segunda-feira, 3 de julho de 2023

O choque da expansão dos russos com os cultos xamânicos da Sibéria

 


Vasili Surikov
A Conquista da Sibéria por Iermak

Depois de os russos terem derrotado o kanato da Sibéria, em 1582, primeiro foram os caçadores de peles a entrar pela Sibéria dentro. Atrás deles foram mercenários, como os cossacos, comandados pelo herói russo Iermak, que foram tomando as ricas minas dos Urais para o seu patrono Stroganov. Só depois é que os soldados do czar se atreveram a construir fortalezas para cobrar tributos às tribos nativas. E mais tarde apareceram os missionários da igreja ortodoxa para catequizar o cristianismo aos siberianos, privando-os dos seus ancestrais cultos xamanísticos.

A Conquista da Sibéria por Iermak, do pintor Surikov, 1885, é uma movimentada cena de batalha entre os cossacos, com mosquetes e ícones, e os pagãos das tribos siberianas, com arco e flecha, a que não faltam os seus xamãs pra tocar os tambores. Esta obra de arte terá sido a que mais contribuiu para firmar essa imagem mítica do Império na consciência do povo russo. Inicialmente, o verdadeiro propósito era mais a conversão dos xamãs do que a conquista de terras. À semelhança dos missionários católicos em África e no Novo Mundo, essa conquista religiosa da estepe asiática foi muito importante para o Império russo.

Os Montes Urais, que oficialmente dividiam a estepe europeia da asiática, fisicamente não passavam de uma série de grandes colinas com extensas terras de estepe a separá-las. E o viajante que as atravessasse teria de perguntar onde ficava a cordilheira dos tão famosos Montes Urais. Isso se tornou muito importante no século XVIII, quando a Rússia se apresentou ao Ocidente como império europeu. Se queria intitular-se "Estado ocidental", a Rússia precisava construir uma fronteira cultural clara para se destacar do seu “outro asiático oriental”. A religião era a mais fácil dessas categorias. Todas as outras tribos não cristãs eram para todos os efeitos os "Tártaros", fosse qual fosse a sua origem e a sua fé (muçulmana, xamânica, budista). 

Em termos mais gerais, Sibéria, Cáucaso, e Ásia Central, eram conotadas como as terras dos  "bárbaros", segundo a nómina grega, que era sinónimo de “atraso”. A imagem do Cáucaso foi orientalizada, com as histórias que os viajantes contavam acerca das suas tribos selvagens. Os mapas do século XVIII consignavam o Cáucaso ao oriente muçulmano, embora em termos geográficos ficasse ao sul e em termos históricos fosse parte da antiga Arménia e Geórgia. O Cáucaso continha civilizações cristãs que datavam do século IV, quinhentos anos antes de os russos se converterem ao cristianismo. Foram os primeiros a adotar a fé cristã, mesmo antes de Constantino converter o nome da cidade Bizâncio ao nome de Constantinopla, em sua honra, que doravante passaria a ser a capital do Império Romano do Oriente.

Na imaginação do século XVIII, os Urais eram vistos como uma vasta cadeia de montanhas, como se criadas por Deus no meio da estepe para marcar o limite do mundo civilizado com o Oriente. Os russos do lado oeste dessas montanhas eram cristãos nos seus costumes, enquanto os asiáticos do lado leste eram descritos pelos viajantes russos como “selvagens”. Nos atlas russos do século XVIII a Sibéria era “Sibir” e se referiam a ela como “Grande Tartária”, título tomado emprestado do léxico geográfico ocidental. Os escritores sobre viagens falavam das suas tribos como os tungus, iacutos e buriatos, sem sequer mencionar a população russa instalada na Sibéria, embora já fosse considerável.  
Essa visão da Sibéria foi reforçada pela sua transformação num vasto campo de prisioneiros, os Gulag. Em expressões coloquiais, a palavra “Sibéria” tornou-se sinónimo de servidão penal. Onde quer que ocorresse, só havia crueldade e vida dura.

Os próprios russos de São Petersburgo mais instruídos amaldiçoavam o “atraso asiático” do seu país. Ansiavam por serem aceites como iguais pelo Ocidente, por entrar e fazer parte da linha principal da vida europeia. Mas, quando rejeitados ou quando sentiam que os valores da Rússia tinham sido subestimados pelo Ocidente, até o mais ocidentalizado intelectual russo tendia a se ressentir e a dar uma guinada para o orgulho chauvinista, asiático e ameaçador. Pushkin, por exemplo, era totalmente europeu na sua criação e, como todos os homens do Iluminismo, via o Ocidente como o destino da Rússia. Mas, quando a Europa condenou a Rússia por sufocar a insurreição polaca de 1831, ele escreveu um poema nacionalista, “Aos caluniadores da Rússia”, em que enfatizava a natureza asiática da sua terra natal, “dos penhascos frios da Finlândia aos penhascos fogosos de Colchis” (nome grego do Cáucaso).

