quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

De: As Benevolentes, a propósito de julgamento em Lisboa de 27 neonazis





Excerto de 'As Benevolentes', de Jonathan Littlel

«Sobretudo com as mulheres e as crianças, nosso trabalho era às vezes quase impossível, asqueroso. Os homens queixavam-se sem parar, sobretudo os mais velhos, os que tinham família. Diante daquela gente sem defesa, aquelas mães que eram obrigadas a presenciar a morte dos filhos sem poder protegê-los, que não podiam senão morrer com eles, nossos homens eram vítimas de uma extrema sensação de impotência, sentindo-se igualmente sem defesa. “Eu só quero permanecer íntegro”, disse-me um dia um jovem Sturmmann da Waffen-SS, e, embora eu compreendesse bem esse desejo, não podia ajudá-lo. A atitude dos judeus não facilitava as coisas. Blobel teve que transferir para a Alemanha um Rottenführer de trinta anos que dialogara com um condenado; o judeu, da idade do Rottenführer, tinha nos braços uma criança de cerca de dois anos e meio. Sua mulher, ao seu lado, carregava um recém-nascido de olhos azuis; o homem olhara para o Rottenführer diretamente nos olhos e lhe dissera calmamente num alemão sem sotaque: “Por favor, mein Herr, fuzile as crianças adequadamente.” — “Ele vinha de Hamburgo”, explicou mais tarde o Rottenführer a Sperath, que depois nos contara a história, “era praticamente meu vizinho, seus filhos tinham a idade dos meus.” Durante uma execução, vi uma criança agonizando na vala: o atirador devia ter hesitado, o tiro acertara muito embaixo, nas costas... Eu brincava com um amigo de caubói e índio, com pistolas feitas de lata. Era pouco depois da Grande Guerra, meu pai tinha voltado, eu devia ter cinco ou seis anos, como o menino na vala. Eu estava escondido atrás de uma árvore; quando meu amigo se aproximou, dei um pulo e esvaziei minha pistola na barriga dele, gritando: “Pan! Pan!” Ele soltou a arma, pôs as duas mãos na barriga e desmoronou girando sobre si mesmo. Recolhi sua pistola e quis devolvê-la: “Pegue. Vamos continuar a brincadeira.” — “Não posso. Sou um cadáver.” Fechei os olhos, na minha frente a criança continuava a arquejar. Depois da ação, visitei o shtetl, agora vazio, deserto, entrei nas isbás, casas baixas de pobres com calendários soviéticos e imagens recortadas de revistas nas paredes, alguns objetos religiosos, móveis rudimentares. Aquilo certamente tinha pouco a ver com a internationales Finanzjudentum. Em uma das casas, encontrei uma grande panela com água ainda a ferver no fogão; pelo chão, tigelas de água fria e uma tina. Fechei a porta, tirei a roupa e tomei um banho com aquela água e um pedaço de sabão duro. Quase não resfriei a água quente: queimava, a minha pele ficou ao rubro. Em seguida vesti-me e saí; na entrada da aldeia, as casas já ardiam. Mas minha pergunta não arredava pé, voltei mais algumas vezes, e foi assim que em outra ocasião, na beirada do fosso, uma garotinha de uns quatro anos pegou delicadamente na minha mão. Tentei desprender-me dela, mas ela se agarrava fortemente. À nossa frente, judeus eram fuzilados. “Gdje mama?”, perguntei em ucraniano à menina. Ela apontou com o dedo para a vala. Acariciei seus cabelos. Ficamos assim por vários minutos. A vertigem tomava conta de mim, sentia vontade de chorar. “Venha comigo”, disse-lhe em alemão, “não tenha medo, venha.” Dirigi-me para a entrada do fosso; ela ficou no lugar, grudada na minha mão, depois me seguiu. Levantei-a e a entreguei-a a um Waffen-SS: “Seja gentil com ela”, eu a sentir-me bastante estúpido. Sentia uma raiva louca, mas não queria zangar-me com a menina, nem com o soldado. Este desceu no fosso com a garotinha nos braços e eu me desviei abruptamente, embrenhando-me na floresta. Era uma grande e clara floresta de pinheiros, bastante arejada e banhada por uma luz suave. Atrás de mim as rajadas crepitavam. Quando eu era pequeno, brincava muito em florestas como aquela nos arredores de Kiel, onde morava depois da guerra: na verdade, brincadeiras curiosas. Meu pai me dera de aniversário uma caixa com vários volumes do Tarzan, do escritor americano E.R. Burroughs, que eu lia e relia com paixão, à mesa, na casa de banho, à noite com uma lanterna de bolso, e na floresta, como meu herói, ficava inteiramente nu e deslizava por entre as árvores e os grandes arbustos, deitava-me sobre leitos de agulhas de pinheiro secas, deliciando-me com as espetadelas na pele, agachava-me atrás de uma moita ou então de uma árvore caída em uma elevação, por cima de um carreiro, para espiar os que por ali vagavam, os outros, os humanos. Não eram brincadeiras explicitamente eróticas, eu era muito menino para isso. Mas para mim a floresta inteira tornara-se um terreno mágico, uma vasta pele tão sensível quanto a minha pele nua de criança arrepiada de frio. Mais tarde, devo acrescentar, essas brincadeiras assumiram uma feição ainda mais estranha, era ainda em Kiel, mas possivelmente depois da partida do meu pai, eu devia ter nove, dez anos no máximo: nu, pendurava-me com o cinto em um galho de árvore pelo pescoço e deixava-me cair com todo o meu peso, o sangue, congestionado, estufava o meu rosto, minhas têmporas pulsavam intensamente, meu fôlego vinha num assobio, finalmente eu me recompunha, recuperava a respiração, depois recomeçava. Brincadeiras desse género, um grande prazer, uma liberdade sem limites, eis o que antes aquelas florestas significavam para mim; agora, bosques me davam medo.»

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