sábado, 10 de setembro de 2022

Walther Rathenau



Walther Rathenau [1867-1922] – Figura emblemática da República de Weimar (que substituiu o Império alemão depois da derrota na Primeira Guerra Mundial), apesar de anticomunista e antissemita, era adepto de uma aproximação com a recém-criada União Soviética – foi assassinado em junho de 1922, tinha 55 anos, por dois ex-oficiais do Exército, fanáticos da extrema-direita (o Partido Nacional-Socialista fundado em 1920 ainda era inexpressivo). Dois dos assassinos suicidaram-se, o terceiro – o motorista – foi condenado a quinze anos de prisão. Quando Hitler tomou o poder declarou feriado o dia do atentado, 24 de junho. A morte de Rathenau acionou a inflação, levou-a a níveis jamais igualados e marcou a política europeia empurrando-a decisivamente para a radicalização. A brutalidade de seu assassinato tocou todos os intelectuais de língua alemã: Albert Einstein, Joseph Roth, Emil Ludwig e Stefan Zweig deixaram depoimentos comovidos.

Durante a Primeira Grande Guerra - Rathenau havia sido encarregue de chefiar o esforço industrial germânico. Depois do Armistício, em 1921, foi nomeado ministro da Reconstrução e, em seguida, recebeu a pasta de Relações Exteriores. Nesta condição, começou a negociar um abrandamento das reparações impostas pelos vitoriosos em Versalhes, enquanto concluía com as lideranças soviéticas o tratado de Rapallo, que permitiria à Alemanha fabricar aviões em território russo e assim contornar as exigências do tratado de paz.

Em Berlim, durante muito tempo, ele era conhecido apenas como filho de Emil Rathenau, o magnata da eletricidade. Em Berlim, o setor industrial, no entanto, já o conhecia há muito tempo como membro do Conselho de Administração de quase cem empresas; os banqueiros o conheciam como diretor da Sociedade Comercial; os sociólogos, como autor de livros ousados e modernos; os cortesãos, como homem de confiança do imperador; as colónias, como acompanhante de Dernburg; o exército, como coordenador da campanha por matérias-primas; a Agência de Patentes, como dono de várias invenções químicas; os escritores, como um deles.




Alto e esguio, aparecia em todo lugar onde houvesse figuras intelectuais em ação. Era visto nas estreias de Reinhardt, cujo teatro ajudou a fundar, no círculo de Gerhart Hauptmann, bem como no mundo das finanças. Saía de uma reunião de Conselho Administrativo para a estreia da Sezession - Paixão segundo são Mateus. Ele falava as três línguas europeias – o francês, o inglês e o italiano – da mesma forma que falava o alemão. 
O intelecto de Walther Rathenau era de uma acuidade e concentração únicas. Para esse cérebro de precisão prodigiosa não havia nada vago ou indefinido. Seu modo de raciocinar era tão completo em termos funcionais que, para ele, não era preciso usar papeis escritos.

À hora que fosse, tinha tempo para o amigo mais casual de dia e de noite; no tumulto de suas atividades não existiam para ele promessas não cumpridas, cartas não respondidas, ensejos esquecidos. Era uma hora da manhã, todos foram dormir, e quando acordaram no dia seguinte os jornais já informavam que Walther Rathenau viajara para as negociações em Londres no primeiro trem da madrugada. O cérebro de Rathenau era tão coeso, tão funcional e sempre vigilante que, quatro horas antes de partir para participar de decisões históricas de alcance universal e que definiriam o destino de milhões de pessoas, exigindo toda a sua concentração, aparentemente conseguiu descansar durante a conversa amena, consciente de seu dever, mas sem trair qualquer nervosismo, cansaço ou fadiga. Sua superioridade era tão grande que ele nunca precisava se preparar para nada. Estava sempre pronto.

Essa organização, essa subordinação do pensamento à vontade, essa completude do intelecto analítico marcou a sua genialidade. E o que era trágico nesse homem era que ele não gostava dessa forma de seu génio, assim como não gostava da ideia de organização. Em seus livros, repetiu diversas vezes que considerava toda a forma de organização intelectual e material extremamente infrutífera e secundária enquanto não estivesse ao serviço de um sentido mais elevado, altruísta, psíquico. E durante muito tempo ele não encontrou esse sentido. Escrevia muito em seus livros sobre a alma e a fé enquanto postulado, mas era difícil acreditar nesse hino à contemplação partindo de um homem tão ativo, e menos ainda nesse elogio da vida espiritual no caso de um milionário. Mesmo assim, havia nele uma profunda solidão e grande insatisfação. Para esse espírito superior, o mero acúmulo, amealhar cargos em conselhos, o furor de construir um império de empresas de um Stinnes ou Castiglione como fim em si mesmo não constituíam nenhum atrativo. 

