quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Apontamentos sobre certos intelectuais do século XX




A calamidade da Primeira Guerra Mundial intensificou a sensação de um mundo irracional, já presente no pensamento sociológico desde a década de 1890. Era como se a sociedade tivesse afundado na loucura. A civilização revelou-se fragilíssima, demasiado mórbida e doentia, à beira de um novo desastre. Esse sentimento contribuiu para o vigor cultural da década de 1920, que veio a revelar-se nada ter adiantado. A Depressão Financeira, uma crise do capitalismo de gravidade sem precedentes, foi considerado por alguns o golpe de misericórdia que se abateu depois da Guerra a que se seguiu uma pandemia da gripe pneumónica.

Já na década de 1920, os intelectuais começavam a entender que permanecer numa torre de marfim já não levava a nada. A vitória de Hitler na Alemanha confirmou essa sensação. Em maio de 1933, a queima de livros de autores considerados inaceitáveis pelos nazis, forçou a emigração de muitas figuras de destaque no mundo artístico e literário, a maior parte judeus.

A ideia de crise da civilização era generalizada. A imensa desilusão com a sociedade burguesa e a perda da fé no sistema político que a representava polarizaram a reação intelectual. O mais comum era uma inclinação para a esquerda, para alguma variante do marxismo. No entanto, uma minoria se voltava para a direita fascista. Comum a ambas as tendências, embora de formas diversas, era o sentimento de que a velha sociedade deveria ser desfeita e substituída por uma nova, baseada em ideais utópicos de renovação social.

Os intelectuais quase nunca se voltavam para a esquerda social-democrata, cuja moderação parecia fora do tempo. A Inglaterra, em boa medida incólume aos extremos políticos que se instalavam na maior parte do continente europeu, e as nações escandinavas, onde havia surgido um consenso em torno de reformas social-democratas, permaneceram relativamente alheias à tendência geral. Muitos preferiam buscar a salvação no comunismo, vendo a União Soviética como o único raio de luz na escuridão. A promessa de uma revolução comunista mundial oferecia muitas esperanças para o futuro. Os princípios marxistas da igualdade sem classes, o internacionalismo e a abolição das cadeias impostas pelo capitalismo exerciam enorme atração sobre intelectuais idealistas. A defesa aberta da violência por parte dos fascistas contra aqueles que eram considerados inimigos políticos e raciais, mais evidenciada pelo tratamento implacável dispensado aos judeus, convenceu muitos intelectuais de que só lhes restava apoiar o comunismo soviético, a força mais comprometida com o antifascismo.

Foi o caso de Eric Hobsbawm, bem depois da Segunda Guerra Mundial, que quando ainda adolescente em Berlim, assistiu aos estertores da República de Weimar. Assim formou a base do seu compromisso de toda a vida com o comunismo e com a União Soviética. Foi um compromisso que, em seu caso, sobreviveu não somente às revelações sobre os crimes de Stalin, mas também às invasões da Hungria em 1956 e à da Checoslováquia em 1968, que afastaram muitos intelectuais. As ilusões sobre o comunismo soviético mantiveram a atração sobre muitos intelectuais mesmo bem depois que os horrores do estalinismo se tornaram irrefutáveis. Alguns tinham simplesmente perdido a capacidade crítica, com a visão ofuscada pela propaganda soviética sobre a gloriosa sociedade em processo de criação.

O grande dramaturgo alemão, Bertolt Brecht, simplesmente fechou os olhos para a desumana realidade da ditadura comunista, agarrando-se à visão humanista da sociedade comunista utópica. Muitas vezes, os intelectuais simplesmente se recusavam a ver a realidade. Não podiam deixar o sonho morrer. Eram psicologicamente incapazes de abandonar a fé no comunismo como a única esperança da humanidade para criar um mundo melhor, mesmo depois que ficaram claros os indícios de que o estalinismo contrariava qualquer paródia dessa crença. Muitos tentaram ultrapassar os estalinistas, ainda mais pela esquerda, convencendo-se que Stalin traiu o verdadeiro caminho de Lenine, desviando-se do caminho da revolução, com o uso do terror eliminando implacavelmente mais os amigos do que os inimigos. E os que eram indiferentes eram enviados para os gulags.

