segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Gabriel Marcel





Gabriel Marcel [7 de dezembro de 1889 – 8 de outubro de 1973] foi um dramaturgo francês, filósofo e existencialista cristão. Cunhou o termo “existencialismo” em meados da década de 1940, mas se distanciou dele depois que Jean-Paul Sartre o utilizou em sua determinante palestra: O existencialismo é um humanismo (1946). Sartre dividia os existencialistas em dois campos: cristãos, como Gabriel Marcel e Karl Jaspers; e ateus, como ele próprio, Simone de Beauvoir e Albert Camus (1913-60). Depois de 1946, Marcel passou a rejeitar o termo “existencialismo” em seu trabalho. Ele preferia o termo “filosofia da existência” e frequentemente se referia a si mesmo como um neo-socrático.

Crítico feroz da influência do cartesianismo, ele afirmava que o homem sofre dos efeitos redutores e desumanizadores da ciência e tecnologia, que, antecipando Hannah Arendt, via como ameaças à subjetividade humana. Ele evitou o jargão filosófico em favor da linguagem comum e desenvolveu uma fenomenologia independente da de Edmund Husserl para descrever o que denominava “o mistério ontológico”. Dos trabalhos mais conhecidos são conhecidos: Ser e ter (1935); e O mistério do ser (1951).

De uma perspetiva do século XXI, Marcel é considerado principalmente um filósofo; a maior parte dos seus contemporâneos, entretanto, o conhecia sobretudo como dramaturgo, crítico de música e compositor. Marcel via o palco como o local mais eficaz para a propagação de suas ideias filosóficas. Ele escreveu quase trinta peças, a mais bem-sucedida foi O mundo partido (1932), na qual ele traçou uma visão crítica da Modernidade. Mais tarde ele dirigiria a sua atenção para o trabalho filosófico de suas peças. Marcel achava que o mundo estava “partido” porque o homem transformara-se num funcionário, como uma crítica à hegemonia da filosofia analítica funcionalista, em que predomina a visão mecanicista do mundo negando a transcendência do homem.

Gabriel Marcel utiliza a imagem da bilheteira para ilustrar a pessoa funcionalizada, alguém cuja vida é reduzida a uma função repetitiva, como a de uma máquina. Seu anseio natural pela transcendência – o que Marcel chama de sua exigência ontológica – se perde na repetição diária de uma existência maquinal. Com o tempo, o poder do mundo mecanizado torna-se tão grande que destrói a sensação natural da pessoa funcionalizada de que algo está errado – de que, realmente, o mundo está partido. O sentimento de deslocamento, a preocupante sensação do rompimento do mundo, é, com o tempo, corroída pela repetição da funcionalidade, e a pessoa funcionalizada perde seu desejo de transcendência, criando a base para o desespero.

Gabriel Marcel chegou a organizar tertúlias filosóficas em Paris frequentadas pela fina flor filosófica da época, como Jean Wahl, Paul Ricoeur, Emmanuel Levinas e Sartre. Reuniam para discutir ideias, como ele dizia, de interesse mútuo. Marcel era tido como agnóstico, até se converter ao catolicismo romano, aos 39 anos de idade. Pouco depois acabou por se incompatibilizar com Sartre, tendo rompido com ele. Entretanto Marcel aprofunda a sua vertente filosófica de matriz fenomenológica, embora por caminhos não necessariamente filiados na fenomenologia de Husserl. Queria oferecer uma descrição fenomenológica da subjetividade do homem e da possibilidade de intersubjetividade – temas que eram centrais também para Martin Buber e Karl Jaspers. 

Marcel delineou sua versão do método fenomenológico em "O mistério do ser", onde submete os sujeitos a uma investigação subordinada a uma de duas categorias: ou problemas; ou mistérios. Marcel pergunta: que tipo de pensamento específico podemos arranjar para cada tipo de problema? É que cada problema exige uma abordagem técnica específica, individual. Mistérios, por outro lado, devem ser explorados de um modo que envolva todo o ser do sujeito. Marcel identifica essas duas abordagens radicalmente distintas como reflexão primária e reflexão secundária. Usando o vocabulário kantiano, a reflexão primária é analítica; a secundária é sintética. A reflexão primária desmembra o objeto investigado em suas partes constituintes. É a abordagem cartesiana prosseguida pelos positivistas e filósofos analíticos. Este tipo de abordagem é a abordagem do mundo partido. É a negação da visão de um mundo hegeliano, holístico. É o rompimento do mundo na sua vertente tempo, onde está inscrito o sentido escatológico humano, o da angústia existencial que nos projeta numa essência transcendental. Daí Marcel se considerar um existencialista fenomenologista. 

Marcel estava mais preocupado com o método do que com o sistema. Ele poderia ser descrito como um filósofo temático, em oposição a um filósofo sistemático. Ele não fez uma tentativa de apresentar um relato completo do mundo, mas sim de introduzir ferramentas metodológicas com as quais se pudesse dar sentido ao mundo. Sua análise levou a temas-chave, que incluíam a distinção entre ser e ter, a ideia de disponibilidade/indisponibilidade em relação ao Outro, e as possibilidades de intersubjetividade por meio da reciprocidade. Em "Ser e Ter", Marcel traçou uma importante distinção ontológica: eu posso ter uma bicicleta, mas não tenho raiva, ou amor ou fé – eu sou raiva ou amor ou fé; eu estou sendo essas coisas. O uso mais desafiador da distinção entre Ser e Ter é como nos situamos e relacionamos com o nosso corpo. Nós mesmos, como sujeitos corpóreos, de mente corpórea ou incarnada. Nós somos, em termos ontológicos, simultaneamente nossos corpos e sujeitos dos nossos corpos. Somos a experiência dos nossos corpos. Somos mente corpórea. Em suma, uma síntese hegeliana de Ser e Ter.

A distinção entre disponibilidade e indisponibilidade é fundamental para o seu tema da intersubjetividade. Para criar um mundo compartilhado com outros, é preciso estar disponível para eles. A falha ou ausência de disponibilidade é um obstáculo a relações intersubjetivas. Orgulho – a suposição incorreta de que se é autossuficiente, por exemplo – é uma obstrução à intersubjetividade. Estar em um estado de indisponibilidade significa estar alienado dos outros, considerá-los objetos, e não sujeitos. Gabriel Marcel trata este tema de uma forma semelhante à de Martin Buber, o que se evidencia inclusive pela sua definição de intersubjetividade, baseada numa relação [Eu-Tu], e não numa relação [Eu-Isso]. Para que o sujeito disponível alcance intersubjetividade com um outro, é preciso atender à condição de reciprocidade.

Ao invés de Sartre, Marcel, no final, é um otimista, ao focar-se na intersubjetividade. Durante a sua vida, Marcel foi eclipsado por Sartre, tanto como filósofo como dramaturgo, mas o seu trabalho acabou por ser muito explorado, não apenas por teólogos, mas também por outros filósofos. Há uma ordem cósmica em que o sujeito se encontra na presença de algo completamente fora do seu alcance. Se a palavra “transcendente” tem algum significado, ela se aplica aqui. É o Absoluto, intransponível abismo que se abre entre o sujeito e o ser, na medida em que o ser escapa a toda a tentativa de fixá-lo.


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