terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Lendo Tucídides a propósito da Guerra na Ucrânia





À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de que os factos na antiguidade foram muito próximos de como os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando os seus temas, e de outro considerando que os logógrafos [os historiadores mais antigos eram chamados logógrafos; a partir de Tucídides a palavra adquiriu uma conotação pejorativa] compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade. Uma vez que as suas histórias não podem ser verificadas, eles em sua maioria enveredaram, com o passar do tempo, para a região da fábula, tendo perdido assim a credibilidade.

Deve-se olhar os factos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais nítidas, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas. Assim, apesar de os homens estarem sempre inclinados, enquanto envolvidos numa determinada guerra, a julgá-la a maior, e depois que ela termina voltarem a admirar mais os acontecimentos anteriores, ficará provado, para quem julga por factos reais, que a presente guerra terá sido mais importante que qualquer outra ocorrida no passado.

Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando já estavam dentro dela, foi difícil recordar com precisão rigorosa os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respetivos assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito. Quanto aos factos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de alguma fonte casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o maior rigor possível, seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros. O empenho em apurar os factos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com as suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um património sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição.

O acontecimento mais importante dos tempos passados foi a guerra com os persas, e, todavia, ela foi prontamente decidida em dois combates navais (Artemísion e Salamina) e duas batalhas terrestres (Termópilas e Plateia). Mas a guerra do Peloponeso estendeu-se por longo tempo, e no seu curso a Hélade sofreu desastres como jamais houvera num lapso de tempo comparável. Nunca tantas cidades foram capturadas e devastadas, algumas pelos bárbaros outras pelos próprios helenos combatendo uns contra os outros, enquanto algumas, após a captura, sofreram uma mudança total de habitantes. Nunca tanta gente foi exilada ou massacrada, quer no curso da própria guerra, quer em consequência de dissensões civis. Assim, as histórias dos tempos anteriores, transmitidas por tradição oral, mas muito raramente confirmadas pelos factos, deixaram de ser incríveis; as referentes a terramotos, por exemplo, pois eles ocorreram em extensas regiões do mundo e foram também de grande violência; eclipses do sol, que ocorreram a intervalos mais frequentes do que os mencionados para todo o tempo passado; grandes secas, também, em algumas regiões, com a sequela da fome; finalmente - o desastre que causou mais infortúnios à Hélade e destruiu uma considerável parcela de sua população - a peste epidémica. Todos esses desastres, na verdade, ocorreram simultaneamente com a guerra, e ela começou quando os atenienses e peloponésios romperam a trégua de trinta anos, concluída entre eles após a captura da Eubeia.

Os atenienses estavam a ficar muito poderosos, e isto inquietava os lacedemónios, compelindo-os a recorrerem à guerra. As razões publicamente alegadas pelos dois lados, todavia, e que os teriam levado a romper a trégua e entrar em guerra, foram as seguintes: Há uma cidade chamada Epidamno à direita de quem navega para o golfo Jónio, e seus vizinhos imediatos são os componentes de uma tribo bárbara, os taulâncios, de raça ilíria. A cidade foi colonizada pelos corcireus e seu fundador foi Fálios, filho de Eratóclides, de origem coríntia e descendente de Héracles, vindo da metrópole de acordo com o costume antigo; alguns coríntios e outros dórios, todavia, juntaram-se aos corcireus no estabelecimento da colónia. Com o passar do tempo a cidade dos epidâmnios tornou-se grande e populosa, mas dizem que sobrevieram lutas civis por muitos anos, e em consequência de uma guerra com os bárbaros vizinhos ela ficou arruinada e sem grande parte de suas forças. Finalmente, pouco antes da presente guerra o povo baniu os aristocratas e estes, fazendo causa comum com os bárbaros e atacando a cidade saquearam por terra e por mar os habitantes que haviam ficado lá. Estes, fortemente pressionados, enviaram emissários a Corcira, por ser a metrópole, pedindo aos corcireus para não permanecerem indiferentes enquanto eles eram arruinados, e para reconciliá-los com os banidos e porem termo à guerra com os bárbaros; os emissários apresentaram o pedido sentados como suplicantes no templo de Hera. Os corcireus, todavia, não acolheram as súplicas e os mandaram de volta frustrados.

Os epidâmnios, percebendo que não receberiam qualquer ajuda de Corcira, ficaram perplexos quanto à solução para as suas dificuldades; mandaram então mensageiros a Delfos para perguntarem ao deus se deveriam entregar a cidade aos coríntios, na qualidade de fundadores, e tentar obter alguma ajuda deles. A resposta foi que deveriam entregá-la aos coríntios e recebê-los como chefes. Diante disso os epidâmnios foram a Corinto e entregaram a cidade para ser uma colónia coríntia, de acordo com o oráculo, explicando que seu fundador viera de Corinto e repetindo a resposta do oráculo; pediram aos coríntios para não ficarem apenas observando, mas para virem salvá-los. Os coríntios concordaram em levar-lhes ajuda, em parte porque a colónia lhes pertencia tanto quanto aos corcireus, e em parte também por ódio aos corcireus, pelo facto de estes, apesar de serem colonos coríntios, terem negligenciado a metrópole, já que nem nos festivais conjuntos de congraçamento eles concediam os privilégios costumeiros aos coríntios, nem começavam com um representante de Corinto os ritos iniciais nos sacrifícios, como as outras colónias faziam; ao contrário, tratavam-nos com desprezo, porque naquela época Corcira estava em igualdade de condições com os mais prósperos dos helenos em termos de riqueza, e ainda mais forte quanto à preparação para a guerra, enquanto em poder marítimo algumas vezes se vangloriava de ser grandemente superior, por causa da ocupação anterior da ilha pelos feácios cuja glória decorria de suas naus. Esta fora a razão pela qual havia continuado a desenvolver ininterruptamente a sua frota, e era de facto poderosa, pois dispunha de cento e vinte trirremes quando a guerra começou.

