quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Schopenhauer




Schopenhauer foi talvez o primeiro e principal filósofo moderno a colocar no centro da sua obra a categoria abstrata da 'vontade em si', independente desta ou daquela vontade particular. É esta poderosa abstração que a psicanálise utilizaria mais tarde, embora seja provável que Freud, que dizia considerar Schopenhauer um dos seis maiores homens que já viveram, não tenha conhecido a sua obra antes de ter desenvolvido as suas principais teorias. Assim como a sociedade capitalista está se desenvolvendo nesta época ao ponto em que será possível a Marx extrair dela o conceito-chave do trabalho abstrato, uma operação conceptual só possível com base em condições materiais determinadas, assim o papel determinante e a repetição regular do desejo na sociedade burguesa permite agora uma dramática mudança teórica: a construção do desejo como uma coisa em si mesma. Trata-se de um acontecimento metafísico especial, ou uma força com identidade própria, comparando-se com ordens sociais anteriores em que o desejo ainda é fortemente particularizado, muito intimamente ligado às obrigações tradicionais ou locais para que possa ser reificado desta maneira precisa. 

Com Schopenhauer o desejo torna-se o protagonista do teatro humano, e os sujeitos humanos simplesmente seus portadores obedientes ou seus servos. É resultado da perceção de um infinito de desejo numa ordem social em que o único fim da acumulação é acumular mais. A Vontade de Schopenhauer, como uma espécie de propósito sem propósito, é, neste sentido, um travesti selvagem da estética kantiana, um artefacto falso e inferior. Poderíamos perfeitamente passar sem a sua existência.

O intenso pessimismo de Schopenhauer, é, em certa medida, o destino da grande maioria dos homens e mulheres que tem sido de sofrimento e trabalho insensato. Schopenhauer pode não estar com toda a verdade, mas possui uma parcela maior dela do que os humanistas românticos que ele pretende criticar. Qualquer visão da humanidade mais esperançosa que não encare esta face particular tende a se enfraquecer. O relato dominante da história até hoje tem sido certamente este de massacres, miséria e opressão. A virtude moral nunca floresceu como força decisiva em qualquer cultura política. Em qualquer lugar em que esses valores tiveram alguma força precária, eles sempre estiveram confinados a uma dimensão de privacidade. As monótonas forças dirigentes da história têm sido o ódio, o desejo e o domínio; e o que há de mais escandaloso nesta herança sórdida é que é possível perguntar às vidas de inúmeros indivíduos se eles não estariam melhor mortos. 

Qualquer parcela de liberdade, dignidade e conforto sempre ficou restrita a uma pequena minoria, enquanto a indigência, a infelicidade e o trabalho árduo foi sempre o quinhão da grande maioria. Entrar para uma fábrica de tecidos ou qualquer outra aos cinco anos de idade e sentar lá todos os dias, primeiro dez, depois doze e finalmente catorze horas por dia, a fazer sempre o mesmo trabalho mecânico, é pagar muito caro pelo prazer de respirar. As mutações dramáticas da história humana, suas periódicas ruturas e revoluções, têm sido, num sentido, meras variações no tema consistente da exploração e da opressão. Nem poderia qualquer transformação futura, apesar de radical, afetar o passado desse destino de modo substancial. 

Não podemos chamar de volta o campesinato medieval esmagado ou os escravos assalariados do capitalismo industrial incipiente, as crianças que morreram amedrontadas e desamadas nos barracos miseráveis da sociedade de classes, as mulheres que vergaram as costas sob regimes que as trataram com arrogância e desprezo, as nações colonizadas que ruíram sob um opressor que as via ao mesmo tempo como sinistras e adoráveis. Não há nenhuma forma literal pela qual as sombras desses mortos possam ser chamadas para exigir justiça daqueles que os oprimiram. O caráter passado do passado é a simples verdade: reescrita ou recuperada como quisermos, os condenados da história passaram e não vão compartilhar de nenhuma ordem social mais compassiva que possamos ainda criar. 

Como Schopenhauer, podemos reter todo o aparato totalizante do humanismo burguês na sua forma mais afirmativa — o princípio singular central informando toda a realidade, o todo cósmico integrado, as relações estáveis entre fenómeno e essência — ao mesmo tempo que traiçoeiramente esvazia suas formas de seu conteúdo idealizado. A noção de Vontade em Schopenhauer consegue, funcionando estruturalmente da mesma maneira que a Ideia hegeliana ou a Força Vital romântica, mas agora reduzida à rapacidade grosseira do burguês médio elevada ao nível cósmico e transformada no princípio metafísico que move todo o universo. O sistema de Schopenhauer aparece no auge do destino histórico burguês, ainda confiante em suas formas essencialistas de unificar, universalizar, mas precisamente nestes gestos, inflando até proporções intoleráveis o conteúdo mesquinho da vida social. Este conteúdo é assim desacreditado pelo próprio movimento que lhe dá um estatuto metafísico. As formas do sistema hegeliano viram-se contra ele com uma vingança; a totalização é possível, mas agora só numa forma puramente negativa.

Para Hegel, o sujeito livre articula uma dimensão universal de consciência (Geist), que está, no entanto, no cerne mesmo da sua identidade como aquilo que faz dela o que ela é. E este princípio transcendental, para ser ele mesmo, tem necessidade da individuação. Schopenhauer preserva esta estrutura conceptual, mas lhe empresta uma torção malévola. O que me faz aquilo que eu sou, a vontade da qual eu sou uma simples materialização, é completamente indiferente à minha identidade individual, que ela usa apenas para a sua autorreprodução sem finalidade. 