No entanto, havia muito mais do que simples ressentimento com o Ocidente nessa orientação asiática. O Império Russo cresceu pela colonização, e os russos que foram para as zonas de fronteira, alguns para plantar ou comerciar, outros para fugir do domínio czar, tinham tanta probabilidade de adotar a cultura nativa quanto de impor o seu modo de vida russo às tribos locais. Os Aksakov, por exemplo, que se instalaram na estepe perto de Oremburgo, no século XVIII, usavam remédios tártaros quando adoeciam. Eles guardavam koumis, umas ervas especiais, numa bolsa de couro de cavalo, que consumiam acompanhado de uma dieta de gordura de carneiro. O comércio e o casamento eram formas universais de intercâmbio cultural na estepe siberiana, mas quanto mais se deslocavam para leste, mais os russos mudavam o seu modo de vida. Em Iakutsk, por exemplo, no nordeste da Sibéria, todos os russos falam a língua iacuta.

 Mikhail Volkonski, filho do dezembrista que teve papel importante na conquista e povoamento russo da bacia do Amur nos anos 1850, recorda ter estacionado um destacamento de cossacos numa aldeia local para ensinar russo aos buriatas. Um ano depois Volkonski voltou para ver como os cossacos estavam se saindo. Nenhum buriata conseguia conversar em russo, mas todos os duzentos cossacos falavam buriata fluentemente. O Império Russo se foi desenvolvendo pela imposição da cultura russa à estepe asiática, mas nesse mesmo processo muitos colonizadores também se tornaram asiáticos. Uma das consequências desse encontro foi uma solidariedade cultural com as colónias.

Potenkin, príncipe de Tauride, por exemplo, deliciava-se com a mistura étnica da Crimeia, que a Rússia arrancou das mãos do último kanato mongol em 1783. Para comemorar a vitória, o príncipe de Tauride construiu para si um palácio no estilo turco-moldavo, com cúpula e quatro minaretes, como uma mesquita. Na verdade, era típico que, exatamente naquele momento em que os soldados russos marchavam para leste e esmagavam os infiéis, os arquitetos de Catarina construíssem em Tsarskoie Selo aldeias e pagodes chineses, grutas orientais e pavilhões em estilo turco.

Grigori Volkonski, pai do famoso dezembrista, reformou-se como herói da cavalaria de Suvorov e foi para governador de Oremburgo, de 1803 a 1816. Na época, Oremburgo era um baluarte importante do Império Russo. Aninhada no sopé sul dos Montes Urais, era a porta de entrada na Rússia para todas as principais rotas comerciais entre a Ásia central e a Sibéria. Caravanas de camelos com mercadorias preciosas da Ásia, gado, tapetes, algodões, sedas e joias, passavam por Oremburgo a caminho dos mercados da Europa. Era dever do governador tributar, proteger e promover esse comércio. Ali Volkonski foi extremamente bem-sucedido, desenvolvendo novas rotas para Khiva e Bukhara, reinos algodoeiros importantes, que abriram caminho para a Pérsia e a Índia. Mas Oremburgo também era o último posto avançado do Estado imperial, uma fortaleza para defender os agricultores russos nas estepes do Volga das tribos nómadas: nogais e basquírios; calmuques e quirguizes. 

No decorrer do século XVIII, os pastores basquírios rebelaram-se numa série de revoltas contra o Estado czar quando colonos russos começaram a invadir os seus antigos pastos. Muitos basquírios se uniram ao líder cossaco Pugachev na rebelião contra o duro regime de Catarina, a Grande, em 1773–74. Sitiaram Oremburgo (história contada por Pushkin em "A filha do capitão") e capturaram todas as outras cidades entre o Volga e os Urais, saqueando propriedades e aterrorizando os habitantes. Depois de suprimida a rebelião, as autoridades czaristas reforçaram a cidade de Oremburgo. A partir dessa fortaleza, realizaram uma campanha violenta de pacificação contra as tribos da estepe. Essa campanha foi continuada por Volkonski, que também teve de lidar com um grave levantamento dos cossacos dos Urais. No trato com os dois, foi duríssimo. Por ordem de Volkonski, várias centenas de líderes rebeldes basquírios e cossacos foram publicamente açoitados, marcados na testa, e mandados para campos de prisioneiros no Extremo Oriente. Entre os basquírios, o governador passou a ser conhecido como “Volkonski o Severo”.

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