segunda-feira, 22 de maio de 2023

Arábia



A vida no deserto é extremamente precária. Os nómadas por natureza sofrem de subnutrição; também competem ferozmente uns contra os outros para garantir a satisfação das suas necessidades básicas. O único modo de sobreviver é pertencer a um grupo bastante unido; sozinho, um beduíno não tem nenhuma possibilidade de sobreviver. Assim, os nómadas se juntam em grupos autónomos, agrupados por laços de sangue (clãs) ou parentesco em grupos maiores formando tribos. Estão unidos por intermédio de uma ancestralidade comum, real ou mítica. Os árabes, contudo, em geral não fazem distinção entre clãs e tribos. Para evitar que as tribos se tornassem muito grandes e difíceis de controlar, os grupos constantemente se reconfiguram. Era essencial cultivar uma ardente e absoluta lealdade ao qawm e a seus aliados. Somente a tribo poderia garantir a sobrevivência dos indivíduos, e isso quer dizer que não havia lugar para o individualismo.

A ética tribal exigia certas habilidades técnicas e sociais, assim como atributos pessoais, cuidadosamente cultivados. Os árabes na península não foram sempre nómadas. O camelo, que tornara a sua vida possível, só foi domesticado há cerca de 4 mil anos. Com sua capacidade única de armazenar água, podia viajar longas distâncias no deserto a uma velocidade excepcional. 

Originalmente, os árabes haviam sido agricultores nas terras mais urbanizadas do Crescente Fértil. Após longa experiência com a criação de animais para o transporte, os mais aventureiros dentre eles se dirigiam às regiões áridas e inóspitas das estepes, durante os períodos de estiagem e seca. Ganhar a vida em tão difíceis circunstâncias era um gesto de rebeldia e um desafio à sorte cruel, exibindo, talvez, a vontade de provar que os árabes podiam sobreviver nessas circunstâncias praticamente impossíveis. 

Gradualmente, foram entrando nas regiões mais desertas e se distanciando dos centros urbanos. No verão os camelos pastavam em frente dos poços de que cada tribo se apropriava e, no inverno, vagavam pelas estepes, cobertas com rica vegetação que, após as chuvas, era uma bênção para seus animais. Bebiam leite de camela e comiam a carne dos animais que caçavam. Mas os nómadas não podiam sobreviver sozinhos: precisavam do auxílio dos agricultores, que lhes forneciam trigo e tâmaras, essenciais para o complemento de sua magra dieta. À medida que os nómadas gradualmente penetravam as regiões desertas do Crescente Fértil e da península arábica, eram seguidos por agricultores pioneiros que se estabeleciam nos oásis, irrigavam as proximidades e, até certo ponto, faziam o deserto florescer. Por sua vez, os agricultores dependiam da maior mobilidade dos nómadas, que os abasteciam com produtos e mercadorias de outras regiões. Como eram guerreiros mais hábeis, os nómadas asseguravam a proteção das comunidades sedentárias, em troca de uma parte da colheita.

Nem a Pérsia nem Bizâncio pensavam em invadir aquela região desolada e ninguém poderia sequer imaginar que nela estava prestes a nascer uma nova religião que logo se tornaria uma grande potência mundial. Nas terras civilizadas, muitos árabes se converteram ao cristianismo e, no século IV, formaram sua própria Igreja Siríaca. Mas, em geral, os beduínos árabes da Arábia Deserta desconfiavam tanto do judaísmo como do cristianismo, mesmo percebendo que essas religiões eram mais sofisticadas que a sua.

Ao se afiliar à Abissínia, Bizâncio encorajou o seu governante, o negus, a invadir o Iémen, para submetê-lo à suserania de Constantinopla. Contra a ameaça da Abissínia, os árabes do Sul pediram auxílio à Pérsia dos sassânidas. Finalmente, em 570, o rei Cosroes invadiu a região e o orgulhoso reino do Sul se tornou colónia da Pérsia. Dessa vez foi a heresia cristã do nestorianismo (que afirmava a existência de duas naturezas em Cristo, uma humana e outra divina), protegida pela Pérsia, que se tornou religião oficial. Os árabes beduínos de Hedjaz e Najd tinham imenso orgulho de seus vizinhos ao sul da Arábia e viram a sua queda como uma catástrofe. Inevitavelmente, o judaísmo e o cristianismo se tornaram suspeitos. Depois da morte de Maomé, os exércitos muçulmanos invadiram as fronteiras a norte com Bizâncio e a Leste com a Pérsia sassânida. Aí os árabes estavam profundamente ressentidos com os poderes locais e prontos para tentar a sorte com o islão.