Arthur Koestler, judeu, prolífico escritor e jornalista nascido em Budapeste, entrou para o Partido Comunista alemão em 1931, mas começou a se desiludir com a realidade soviética depois de testemunhar a coletivização forçada e a fome na Ucrânia. Mas o rompimento não veio de uma hora para a outra. Foi moldado pela Guerra Civil Espanhola. Como muitos outros intelectuais de esquerda, ele foi à Espanha para combater o fascismo. Mas ao ver naquele país que a política dos comunistas era ditada exclusivamente pelos interesses da União Soviética. E conhecendo as acusações, evidentemente forjadas, apresentadas nos julgamentos públicos de comunistas leais, abandonou o estalinismo. O zero e o infinito, de 1940, é uma reconstrução sombria da pressão psicológica exercida sobre os acusados de algum desvio em relação à ortodoxia. Koestler enfrentou diretamente o dilema crucial de muitos intelectuais de esquerda na década de 1930: como permanecer leal à única força capaz de se opor ao fascismo e derrotá-lo e, ao mesmo tempo, reconhecer que a União Soviética se tornara uma grotesca caricatura dos mais caros ideais socialistas?

Martin Heidegger comprometeu-se com o movimento nazi na Alemanha. Com a obra Ser e tempo, publicada em 1927, aproximou-se de ideais que ele via representados no movimento nazi. No centro de tudo estava a crença na “decadência espiritual” de sua época, manifesta na erosão daquilo que Heidegger chamava de “ser autêntico”, assim como a crença acessória no destino especial do povo alemão para trazer a renovação cultural. Apesar de sua mente brilhante, tudo isso chegava muito perto do misticismo romântico. Para Heidegger, a Alemanha se situava no centro do que ele descreveu como “a grande pinça formada pela Rússia, de um lado, e a América, do outro”. Ingressado no partido nazi em maio de 1933. Três semanas depois, em seu discurso de posse como reitor da Universidade de Friburgo, cargo para o qual acabava de ser nomeado, elogiou o regime, glorificou Hitler (referindo-se a ele como “a realidade alemã, presente e futura, e suas leis”) e ordenou a demissão de colegas “não arianos” da universidade (entre eles seu antigo professor e orientador Edmund Husserl).

Carl Schmitt, especialista alemão em direito constitucional, também entrou para o partido nazi em 1933. Todavia, foi mais maleável ante a realidade da nova ordem alemã. Schmitt, já conhecido desde a década de 1920, rejeitava as instituições parlamentares como verdadeira expressão da democracia e defendia um Estado soberano forte, com um líder que representasse a unidade entre governantes e governados e, quando necessário, capaz de exercer um poder decisivo e livre de toda restrição legal para servir o interesse público. Depois que Hitler ordenou o assassinato do comando de suas tropas de assalto na Noite das Facas Longas, não seria uma aberração que Schmitt publicasse um artigo intitulado “O Führer protege a lei”.

John Maynard Keynes, que abominava tanto o comunismo como o fascismo. Enquanto a Europa se voltava cada vez mais para modelos de sociedade baseados no socialismo de Estado marxista ou no autoritarismo fascista, Keynes dava uma sobrevida à democracia liberal capitalista propondo um caminho para um capitalismo reformado numa democracia reformada. Keynes, o mais brilhante economista de sua época, daria uma contribuição indispensável à política económica depois da Segunda Guerra Mundial. Sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, publicada em 1936, rejeita a ortodoxia económica clássica (baseada em saúde financeira, orçamentos equacionados e no livre mercado para buscar equilíbrio). Em seu lugar, Keynes propôs a base teórica para a intervenção do governo por meio de aumento de gastos para estimular o mercado, criar pleno emprego e assim induzir uma demanda que sustente o crescimento económico. Mas Keynes também era motivado pela noção de crise abrangente, embora sua origem na classe dominante inglesa e a relativa solidez das estruturas políticas britânicas o levassem a buscar soluções pela política económica num contexto de democracia liberal.

