sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Preconceito ideológico


O uso da expressão “preconceito ideológico” tornou-se, hoje, quase um expediente retórico, muitas vezes vazio, usado para descredibilizar o interlocutor, sem clarificar que ideologias ainda estão realmente em jogo. Originalmente, ideologia significava um sistema coerente de ideias sobre o mundo, a sociedade e o poder político, com uma base filosófica, moral e até antropológica. No século XIX e XX, as ideologias eram nítidas: liberalismo, socialismo, comunismo, fascismo, anarquismo, nacionalismo. Hoje, porém, vivemos num tempo pós-ideológico (ou melhor, de ideologias diluídas), onde os partidos e líderes não se movem tanto por doutrinas, mas por narrativas pragmáticas, identitárias ou emocionais. A luta pelo poder é mais simbólica e afetiva do que racional.

A partir dos anos 1960, o Ocidente entra numa fase cultural e filosófica marcada por uma crise das grandes narrativas. Ou seja, há uma crescente desconfiança em relação aos sistemas totalizantes de pensamento: humanismo clássico, Iluminismo, marxismo, ou o positivismo científico. Daí nasce o prefixo “pós-”, que indica rutura, crítica e reconfiguração. O pós-estruturalismo [França, anos 1960-70] surge como reação ao estruturalismo, que via a realidade como um sistema de estruturas estáveis (linguísticas, sociais, culturais). O pós-estruturalismo contesta essa estabilidade e propõe que o sentido é instável e depende do contexto. O sujeito não é uma essência, mas uma construção histórica e discursiva. O poder e o saber estão interligados (Foucault). Os textos e discursos não têm um significado fixo, eles se “desconstroem” (Derrida). Em resumo: o pós-estruturalismo mina a ideia de um centro fixo (verdade, sujeito, razão). O pós-modernismo [1970 a 1990] é uma sensibilidade cultural e estética, mas também um modo de pensar. Ele caracteriza-se por ceticismo em relação ao progresso e à razão moderna. Fragmenta a identidade e multiplica as perspectivas. Prevalece a imagem, do simulacro, da hiper-realidade (Baudrillard). É o fim das grandes narrativas históricas ou políticas (Lyotard). Mestiçagem, ironia, hibridismo cultural. Já não há verdades universais, mas pluralidade e jogo de representações.

Chegados ao novo milénio, dá-se a emergência da era digital e da Inteligência Artificial. Agora vivemos a ideologia do pós-humanismo. Nomes importantes como Donna Haraway, Rosi Braidotti, N. Katherine Hayles, Cary Wolfe perguntam: o que significa ser “humano” numa era de biotecnologia, inteligência artificial e crise ecológica? Esta era veio superar o “humanismo clássico”, que colocava o homem (racional, masculino, ocidental) no centro. É a interdependência entre humanos, animais, máquinas e ambiente que está em cima da mesa. É o fim da ideia antropocêntrica de que o homem é o centro e medida de tudo. Em resumo: o pós-humanismo pensa a existência num mundo onde as fronteiras entre natureza, tecnologia e sujeito humano se desfazem.

É a partir destas conceções que se considera que o “sistema” – que ainda vigora nos mapas eleitorais da Europa de cujos arranjos de geometria variável se extraem as legitimidades governativas dos países – chegou ao fim. As grandes correntes que ainda se misturam em geringonças fortuitas – social-democracialiberalismo reformista e socialismo democrático -
 que tem sido dominante na Europa depois da queda do Muro de Berlim em 1989, já não respondem com eficácia à derrocada do bem-estar do Estado Social. No estertor do liberalismo americano na forma de "neoliberalismo", entrámos no caos da Era Trump. No meio deste caos ainda não se adquiriu uma Teoria para o explicar e nos orientar. Uma teoria que inclua não apenas a arquitetura económica, mas também as ideologias do liberalismo, do globalismo e dos direitos universais. Neste final do neoliberalismo, as lideranças e as elites do Ocidente encontra-se na mesma situação como se encontraram as da União Soviética antes de cair. As elites não deixavam de seguir o mesmo guião, apesar de o cidadão comum, no seu íntimo, estar a perceber que tudo aquilo que os seus líderes diziam eram lérias. Ninguém sabe até quando é que vai vigorar este caos. Nem quando se vai estabelecer uma nova ordem que seja estável e previsível. Como se poderá imaginar, não vai ser fácil.

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