No começo do século VII, os árabes da Arábia Central estavam cercados por fações dissidentes do cristianismo: no Sul, estava a majestosa igreja cristã de Najran, que os beduínos tanto admiravam, embora mantivessem sua desconfiança em relação a esses sistemas religiosos e estivessem decididos a continuar independentes das grandes potências. Ao mesmo tempo, havia um sentimento de insatisfação. Os árabes se sentiam inferiores tanto religiosa como politicamente. Mas parecia haver poucas chances de formação de um Estado beduíno unificado. Durante séculos, os árabes do Hedjaz e Najd viveram agrupados em tribos nômadas e em constante pé de guerra. Com o passar dos anos, desenvolveram um modo de vida altamente especializado, que se tornara comum na península pelo século VI d.C. Mesmo os árabes que viviam em cidades e assentamentos organizavam-se de acordo com o antigo etos pastoral: ainda criavam camelos e viam-se como filhos do deserto.

A Caaba, em Meca, e os rituais ali praticados, parecem ter respondido a importantes necessidades religiosas e psicológicas na Arábia antes de Maomé, que sentiu a misteriosa atração da Caaba durante toda a vida e que as circunvoluções rituais, tão arbitrárias e tediosas para um espectador, foram extremamente importantes na vida do povo de Meca. Não era uma obrigação enfadonha que as pessoas executavam de má vontade ou negligentemente. Ao que parece, gostavam de fazê-la e a consideravam parte de sua rotina diária. Gostavam de encerrar um dia agradável de caça fazendo as voltas à Caaba antes de retornar para casa; podiam estar se dirigindo ao mercado próximo para estar com amigos e então decidir, em vez disso, passar o fim de tarde repetindo o ritual, quando seus companheiros não apareciam. 

O mundo arábico é um mundo semítico. O círculo, o quadrado (representando os quatro cantos do mundo) e os 360 símbolos parecem ter vindo da antiga religião suméria. O ano sumério era composto por 360 dias, mais cinco dias santos adicionais, passados, por assim dizer, “fora do tempo”, na realização de cerimônias especiais que ligavam o céu e a terra. Em termos árabes, esses cinco dias especiais talvez fossem representados pela peregrinação do hajj, que acontecia uma vez por ano e era feita por todos os árabes da península. O hajj começaria na Caaba e se encaminharia aos vários santuários fora de Meca, possivelmente dedicados a outros deuses. O hajj originalmente acontecia durante o outono, e as várias cerimónias podem ter sido um modo de acompanhar o sol poente para que viessem as chuvas do inverno. Os peregrinos iriam em grupo até ao vale de Muzdalifa, morada do Deus Trovão; fariam uma vigília noturna na planície em volta do monte Arafat, a aproximadamente 25 Km de Meca; atirariam pedras nos três pilares sagrados de Mina e, finalmente, ofereceriam um sacrifício animal. Hoje ninguém entende qual o significado desses ritos e, no tempo de Maomé, é provável que os próprios árabes já tivessem esquecido o significado original, embora continuassem fervorosamente ligados à Caaba e aos outros santuários da Arábia, realizando os rituais com devoção.

Na Arábia, onde a vida era uma luta constante, o santuário deve ter sido uma necessidade. Lá, os árabes podiam se encontrar despreocupadamente, sabendo que as regras das vendetas tribais não teriam validade enquanto ali estivessem. Em termos práticos, isso significava que podiam negociar sem medo de ser atacados por tribos inimigas. Santuários como Meca eram em geral importantes mercados onde se realizavam feiras anuais. Mas o santuário e seus rituais provavelmente também proporcionavam um repouso espiritual essencial. 