Onde então poderemos nos dirigir para conseguir algum descanso nesta busca insaciável que é a própria substância de nosso sangue, de nossas vísceras? A resposta de Schopenhauer aponta para a estética, no sentido menos de uma preocupação com a arte que de uma atitude transfiguradora da realidade. O que é intolerável na existência é que não podemos nunca explodir para fora de nossa pele, nunca despir a camisa de força de nossos interesses mesquinhos. Arrastamos nosso ego connosco em tudo o que fazemos.  A estética, nesse sentido, é uma espécie de mecanismo de defesa psíquica, pelo qual a mente, ameaçada por uma sobrecarga de dor, converte a causa de sua agonia em ilusão inócua. O sublime é assim o mais típico dos géneros estéticos, permitindo-nos contemplar objetos hostis com absoluta equanimidade, serenamente sabendo que eles não vão nos fazer mal. No sublime, o ego paranoide fantasia um estado de invulnerabilidade triunfal, realizando uma vingança olímpica sobre as forças sinistras que o levariam à morte. 

A estética em Schopenhauer é o impulso de morte em ação, embora esta morte seja, secretamente, uma espécie de vida, Eros disfarçado de Tanatos: o sujeito não pode ser inteiramente negado enquanto ele tem ainda prazer, mesmo quando o prazer que sente é o do processo de sua própria dissolução. A condição estética apresenta assim um paradoxo insuperável, como Keats sabia ao contemplar um rouxinol: não há nenhuma maneira em que se possa saborear a sua própria extinção. Assim como todo verdadeiro conhecimento nasce da morte do sujeito, também surgem dela os valores morais; agir moralmente não é agir a partir de um ponto de vista positivo, mas agir a partir de nenhum ponto de vista. O único bom sujeito é o sujeito morto, ou, pelo menos, aquele que pode projetar-se por indiferença empática no lugar do outro. Não se trata de um indivíduo comportar-se com consideração em relação ao outro, mas de explodir para fora de toda a miserável ilusão da “individualidade”, num lampejo daquilo que Walter Benjamin chamou de “iluminação profana”, até a algum não lugar inteiramente para além dele. 

Toda a prática, para Schopenhauer, está no domínio da ilusão: prosseguir em minha piedade por você é ao mesmo tempo diluí-la, encontrar-me, de novo, na confusão do interesse próprio. Só transcendendo inteiramente a categoria doentia da subjetividade, poderia um individuo sentir no lugar do outro, mas essa proposição se autodestrói. Como colocava William Blake, a piedade e a pena são sinais de que a catástrofe já aconteceu e seriam desnecessárias se não fosse assim. Numa sociedade dirigida pelo desejo, onde toda a ação está, de saída, contaminada, a compaixão tem que ser banida para a dimensão da “contemplação estética”. 

Há um valor positivo na sociedade burguesa, mas suas origens são profundamente misteriosas. Como no primeiro Wittgenstein, ele mesmo um devotado discípulo de Schopenhauer, o valor não pode ser encontrado de modo algum no mundo, mas deve ser transcendental. Não há, ao que parece, nenhum modo de se saltar diretamente do facto ao valor, e Schopenhauer é levado assim a uma dualidade indissolúvel entre a câmara de tortura da História, por um lado, e uma noção vagamente a de Hume, de intuição afetiva do outro. Na compaixão pelos outros, escreve ele, reconhecemos nosso “ser mais verdadeiro e profundo”; no entanto, somos advertidos continuamente que nosso ser mais profundo não passa de uma esfomeada vontade.

Schopenhauer é inflexível quanto à incapacidade da filosofia em alterar a conduta humana, e desabona qualquer intenção prescritiva em seus escritos. Não há possibilidade de troca entre o cognitivo e o ético, mantendo-se a eterna inimizade entre a representação e a vontade. No entanto, sua filosofia inteira pode ser lida como uma desaprovação implícita desta afirmação, sugerindo, contra suas intenções conscientes, os modos como facto e valor, descrição e prescrição podem ser mutuamente articulados. Na verdade, a sua dívida com o pensamento oriental aponta para como é etnocêntrica esta dicotomia facto/valor — como ela é consequência de uma história tecnológica da qual é evidentemente impossível derivar valor, pois seus factos foram constituídos, desde o início, como exatamente a negação do valor. 

A crítica budista do princípio de individuação, ao contrário, é ao mesmo tempo descritiva e prescritiva — um relato sobre o modo como o mundo é, e, ao mesmo tempo, indissociavelmente, a recomendação de um certo estilo de comportamento moral. É difícil não ver como a sua convicção genuína sobre a insignificância das distinções entre os indivíduos não afetaria a conduta prática. Schopenhauer parece concordar que o reconhecimento da natureza ficcional da identidade do "eu" (self) aparecerá em nossas ações, embora se recuse a reconhecer que o seu próprio discurso, que fala dessas coisas, possa produzir efeitos éticos.

A razão não passa de um instrumento desajeitadamente calculista, empenhado na satisfação de desejos que são, eles mesmos, bastante distantes do debate racional. A linhagem de Schopenhauer e Nietzsche até ao pragmatismo contemporâneo, neste sentido, repete o modelo burguês do homem apetitivo de Hobbes, Hume e Bentham. A razão é um mero instrumento do interesse e uma escrava do desejo — interesses e desejos em torno dos quais pode haver luta, mas não discussão argumentativa. No entanto, se o que Schopenhauer afirma a esse respeito fosse verdadeiro, a sua própria filosofia seria, pensando de forma estrita, impossível. Se realmente acreditasse nas suas próprias doutrinas, Schopenhauer seria incapaz de escrever. Se a sua teoria é capaz de dissecar o trabalho insidioso da Vontade, então a Razão deve ser, nesta proporção, capaz de curvar-se sobre si mesma, de investigar os impulsos aos quais ela se proclama uma serva obediente. 

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