Era um rei Midas do intelecto: transformava em coisa cristalina tudo para onde olhasse. Tudo ficava transparente e claro, arrumado numa ordem espiritual; nem um grãozinho de loucura ou fé lhe dava calma e consolo. Ele não conseguia esquecer ou perder o fio à meada. Talvez tivesse dado a sua fortuna em troca por algo criado num solene embotamento do ser. Mas estava condenado a ter sempre a mente clara, desperta, sentindo o seu cérebro prodigioso rodar e faiscar em milhares de posições do espelho. Por isso também exalava uma misteriosa frieza, uma atmosfera de pura intelectualidade, de uma clareza cristalina, mas, por assim dizer, um vácuo. Era impossível aproximar-se muito dele, por mais cordial, solícito, solidário que fosse, e a sua conversa, que fluía abrindo cada vez mais horizontes, como cenários de um teatro cósmico, mais entusiasmava o interlocutor do que o inflamava. 

A Guerra foi para ele – como para tantos outros que padeciam da solidão interna – uma espécie de libertação. Pela primeira vez conferia-se a essa incomensurável energia um objetivo que ia além dela própria, pela primeira vez essa mente de gigante tinha uma tarefa digna dela, pela primeira vez essa energia, que normalmente se espraiava por todas as direções do intelecto, podia ser descarregada em bloco em uma só direção. E com aquele inaudito olhar de águia que na situação mais intrincada logo detetava o nó, Rathenau interferiu então no enorme emaranhado da Guerra. Nas ruas, o povo alegrava-se, os rapazes marchavam cantando rumo à morte. Para Rathenau, tragicamente clarividente, já na primeira hora estava mais do que certo: uma guerra em que a Inglaterra, a nação mais racional se enredara, seria uma batalha de meses, anos, e seu olhar de águia desde o primeiro segundo detetou o ponto fraco no armamento da Alemanha: a falta de matérias-primas, que, no caso de um bloqueio por parte da Inglaterra, necessariamente ocorreria, em curtíssimo espaço de tempo. Uma hora depois ele estava no Ministério da Guerra, mais uma hora e iniciou a contingência de todas as matérias-primas no Reich de setenta milhões de pessoas, ampliando o esquema de resistência económica, sem o qual a Alemanha provavelmente já teria sucumbido meses antes.

Deve ter sido o primeiro momento de sua vida em que viu sentido em sua atuação, e não apenas obrigação, mas mesmo aqueles anos logo seriam sombreados pela sua própria clarividência. Seu espírito superior, que nenhuma esperança animava levianamente, que nenhuma loucura sobrepujava por um segundo sequer, que era demasiado orgulhoso para mentir a si mesmo, depois dos primeiros golpes anteviu o trágico destino da guerra como inevitável e precisou suportar os que falavam e gritavam mais alto, os tristes heróis da vitória. Seu livro Von kommenden Dingen, mostrou à Europa o que aconteceria caso a loucura seguisse adiante. Foi um apelo que só a estultice poderia ignorar. Mas a loucura é sempre mais forte do que a verdade, e assim ele foi obrigado a enterrar seus pensamentos mais secretos.

Foi da mesma forma trágica, clarividente, com plena consciência de que era em vão, totalmente sem esperanças e apenas por dever, que poucos meses após a derrocada esse mesmo Walther Rathenau assumiu o cargo pouco desejado de ministro de um império destruído. Não foi a vaidade, como muitos pensaram, que o seduziu, e sim uma sombria determinação contra si mesmo, contra o dever, a fim de medir as suas próprias forças nunca totalmente experimentadas na grandeza de uma tarefa que até então ninguém ousara enfrentar. Ele sabia o que o esperava: os assassinos de Erzberger estavam bem protegidos pelos seus comparsas de Munique, incitando assim silenciosamente qualquer sucessor; ele sabia que, sendo judeu, não teria reconhecimento na Alemanha atual por nenhuma vitória política, nem mesmo pela maior, mas que qualquer deslize aparente seria carimbado como crime. Conhecia bem a histérica resistência da França e o mentiroso agitamento dos grupos pangermânicos que se forneciam armas mutuamente, sabia tudo e também sabia como tudo acabaria – não foi por dar ênfase aos sentimentos, como os outros, e sim como alguém que tragicamente sabia, que ele assumiu o lugar que o destino lhe indicou.

Vários dos que estiveram presentes na Conferência de Génova contaram com admiração quão heroico foi o seu desempenho lá, o quanto ele, o representante do país menos amado, obrigou todos os estadistas da Europa a admirá-lo. Tendo viajado da Alemanha via Paris, 58 horas num vagão, recebia os telegramas, mudou de roupa, fez duas visitas, foi – sem o menor sinal de cansaço – até à sala de negociações e proferiu o seu discurso durante duas ou três horas. Em seguida, iniciou-se um debate, um fogo cruzado de perguntas técnicas que exigiu tudo de sua concentração e força de vontade. Os delegados ingleses, franceses e italianos, que se haviam preparado, fizeram dezenas de perguntas cada um em sua língua. Sem se ter preparado, ele respondeu em italiano aos italianos, em francês aos franceses, em inglês aos ingleses, não ficou devendo nenhuma informação e lutou durante horas, respondendo a todos. Quando a sessão foi encerrada, todos o olharam com respeito pelo espírito que lhe é superior. Pela primeira vez em décadas, o estrangeiro voltara a ter respeito por um estadista alemão, pela primeira vez, desde Bismarck, um diplomata alemão impunha respeito por sua atuação pessoal. 

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