Depois da Segunda Guerra, avultaram os intelectuais antifascistas alemães do exílio. Entre elas estavam as dos membros da prestigiada Escola de Frankfurt (transferida para Nova York), composta por eminentes filósofos e cientistas sociais marxistas (embora não leninistas) liderados por Max Horkheimer e Theodor Adorno. Quando a vitalidade começou a retornar à vida intelectual europeia, depois de 1945, tanto o pessimismo como o otimismo em relação ao futuro eram evidentes. As profundezas em que a civilização tinha afundado evocavam — principalmente no renascimento cristão, muito influenciado pela teologia de Karl Barth — um sentimento de esperança no futuro se a sociedade conseguisse voltar aos valores e crenças do cristianismo. Renovaram-se também as esperanças, ainda que só ganhassem força na década de 1950, na democracia liberal, que enfim triunfou sobre a ameaça nazi.

Raymond Aron, destacado filósofo político francês (e antimarxista fervoroso), pensava que “podemos encerrar a era das guerras hiperbólicas sem cair de novo sob o jugo”. As lições das duas guerras tinham sido aprendidas. “A violência desenfreada não leva a nada.” A “missão de liberdade” do Ocidente, segundo o autor, demonstrava boas chances de sucesso. Para outros, no entanto, o otimismo se voltava para o sentido exatamente oposto, com suas renovadas esperanças na vitória final do comunismo. A União Soviética tinha triunfado sobre o nazismo. Os comunistas desempenharam um papel de destaque nos movimentos de resistência que combateram a ocupação nazi. No entanto, na Europa Ocidental, a crença na União Soviética diminuía. À medida que a aliança com a União Soviética dos tempos de guerra dava lugar à Guerra Fria, o Leste Europeu caía sob o jugo soviético e os horrores do estalinismo tornavam-se mais amplamente conhecidos, a esperança naquele modelo de comunismo dava lugar a um novo clima de hostilidade.

George Orwell ficara profundamente desgostoso com o que vira na Espanha durante a guerra civil a respeito da intolerância estalinista para com qualquer desvio da rígida linha partidária. Seu anticomunismo se intensificou com o pacto entre Hitler e Stalin, em 1939. E quando Stalin aliou-se à Inglaterra, depois da invasão alemã de 1941, Orwell ficou horrorizado com o facto de “esse assassino repulsivo estar temporariamente do nosso lado, de forma que os expurgos etc. de repente sejam esquecidos”.

A obra decisiva — que teve muita influência no mundo ocidental — foi a de Hannah Arendt, judia alemã exilada nos Estados Unidos e, ironicamente, ex-amante de Martin Heidegger. Em 1949, ela estava terminando a sua extraordinária análise “Origens do Totalitarismo”, que sairia dois anos depois. O livro era, em sua essência, uma explicação da ascensão do nazismo ao poder, e em suas duas partes analisava o antissemitismo e o imperialismo. A comparação com a União Soviética vinha na terceira parte, “Totalitarismo”, que saiu quase toda numa edição posterior, bastante revista. Essa secção comparativa pintava a imagem tenebrosa de um “mal radical”, fenómeno político inteiramente novo cuja essência é o “terror total”, que destrói todas as bases da lei, “rompe com todos os parâmetros que conhecemos” e gera um sistema apoiado em “fábricas de aniquilamento” nas quais “todos os homens tornaram-se equitativamente supérfluos”.



Sartre e Raymond Aron juntos, quando em 1979 foram ter com Giscard d’Estaing para interceder a favor dos ‘boat people’ (refugiados do Vietname após a guerra). Sartre é o que melhor ilustra as desventuras do ‘engagement’.

Em 15 de abril de 1980 Jean-Paul Sartre morre. Aqui vemos nas imagens do seu funeral, 18 de abril, dezenas de milhares de pessoas que o acompanham até ao cemitério de Montparnasse.



No dia seguinte, no L ‘Express, Raymond Aron presta homenagem a Sartre: “Sartre viveu o drama de um moralista perdido na selva da política”. Vidas e mundividências bem contrastantes. Aron publica na primavera de 1983 as suas Memórias, vindo a falecer em 17 de outubro 1983. Jean-François Lyotard, anuncia no Le Monde de 8 de outubro de 1983, no artigo sob o título “Tombeau de l’intelectuel”, precisamente o fim dos intelectuais, cuja ambição desde o século XVIII era pensar e representar o universal.




Simone de Beauvoir no funeral de Sartre


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