sexta-feira, 16 de setembro de 2022

O Mal Absoluto



Há coisas que têm nome, mas estão para além da compreensão humana. O Mal absoluto é uma dessas coisas. Kant concebeu a existência de dois mundos: o mundo fenomenal, que é o mundo captado pelos sentidos e a que chamamos realidade; e o mundo numenal. Numenal, que vem de númeno - númeno é o que o espírito, ou mente, concebe para além do fenómeno, que não pode abranger por meio dos sentidos. Aquilo que Kant chama "a coisa em si", corresponde ao mundo numenal, ou seja, realidade absoluta, de que não temos conhecimento nem pela experiência, nem pelo entendimento; é o incognoscível. Só podemos conhecer o fenómeno.

Para os nossos ancestrais, a presença do Mal – manifestava-se de várias maneiras: dilúvios, pragas, terramotos, e as infelicidades individualmente sofridas. Mas era por culpa dos homens. A religião foi a primeira forma de resolver o problema. A religião era a tarefa de enfrentá-lo e forçá-lo a desaparecer. O pecado e a punição eram os principais instrumentos da caixa de ferramentas da religião. Contrição e expiação constituíam as rotinas naturais e seguras na busca de imunidade em relação ao Mal. Os sábios de outrora – sabedores de que todo mal era uma punição merecida e aplicada com imparcialidade aos pecados que acreditavam terem sido cometidos pelos sofredores. E continuariam a pressionar os fiéis a confessá-los e admiti-los se os negassem. 

Lisboa no terramoto de 1755 revelou o quanto o mundo estava distante dos seres humanos; Auschwitz revelou a que distância os seres humanos estavam em relação a si mesmos. E a distância entre Lisboa e Auschwitz mostra como é inútil qualquer empreendimento humano na persecução de separar o Mal dos homens. Se Lisboa assinalou o momento do reconhecimento de que a teodiceia tradicional era inútil, Auschwitz marcou o reconhecimento de que o homem não merecia salvação. A rápida sucessão de terremoto, incêndio e maremoto que destruiu Lisboa em 1755 foi o acontecimento que despertou os filósofos da era moderna para o problema do Mal. Susan Neiman e Jean-Pierre Dupuy debruçaram-se sobre o problema do Mal em Lisboa. Rousseau, Voltaire e Kant já o haviam feito.   

 Os filósofos modernos, pela primeira vez, separaram definitivamente os desastres naturais dos males morais. Os primeiros eram cegos do ponto de vista moral. Os segundos eram revestidos de uma intencionalidade ou premeditação humana.  Susan Neiman aponta que “desde Lisboa que os males naturais foram desligados dos males morais. E assim, se retirou do mal natural qualquer significado escatológico. Husserl sugeriu que meinung (significado) vem de meinen (pretensão); mais tarde, gerações de filósofos depois de Husserl dariam como certo que não há significado sem intenção. Lisboa foi como uma encenação teatral da história de Jó, montada na costa do Atlântico com todo o brilho da publicidade e vista por toda a Europa – embora dessa vez Deus estivesse amplamente ausente da disputa que se seguiu ao evento.

Como é do caráter de toda disputa, os pontos de vista divergiram. Segundo Dupuy, foi paradoxalmente Jean-Jacques Rousseau quem fez soar o acorde mais moderno – ele que, devido à sua celebração da prístina sabedoria de tudo que é “natural”, tem sido tomado com muita frequência como um pensador pré e anti moderno. Em sua carta aberta a Voltaire, Rousseau insistiu que, se não o desastre de Lisboa em si, mas certamente suas consequências catastróficas, e sua escala horripilante, resultaram de falhas humanas, não da natureza (observem: falhas, não pecados – diferentemente de Deus, a natureza não tinha a faculdade de julgar a qualidade moral dos feitos humanos): produtos da miopia humana, não da cegueira da natureza; e da ambição terrena do homem, não da indiferença altiva da natureza. Se “os moradores daquela grande cidade se tivessem distribuído de modo mais equilibrado, e construído casas mais leves, os danos teriam sido muito menores, talvez até não ocorressem. E quantos infelizes perderam suas vidas na catástrofe porque quiseram recolher seus pertences – alguns seus documentos, outros seus dinheiros?”

Ao menos no longo prazo, argumentos na linha de Rousseau subiram ao topo. A filosofia moderna seguiu o padrão estabelecido por Marquês de Pombal, primeiro-ministro português à época da catástrofe de Lisboa, cujas ações e preocupações “se concentraram na erradicação dos males que podiam ser alcançados por mãos humanas”.

É perante os quadros de Caravaggio que podemos desdenhar a máxima moral que determina o comportamento humano e os mandamentos religiosos: ‘Não matarás’. As “sociedades como um todo” podem sucumbir, “de uma forma ou de outra”. A
 civilização ocidental desenvolveu os meios para uma inimaginável destruição total e em massa. A razão humana apenas produziu uma sociedade puramente tecnocrática e burocrática impotente perante mais uma vala comum com mais de quatrocentos corpos em Izium, na Ucrânia




Sem comentários:

Enviar um comentário