quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Um contributo para a compreensão da medicina chinesa


O encontro entre culturas e seus saberes pode criar um espaço de acréscimo mútuo, em que os ganhos não comprometam as identidades. A hibridização entre o saber médico chinês e a medicina ocidental, é um desses exemplos, mais significativo na China com o partido comunista desde Mao, mas também cada vez mais na Europa com a importação da acupunctura. É a partir de 1949 que a medicina clássica chinesa sofre uma grande desvalorização com a adoção em grande escala da medicina baseada na ciência do paradigma ocidental, imbatível quer no diagnóstico, quer no tratamento. Mas o crescimento exponencial da medicina ocidental na China deveu-se à imposição por parte do poder político. E a sua tácita imposição como um dado adquirido de forma artificial gerou um grande mal-estar nos médicos chineses formados na tradição de uma civilização milenar contínua, sem interrupções durante cinco milénios, fundamentada num arcaboiço epistemológico alheio à ciência que floresceu no Ocidente com o dealbar da modernidade. Incentivada e financiada por países ocidentais, a biomedicina estabeleceu-se na China conjugando-se com a medicina chinesa de forma híbrida.

Ora, como de facto a acupunctura só funciona em contexto, numa sociedade impregnada numa civilização cujo paradigma epistemológico não tem nada a ver com o paradigma epistemológico da sociedade ocidental, obviamente quando praticada incompetentemente e descontextualizada, só pode dar asneira. Mas, por outro lado, os estudos científicos realizados de forma inapropriada com a aplicação de agulhas em pontos específicos no corpo sem a compreensão dos mecanismos de ação da acupunctura, não poderiam ser fiáveis nas suas conclusões. Esse quadro tem levado ao questionamento sobre se os métodos adotados para comprovar a eficácia da acupuntura são os mais indicados, especialmente por partir de um paradigma com fundamentação epistemológica deslocada. Essa forma de proceder subverte o modo clássico singularizado de um método que não se pode acomodar a um escrutínio baseado numa epistemologia diferente. Contudo, vale assinalar que há trabalhos científicos com resultados diferentes, uma vez que o desenho dos ensaios clínicos levou em linha de conta as especificidades da acupunctura que caem fora do paradigma analítico da ciência ocidental.

A adoção de preceitos ocidentais na medicina chinesa provocou uma intensa perda de identidade cultural ao ser descartado o paradigma clássico taoista. A hibridização resultante da ação política favoreceu o desnivelamento na atribuição de valor entre as duas medicinas, com a balança pendendo para a ocidental. Mesmo que tenha havido ganhos mútuos no decorrer do processo, não houve uma partilha equilibrada de conhecimentos entre as partes, mas uma supremacia da ciência ocidental.

A desvalorização da medicina clássica chinesa, e a sua posterior adaptação à lógica ocidental, afetou a forma como os chineses compreenderam a melhor maneira de desenvolver a sua própria medicina. E foi o que aconteceu, por exemplo, com a acupunctura, ao serem utilizados métodos inapropriados nas investigações para validação da sua eficácia. A sobreposição de valores que a ciência ocidental impõe a outros modos de produção de conhecimento estrangula a possibilidade de haver parcerias reais de compartilhamento de saberes e cria uma falsa ideia de integração. É esse o mito do conhecimento científico e o quanto este favorece o domínio da biomedicina e a submissão de outras práticas à sua lógica, como vem acontecendo com a medicina chinesa. E é isso que traz a impossibilidade sociológica de validar as medicinas complementares e alternativas, já que tal validação é baseada no modelo de produção de evidências da ciência ocidental e em noções de “verdade” cunhadas pela biomedicina. O processo de colonização ocidental em relação aos saberes do Oriente permanece vivo pela imposição do seu modo de produzir evidências, o que proporciona uma relação de subalternidade a qualquer conhecimento que não seja produzido pelo método científico.

No que concerne à medicina clássica chinesa, pela sua cada vez maior assimilação pela biomedicina, perde-se uma estrutura caracteristicamente preventiva que produz, simultaneamente, atenção à saúde, educação para a saúde e incentivo ao autocuidado, tanto para quem a aplica como para quem a recebe. A prevenção não é obtida por uma orientação verticalizada, com a imposição do saber médico em detrimento do saber leigo; o cuidado é compartilhado e construído pela aprendizagem mútua de caminhos singularizados. Nesse sentido, a medicina clássica chinesa caminhou na mesma direção que as propostas mais atuais de cuidado à saúde. Então qual é o sentido e a quem interessa a imposição de valores e métodos a que ela tem sido submetida no Ocidente?