Talvez o santuário em si, com os seus quatro cantos irradiados a partir do centro, representasse o mundo. O círculo parece ser um arquétipo: é encontrado em quase todas as culturas como símbolo da eternidade, do mundo e da psique. Representa, em termos temporais e espaciais, a totalidade: traçar um círculo ou andar em círculo — prática comum em muitas religiões — implica voltar constantemente ao ponto de partida; descobre-se que no fim está o começo. O centro do círculo, o pequeno ponto imóvel em torno do qual o mundo gira, é a eternidade, o significado último e inefável e, dando voltas e voltas, o peregrino aprendia a se reorientar e a encontrar o seu centro em relação ao mundo. A circunvolução se tornaria uma forma de meditação. Ela exigia concentração física talvez tediosa mas que tornava possível à mente se desprender. A maioria dos lugares sagrados, em todas as tradições, é considerada o centro do mundo e o primeiro lugar criado pelos deuses. Para o peregrino, o lugar está investido do encanto de todo o começo, e assim sentia estar de algum modo se aproximando do centro do poder.

Os rituais ajudam a desenvolver uma postura interior. A secularização das sociedades desviou as pessoas da participação desse tipo de atividade simbólica. Tal atividade arquetípica passou para o artista, o melhor detentor de um imaginário criador de símbolos. Em ritos como a tawwaf, ou os rituais do hajj, os árabes estavam criando um tipo especial de arte prática, por meio da qual descobriam sentido ou relevância que não se podem descrever em palavras com facilidade. Provavelmente, tinham consciência, em algum nível profundo, embora inarticulado da natureza simbólica e figurativa daquilo que esta celebração cerimoniosa representa. Talvez seja particularmente difícil para os republicanos apreciar isso, devido ao facto de algumas formas de agnosticismo encararem o ritual com um preconceito supersticiosamente equivalente, com suspeição e hostilidade.

A Caaba era o santuário mais importante, mas havia outros. As circunvoluções e o tipo de culto correntemente praticado no Monte Arafat durante o hajj pré-islâmico eram elementos essenciais em toda a península. Também o era o pedaço de terra (hima) afastado do uso profano e com direito a servir de asilo a todos os seres vivos. Nenhum dos demais santuários sobreviveu, mas sabemos de outros templos como a Caaba, em Najran, no Iémen, e em al-Abalat, ao sul de Meca. Porém, os de importância essencial são os três santuários próximos de Meca dedicados às três filhas de al-Llah (banat al-Llah). Na amuralhada cidade de Taif ficava o santuário de al-Lat, cujo nome quer dizer a Deusa, sob a responsabilidade da tribo dos thaqif; também era chamada al-Rabba, a Soberana. Em Nakhlah ficava o santuário de al-Uzza, a mais popular das três, cujo nome quer dizer a Poderosa, e, em seu santuário costeiro na cidade de Qudayd, estava Manat, deusa do destino. 

Essas deusas não eram como as do panteão greco-romano. Não eram personagens como Juno ou Palas Atena, com histórias, mitologia e personalidade próprias, nem tinham qualquer esfera específica de influência, como o amor ou a guerra. Os árabes não desenvolveram uma mitologia que explicasse a importância simbólica desses seres divinos e, embora fossem chamadas “filhas de Deus”, isso não quer dizer que fizessem parte de um panteão sofisticado. Os árabes às vezes usam termos de parentesco para denotar relações abstratas, de modo que, por exemplo, banat al-dahr (literalmente, “as filhas do tempo/do destino”), tem o significado de infortúnios ou vicissitudes. As banat al-Llah talvez fossem apenas “seres divinos”. Em seus santuários, não eram representadas por estátuas ou figuras, e sim por grandes pedras, como os símbolos de fertilidade utilizados pelos cananeus, frequentemente mencionados na Bíblia. Quando os árabes veneravam essas pedras, não o faziam de modo rudimentar e simplista, mas as viam como focos de divindade. 

