos conta que alguns árabes haviam redescoberto a religião de Abraão e continuavam a praticá-la. Abraão, a rigor, não havia sido nem judeu nem cristão. Ele viveu antes que Moisés trouxesse a Torá ao povo de Israel. Na Arábia, durante o período em que Maomé recebeu as revelações, encontramos alguns árabes tentando praticar a religião de Abraão.
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