sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Húbris


Hoje já não é possível a classe política só ter contas a prestar aos seus eleitores como no tempo em que nem os juízes nem os jornalistas exerciam sobre ela qualquer vigilância ameaçadora. Por savoir-vivre ou por educação, a corrupção não era o objetivo principal do meio político. Os casos de enriquecimento ilícito eram raros.

Aristóteles definiu húbris como uma humilhação para a vítima, não por causa de qualquer coisa que tenha acontecido ou que ela tenha feito ou pudesse fazer contra si, mas meramente por desprezo seu em relação a ela. Húbris não é acerto de contas, isso é vingança. Húbris é arrogância, indiferença, cinismo, devassidão, libertinagem.

Fosse por causa e efeito, ou fosse lá porque fosse, a santa aliança entre juízes e jornalistas é coetânea dos grandes casos de corrupção na política. Domesticados lado a lado durante décadas, insurgiram-se em conjunto. Os membros dos sindicatos da magistratura e as novas gerações de jornalistas tornaram-se quase permutáveis. Juízes de espírito missionário e jornalistas impregnados de profissionalismo à americana estão convencidos de que constituem, por si sós, o contrapoder. O juiz de instrução e o jornalista de investigação são, em conjunto, o eixo deste sistema. O primeiro, quando é o procedimento judiciário a marcar o ritmo e este utiliza a imprensa como caixa de ressonância; o segundo quando o inquérito tem início no terreno jornalístico e a justiça se contenta em seguir as suas revelações. Isso permitiu que o tribunal da opinião pronunciasse o seu veredicto: “condenado!” Quem tem a última palavra é a opinião pública.

Apanhados no turbilhão inesperado da glória, havia que alimentar o moinho da comunicação social, fornecendo-lhe mais, e sempre cada vez mais grão para moer. Sempre mais casos, sempre mais inquéritos com interesse para o grande público, sempre mais processos de prestígio, sempre mais prisões preventivas iconoclastas, sempre mais surpresas.

O terceiro ato da húbris chegou durante as manhãs e tardes à praça das TVs generalistas; e à noite aos areópagos futebolísticos das TVs por cabo. A primeiras com a rubrica criminal, os casos de polícia e a loucura judiciária empacotada no comentário dos especialistas. As segundas com os comentários obscenos e obscuros acerca do sexo dos anjos fora das quatro linhas. É a escalada mediática, em termos de “tele-realidade”, desde que as câmaras entrem, de um lado os casos e os processos transformados em folhetins de sucesso para satisfazer o prazer na crónica feminina. E do outro, a violência das grandes emoções coletivas nos estádios para gáudio do macho guerreiro.

Pela imprensa tabloide e amplificada pelas redes socias, a sacrossanta proteção da vida provada foi deitada às urtigas. E de caminho e por arrasto a própria democracia. É a obsessão pela transparência levada ao extremo pelos devotos da pureza movidos pelos piores instintos da espécie humana.

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