Quando Maomé nasceu na cidade de Meca, por volta do ano 570 da era cristã, nenhuma das potências se importava com a Arábia. A Pérsia e o Império Romano Bizantino estavam imobilizados numa desgastante luta entre si que terminou pouco antes da morte de Maomé. Ambos estavam ansiosos por estreitar laços com os árabes do Sul, na região onde hoje é o Iémen. O reino da Arábia do Sul era diferente do resto da região: como tinha o auxílio das chuvas trazidas pelas monções, era uma região rica e fértil, detentora de uma cultura antiga e sofisticada. As intratáveis estepes da Arábia eram um ermo aterrador, habitado por gente do deserto a quem os gregos chamavam “sarakenoi” (povo que vive em tendas). Por isso, naquela região desolada ninguém poderia imaginar que nela estava prestes a nascer uma nova religião que logo se tornaria uma grande potência mundial.

muruwah supria muitas funções de uma religião, dando aos árabes uma ideologia e uma visão que os capacitava a encontrar sentido em sua perigosa existência. Era uma religião, contudo, totalmente terra-a-terra. A tribo era o valor sagrado; os árabes não tinham a noção de vida após a morte e o indivíduo não tinha um destino único e eterno. A única imortalidade que um homem ou uma mulher poderia obter estava na tribo e na continuação do espírito desta. Cada um tinha a obrigação de cultivar a muruwah como forma de garantir a sobrevivência da tribo. Assim, a tribo tomava conta de si mesma. Esperava-se de seu chefe que cuidasse dos membros mais fracos do grupo e distribuísse os bens e as posses de modo igual. A generosidade era uma virtude importante: um chefe demonstrava poder e confiança (logo, o poder de sua tribo) por meio da hospitalidade larga e generosa para com os membros da tribo e seus confederados de outros grupos. 

Hospitalidade e generosidade ainda são virtudes supremas para os árabes. Uma tribo hoje rica poderia estar na miséria amanhã, e se fosse egoísta durante os bons tempos quem a auxiliaria em sua hora de necessidade? Mas o cultivo da generosidade também ajudava os árabes a se elevar acima da árdua luta pela sobrevivência, não se preocupando com o amanhã. Ela estimulava a indiferença aos bens materiais, o que era essencial numa região onde não havia o bastante para todos, nem mesmo o essencial. Essa abordagem também delineava o profundo fatalismo da muruwah: o darh (tempo ou destino) era uma dura realidade e tinha de ser aceito com dignidade. A vida seria impossível se as pessoas não aceitassem que alguns desastres são inevitáveis. Os árabes, portanto, acreditavam firmemente que nada podia ser feito para prorrogar o término (ajal) da vida de um homem ou para assegurar provisões (rizq) suficientes de comida.

De facto, a Arábia era considerada uma região sem Deus, e nenhuma das religiões mais avançadas, associadas à modernidade e ao progresso, havia conseguido entrar nela. É verdade que havia umas poucas tribos judaicas de proveniência duvidosa nos assentamentos agrícolas de Yathrib (futura Medina), Khaybar e Fadak, mas esses judeus, cuja religião era de natureza algo rudimentar, eram praticamente indiscerníveis de seus vizinhos árabes. Nas terras civilizadas muitos árabes se converteram ao cristianismo e, no século IV, formaram a sua própria Igreja Siríaca. Mas, em geral, os beduínos, árabes da Arábia Deserta, desconfiavam tanto do judaísmo como do cristianismo, mesmo percebendo que essas religiões eram mais sofisticadas que a sua. Sabiam que as potências vizinhas estavam prontas para usá-las como forma de controlo imperial. Isso havia ficado tragicamente aparente no reino do Iémen, que perdeu para o império Sassânida a sua independência em 570, ano do nascimento de Maomé, convertido a uma satrapia persa. A heresia cristã do nestorianismo (que afirmava a existência de duas naturezas em Cristo, uma humana e outra divina), protegida pela Pérsia, tornou-se religião oficial. Os árabes beduínos de Hedjaz e Najd tinham imenso orgulho de seus vizinhos ao sul da Arábia e viram a sua queda como uma catástrofe. Inevitavelmente, o judaísmo e o cristianismo se tornaram suspeitos.