Para Sean Hsiang-lin, a medicina chinesa, que no início do século XX foi considerada a antítese da modernidade, passou a ser o exemplo, no final do século, da criação de um tipo diferente de modernidade. Entretanto, pode-se argumentar que não há diferentes formas de modernidade, mas que são variados os tentáculos do pensamento moderno, especialmente na sua capacidade de capturar, absorver, incorporar e transformar saberes e encapsulá-los numa nova base discursiva. A constituição moderna, abordada por Bruno Latour, explica tudo e esquece o híbrido que está no meio de um todo holístico.

Fica clara a necessidade de esclarecer a discussão sobre a imposição de valores culturais. Essa imposição é evidenciada na crença da ciência moderna como única forma de produzir conhecimento e no discurso que afirma a superioridade científica em relação ao conhecimento clássico da medicina chinesa. A tradição clássica tem como fundamento básico também a existência de uma energia vital subtil, adquirida diretamente da natureza desde o momento da conceção. Essa vitalidade pode ser reabsorvida e autoestimulada e, numa aceção cosmológica, é o produto da inter-relação humana com o cosmos. Isso implica uma prática de técnicas do seu cultivo, como é o caso das práticas meditativas e do “conhece-te a ti mesmo”.

O conhecimento da medicina clássica chinesa é um conhecimento adquirido por uma prática pessoal, em que a serenidade e a introspecção são fundamentais para cada um, autonomamente, equilibrar a sua vitalidade e desenvolver consciência corporal. Faz parte essencial da aprendizagem dos terapeutas em medicina clássica chinesa conhecer minimamente a sua própria vitalidade e ser capaz de cuidar de si mesmo para, então, cuidar da vitalidade de outras pessoas. A expertise terapêutica não se dá somente pela aprendizagem teórica, meramente cognitiva e racional, mas também se dá pelo entendimento pessoal dos fatores internos e externos que interferem positiva ou negativamente no equilíbrio energético. O desenvolvimento de seu autocuidado também faz parte da prática terapêutica e isso só é possível com o acolhimento à subjetividade e a atenção ao contexto social do sujeito. As ações de cuidado não se resumem à aplicação técnica, muito menos padronizada.

Por sua vez, a formação médica ocidental e as ações de seus praticantes estão mais para um cientista que estuda a doença do que para um terapeuta focado no sujeito doente. Com isso, priorizam-se os estudos laboratoriais de natureza analítica e desenvolve-se um modelo de cuidado prescritivo. O abandono do diagnóstico diferencial clássico e a utilização dos métodos ocidentais focados no processo patológico, para além do seu caráter despersonalizante, reduz ao mínimo a ação interna dos seus próprios recursos. Sabe-se hoje que, por exemplo, o sistema imunitário recebe uma forte influência do sistema neurológico em que o estado emocional releva o processo de cura.

Na medicina clássica chinesa o tratamento visa redirecionar o fluxo da vitalidade anímica. Como exemplo, pessoas que procuram o tratamento com dores no estômago podem referir terem sido diagnosticadas pela biomedicina com gastrite, no entanto, para a medicina chinesa, os caminhos que levaram ao desenvolvimento daquela condição não foram os mesmos, não só do ponto de vista histórico de cada um, mas especialmente das características próprias de cada organismo e sua reação aos estímulos vividos, o que conduz a tratamentos personalizados.

Além da transformação contemporânea que se operou na medicina clássica chinesa por via da introdução biomédica, ocorreu, por outro lado, um efeito boomerang em direção ao Ocidente. Após a década de 1970, fruto da atividade científica dirigida especificamente à acupuntura, outra vertente dessa técnica apareceu, com desenvolvimento de teorias e explicações científicas para a sua ação. Essa nova teoria, denominada acupuntura de base neuronal, cresceu rapidamente, permitindo o aparecimento de um movimento entre os acupuncturistas formados na medicina ocidental. 
A acupunctura científica pouco ou nada tem a ver com a acupuntura tradicional chinesa, a não ser a inserção de agulhas no corpo. A utilização da acupunctura pela população mundial, conjuntamente com outras práticas “alternativas”, tem crescido em maior velocidade do que a sua validação científica. Esse aumento tem sido relacionado com várias mudanças sociais ditas da "pós-modernidade New Age". São procurados tratamentos mais personalizados, fugindo do modelo reducionista biomédico ainda demasiado paternalista, e reducionista, priorizando a entidade patológica em detrimento da pessoa. 

A introdução da acupunctura no Ocidente fez-se pela via da sua legitimação nos termos da ciência ocidental. E esse foi o erro ao negligenciar-se que essa era uma técnica consolidada por um fundamento epistemológico de uma experiência milenar. O seu efeito foi reduzido à libertação de mediadores neuroquímicos. Dessa maneira, pode-se considerar que a orientação positivista e racionalista da acupunctura resultou num erro crasso devido a toda a sua descontextualização, dado o facto de a acupuntura, atualmente, ser cada vez mais operada nos ambientes ocidentais distantes do solo cultural chinês. Assim, o único benefício que daí resultou foi tornar-se apenas num grande negócio.

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