Desta forma os coríntios, tendo todos aqueles motivos de queixas, mandaram de bom grado a Epidamno a ajuda pedida, convidando quem quer que desejasse a ir também na qualidade de colono, e despachando como guarnição alguns ambraciotas e leucádios e um destacamento próprio. Estes seguiram para Apolónia, colónia dos coríntios, indo por terra com receio dos corcireus, que poderiam impedir-lhes a passagem se tentassem cruzar o mar. Quando, porém, os corcireus perceberam que os colonos e a guarnição haviam chegado a Epidamno, e que sua colónia tinha sido entregue aos coríntios, ficaram indignados. Navegaram imediatamente com vinte e cinco naus, e depois com uma segunda frota, e intimaram insolentemente os epidâmnios a dispensar a guarnição enviada pelos coríntios e os colonos, e também a receber de volta os exilados, pois os epidâmnios banidos tinham ido para Corcira e, apontando as sepulturas dos antepassados comuns invocando os laços de parentesco, haviam pedido aos corcireus para reinstalá-los em suas terras. Como os epidâmnios não lhes dessem ouvidos, os corcireus partiram contra eles com quarenta naus, acompanhados pelos exilados que pretendiam reinstalar e levando com eles, também, os ilírios. Parando diante da cidade, proclamaram que os estrangeiros e quaisquer epidâmnios que desejassem poderiam retirar-se em segurança; os que assim não agissem seriam tratados como inimigos. Os epidâmnios, porém, não se deixaram persuadir e os corcireus sitiaram a cidade, situada num istmo.

Os coríntios, todavia, ao receberem mensageiros de Epidamno com a notícia do cerco, prepararam uma expedição e proclamaram Epidamno colónia sua; disseram que qualquer habitante de Corinto que desejasse poderia ir para lá, na base de direitos iguais para todos, e que se alguém não estivesse disposto a viajar imediatamente, mas quisesse participar da colónia, poderia fazer um depósito de cinquenta dracmas coríntios e ficar em casa. Foi grande o número dos que viajaram, bem como dos que fizeram o depósito. Pediram também aos megáricos que os comboiassem com suas naus, no caso de os corcireus tentarem evitar a viagem; os megáricos prepararam-se para segui-los com oito naus e os peleanos da Cefalónia com quatro. Os epidáurios, aos quais foi feito um pedido semelhante, forneceram cinco naus, os hermiónios uma, os trezénios duas, os leucádios dez e os ambraciotas oito. Aos tebanos e fliásios pediram dinheiro, e aos eleus naus sem tripulação, além de dinheiro. Os próprios coríntios aprontaram trinta naus e três mil hoplitas.

Quando os corcireus souberam desses preparativos partiram para Corinto, levando representantes lacedemónios e siciónios, e exortaram os coríntios a retirar a guarnição e os colonos de Epidamno, cidade à qual não teriam qualquer direito. Se, todavia, tivessem alguma pretensão neste sentido, disseram os corcireus, estariam dispostos a submeter o assunto à arbitragem de qualquer cidade do Peloponeso escolhida por mútuo acordo, e a parte à qual a colónia fosse adjudicada tomar-se-ia senhora dela; estariam dispostos, também, a submeter o caso à decisão do oráculo de Delfos. Não queriam a guerra, mas se a resposta fosse "não", também seriam compelidos, se os coríntios forçassem tal desfecho, a fazer amigos que não desejavam (outros além dos atuais), a fim de salvaguardar seus interesses. Os coríntios responderam que, se os corcireus retirassem suas naus e os bárbaros de Epidamno, examinariam o assunto, mas que nesse ínterim não lhes ficaria bem discutir uma arbitragem, enquanto os epidâmnios estavam sitiados. A isto os corcireus replicaram que concordariam, se os coríntios, por seu turno, retirassem suas forças de Epidamno; estariam prontos, todavia, a aceitar a arbitragem sob a condição de que ambas as partes ficassem onde estavam e de que observassem uma trégua até haver uma decisão.

Os coríntios, porém, não acolheram qualquer dessas propostas, e logo que suas naus foram tripuladas e seus aliados ficaram prontos, mandaram primeiro um arauto para declarar a guerra aos corcireus; em seguida, zarpando com setenta e cinco naus e dois mil hoplitas, navegaram rumo a Epidamno para atacar os corcireus. Suas naus estavam sob o comando de Aristeu filho de Pelicos, Calícrates filho de Cálias, e Timanor filho de Timantes; sua infantaria era comandada por Arquetimo filho de Eurítmicos e Exarquias filho de Isarcos. Quando, porém, a expedição chegou a Actéon, no território de Anactório, onde fica o santuário de Apolo na embocadura do Golfo de Ambrácia, os corcireus despacharam um arauto em uma nau pequena para intimá-la a deter o avanço, e ao mesmo tempo apressaram-se a tripular as suas naus, havendo previamente reforçado as mais velhas com vigas transversais, de modo a torná-las aptas a navegar, e aceleraram os reparos das outras. Quando o seu arauto voltou sem mensagens de paz dos coríntios, e já estando as suas naus plenamente tripuladas (eram oitenta, pois quarenta estavam sitiando Epidamno), saíram em direção ao inimigo, alinharam as naus e travaram batalha; obtiveram completa vitória e destruíram quinze naus dos coríntios. No mesmo dia aconteceu também que suas tropas envolvidas no assédio de Epidamno forçaram a cidade a capitular, sob a condição de que outros imigrantes seriam vendidos como escravos, mas os coríntios ficariam acorrentados até que outra solução fosse acordada.

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