Bizâncio encorajara os árabes das fronteiras a se converter por meio da construção de mosteiros e centros de culto. A tribo dos ghassan, que invernava na fronteira de Bizâncio, acabou se convertendo ao cristianismo monofisista e se tornou confederada dos bizantinos. Os gassânidas formaram um estado tampão de Bizâncio cuja função, supõe-se, era proteger o império cristão do império zoroastrista da Pérsia. Mas a Pérsia conseguiu retaliar. Os árabes lachmidas, a leste da Síria, tornaram-se nestorianos, uma fé também favorecida pelos árabes nas regiões mesopotâmicas do império persa. Os sassânidas, por consequência, também indicaram os árabes lachmidas como governantes de um estado tampão, com capital em Hira, para proteger as suas próprias fronteiras. Mas tanto a Pérsia como Bizâncio se retiraram dos estados árabes: como medida económica, o imperador Heráclio cortou os subsídios aos gassânidas durante a guerra contra a Pérsia, por volta de 584, e o rei Cosroés deu fim ao regime lachmida por volta de 602, designando governantes persas para substituir os árabes. Quando, cerca de trinta anos depois, após a morte de Maomé, os exércitos muçulmanos invadiram a região, encontraram os árabes profundamente ressentidos com os poderes locais e prontos para tentar a sorte com o islão.

No começo do século VII, os árabes da Arábia Central estavam cercados por facções dissidentes do cristianismo: no Sul, estava a majestosa igreja cristã de Najran, que os beduínos tanto admiravam, embora mantivessem desconfiança em relação a esses sistemas religiosos e estivessem decididos a continuar independentes das grandes potências. Ao mesmo tempo, havia um sentimento de insatisfação. Os árabes se sentiam inferiores tanto religiosa como politicamente. Até que conseguissem se unir para criar um Estado beduíno e tomar as rédeas de seu destino, ainda estariam vulneráveis à exploração, correndo mesmo o risco de perder a independência, como acontecera aos árabes do sul. Mas parecia haver poucas possibilidades de formação de um Estado beduíno unificado. Durante séculos, os árabes do Hedjaz e Najd viveram agrupados em tribos nómadas e em constante pé de guerra. Com o passar dos anos, desenvolveram um modo de vida altamente especializado, que se tornara comum na península pelo século VI d.C. Mesmo os árabes que viviam em cidades e assentamentos organizavam-se de acordo com o antigo etos pastoril: ainda criavam camelos e viam-se como filhos do deserto.

Havia indivíduos possuídos que não eram tão respeitados no tempo de Maomé. Os kahins, ou profetas extáticos, assemelhavam-se aos videntes peripatéticos dos livros mais antigos da Bíblia. Não eram profetas no sentido grandioso que o termo irá assumir, mas antes adivinhos, consultados se alguém perdia um camelo ou queria que lhe lessem a sorte. Os kahins, como este tipo de adivinhos em todo o lado, com frequência tinham de ocultar a sua ignorância por meio de ambiguidades, de modo que seus “oráculos” eram normalmente uma versalhada incoerente ou ininteligível. Maomé, como veremos, não perdeu tempo com os kahins, considerando as suas profecias triviais, daninhas e sem sentido. Maomé sentiu a misteriosa atração da Caaba durante toda a vida e que as circunvoluções rituais, tão arbitrárias e tediosas para um espectador, foram extremamente importantes na vida do povo de Meca. Não era uma obrigação enfadonha que as pessoas executavam de má vontade ou negligentemente. Ao que parece, gostavam de fazê-la e a consideravam parte de sua rotina diária. Gostavam de encerrar um dia agradável de caça fazendo as voltas à Caaba antes de retornar para casa; podiam estar se dirigindo ao mercado próximo para beber vinho com amigos e então decidir, em vez disso, passar o fim de tarde repetindo o ritual, quando seus companheiros não apareciam. 

O sistema tribal e o antigo paganismo haviam servido bem aos beduínos por séculos, mas, durante o século VI, a vida havia mudado. Mesmo que a maior parte da península arábica estivesse fora da civilização dominante, os árabes começavam a ter consciência de algumas das ideias e motivações dessa civilização. Alguns talvez tivessem ouvido falar, por exemplo, na noção religiosa de vida após a morte, que faz da vida do indivíduo um valor supremo. Como se ajusta isso ao antigo ideal comunitário do tribalismo? Os árabes que haviam começado a travar relações comerciais com os países civilizados voltavam com histórias impressionantes, e os poetas descreviam as maravilhas da Síria e da Pérsia. Mas parecia que os árabes não poderiam aspirar a tanto poder e esplendor. O sistema tribal impossibilitava-os de juntar os poucos recursos de que dispunham e encarar o mundo como o povo unificado que tinham apenas vaga consciência de ser. As tribos pareciam presas num ciclo sem fim de guerras e vendetas: uma rixa de sangue levava inevitavelmente a outra, ao mesmo tempo que novos indícios de individualismo minoravam sensivelmente o valor do etos comunitário.

Durante o século VI, uma tribo emigrara da problemática região da Arábia do Sul para o oásis de Yathrib, estabelecendo-se junto às tribos judaicas. Prosperaram com a agricultura e, no entanto, achavam que o sistema tribal simplesmente não funcionava quando não estavam percorrendo vastos territórios. No começo do século VII, oásis inteiros pareciam imersos num ciclo crónico de violência e guerra. Mas em Meca, a tribo dos coraixitas [quraysh], na qual nascera Maomé, tornara-se a mais poderosa da Arábia. Mas vivia um tipo de mal-estar sombrio, já que também sentia que a antiga ideologia não a tinha preparado para a vida urbana. Os coraixitas haviam-se estabelecido em Meca por volta do fim do século V. 

Por volta de 560 a Arábia do Sul era província da Abissínia, Estado cliente de Bizâncio. Ao que parece, Abraha, o governador abissínio da Arábia do Sul, ficou com inveja do sucesso comercial de Meca e tentou invadir a cidade. O incidente recebeu adornos lendários, mas parece que Abraha se dera conta de que a Caaba havia sido fundamental para o sucesso de Meca. Para desviar os peregrinos para a Arábia do Sul, e assim atrair maior comércio, construiu um magnífico templo cristão de mármore listado em Sana’a e, diz-se, quando acampou do lado de fora de Meca com seu exército, sua intenção declarada era destruir a Caaba. Mas, ao chegar às portas da cidade, parece que o exército foi atacado por uma praga e forçado a bater em ignominiosa retirada. A libertação providencial naturalmente fez com que os coraixitas pensassem nela como milagrosa. Os abissínios haviam trazido um elefante e os habitantes de Meca ficaram fascinados com aquele animal tão grande e tão diferente. Mais tarde se disse que, ao chegar ao solo sagrado nas imediações da cidade, o elefante caiu de joelhos, recusando-se a se mexer; a seguir, Deus enviou uma revoada de pássaros vindos da costa, que lançaram pedras venenosas nos abissínios, afugentando-os e cobrindo-os com horríveis queimaduras. O Ano do Elefante se tornou extremamente popular entre os coraixitas. O próprio Maomé se sentiu tocado pela história do elefante, recontada na sura 105 do Corão.

Os coraixitas começaram a se interessar pelo comércio, combinando a nova atividade com a tradicional criação de animais. Meca ficava no lugar ideal para empreendimentos comerciais a longo prazo. O prestígio da Caaba trazia muitos árabes para o hajj todos os anos e o santuário criava um clima favorável ao comércio. Meca estava convenientemente localizada na encruzilhada de duas das maiores rotas comerciais da Arábia: a Rota do Hedjaz, que corria próxima à costa leste do mar Vermelho e ligava o Iémen à Síria, Palestina e Transjordânia; e a Rota do Najr, que ligava o Iémen ao Iraque. Os coraixitas obtiveram grande sucesso e garantiram a segurança da cidade fazendo alianças com os beduínos da região. Os nómadas eram melhores soldados que os coraixitas e, em troca de ajuda militar, tinham participação em várias companhias de Meca. Cultivando uma astuta e calculada diplomacia, conhecida como hilm, os coraixitas se tornaram a mais poderosa tribo da Arábia durante o século VI.

Depois disso, muitos clãs passaram a competir ferozmente e, no tempo da infância de Maomé, já haviam se dividido em três grandes grupos. Alguns clãs mais fracos, incluindo o dos Hashim, a que pertencia Maomé, não obtiveram o mesmo sucesso e sentiam que estavam a ser deixados para trás. Em vez de dividir as riquezas de maneira equitativa, segundo a antiga ética tribal, os indivíduos juntavam grandes fortunas pessoais. Usurpavam os direitos de viúvas e órfãos, sugando suas heranças, e não tomavam conta dos membros mais fracos e mais pobres da tribo, conforme exigia o antigo costume. A nova prosperidade rompera o elo dos valores tradicionais, e muitos dos coraixitas não tão bem-sucedidos sentiam-se desorientados e perdidos. Naturalmente, os comerciantes, banqueiros e financistas mais bem-sucedidos encantavam-se com o novo sistema. Acumulavam agressivamente mais e mais capital com zelo quase religioso. Mas algumas gerações mais novas estavam se desencantando e pareciam à procura de uma nova solução espiritual e política para o mal-estar e a inquietação da cidade.

Quando Maomé começou a pregar em Meca, era reconhecido por todos que a Caaba era dedicada a al-Llah, o Deus Supremo dos árabes pagãos, a despeito da efígie de Hubal. Por volta do começo do século VII, al-Llah se tornara mais importante que nunca na vida religiosa de muitos árabes. Muitas religiões primitivas mantêm a crença num Deus Supremo, às vezes chamado Deus do Céu. Acreditava-se que tivesse criado o céu e a terra e depois se retirado, como que exaurido pelo esforço. As pessoas perdiam o interesse nesse ser transcendente, que desaparecera de vista, e seu lugar era tomado por divindades mais atrativas e acessíveis. Deusas da fertilidade, em particular, afetavam de modo mais imediato as vidas de homens e mulheres, depois que se estabeleciam e começavam a cultivar a terra. Podemos ver isso nas Escrituras judaicas. Os antigos israelitas, ao se estabelecerem em Canaã, começaram a render culto a Baal, Anat e Ashtaroth, paralelamente a seu deus Iahweh. Parecia estupidez negligenciar essas divindades, que conheciam a terra muito melhor que eles. Mas em tempos de perigo se voltavam uma vez mais para Iahweh.

Durante o período de vida nómada, as funções de fertilidade das deusas árabes provavelmente tinham sido esquecidas, de modo que al-Llah, o Deus Supremo, tornou-se mais importante. O Corão deixa claro que todos os coraixitas acreditavam que al-Llah havia criado os céus e a terra. Isso era um dado a priori. Mas alguns deles, ao que parece, estavam dispostos a ir mais longe. No início do século VII, a maioria dos árabes passou a acreditar que al-Llah, o Deus Supremo, era o mesmo deus adorado por judeus e cristãos. Os árabes convertidos ao cristianismo chamavam seu Deus de “al-Llah” e parece que faziam o hajj juntamente com os pagãos. Mas os árabes tornavam-se cada vez mais conscientes de que al-Llah não lhes enviara uma Escritura. Podemos ver pelas primeiras biografias de Maomé que os árabes pagãos sentiam grande respeito pelo Povo do Livro, detentor de um conhecimento que eles não possuíam. Alguns deles decidiram procurar uma religião autêntica e não associada às grandes potências nem corrompida por sua conexão com o imperialismo e com o controlo estrangeiro. Já no século V, o historiador cristão palestino Sozomenus nos conta que alguns árabes haviam redescoberto a religião de Abraão e continuavam a praticá-la. Abraão, a rigor, não havia sido nem judeu nem cristão. Ele viveu antes que Moisés trouxesse a Torá ao povo de Israel. Na Arábia, durante o período em que Maomé recebeu as revelações, encontramos alguns árabes tentando praticar a religião de Abraão.



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