quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Um ser humano pós-moderno



Se quisermos conhecer as profundezas inefáveis que se escondem sob o verniz de um homem envernizado pela civilização, então encostemos uma gaiola com ratos esfaimados no rosto de um homem, como acontece no “1984 de George Orwell”. E depois é só esperar e ver o que acontece. Ou então imaginemos um cenário semelhante ao da fábula: “O Senhor das Moscas” de William Golding - uma história altamente reacionária, em que um bando de estudantes, em condições materiais altamente degradantes, em menos de uma semana, regressam a uma vida de grande crueldade, altamente selvagem.

O pós-modernismo teve grande interesse por situações como essas, “extremas”. O pós-modernismo, tal como um filho bastardo do modernismo, que quis matar o pai. A História pode não ter nada a ver com determinismo e progresso, mas não é verdadeira a afirmação de que não faça parte do processo histórico algo de evolutivo numa determinada direção que acompanha a flecha do Tempo. Não precisamos de acreditar numa Idade de Ouro pregressa 
para sustentar que o passado em certos aspetos foi melhor que o presente. 

Parte do pós-modernismo radical tende a mostrar-se pluralista na sua oposição política, mas monista em relação ao sistema que confronta. E o sistema que confronta é nada mais nada menos que o capitalismo e a cultura de matriz eurocêntrica que é opressora. Nesse sentido, é o mesmo que dizer: "se não és por mim, és contra mim". É uma visão simplista do poder dominante. Poder, sistema, lei, consenso, normatividade - são por si sós inequivocamente negativos. A classe social tende a aflorar na teoria pós-moderna como um item da tríade classe, raça e género. Para o teórico comunista a classe trabalhadora é algo sagrado, visto que sem ela nenhum capitalista a poderia usurpar. Para o teórico pós-moderno é tudo reduzido a uma questão de raça ou género. 

Superficialmente, a tríade classe-raça-género parece bastante convincente. Algumas pessoas sofrem opressão por causa do género a que pertencem. Outras por causa da raça. E outras em virtude da classe. Mas essa formulação engana profundamente. Porque a opressão não resulta do facto de alguns indivíduos apresentarem certas características conhecidas como “da classe”. Ao contrário, os marxistas consideravam que pertencer a uma classe social significa ser: ou oprimido ou opressor. Classe significa nesse sentido categoria totalmente social, o que não acontece com o facto de ser mulher ou de ter um certo tipo de pigmentação da pele. Isso é natural, é da biologia, não depende do tipo de cultura a que pertencemos. Seria escusado falar em coisa tão evidente não fosse o caso de o culturalismo ter colocado tudo de pernas para o ar. Não haverá burguesia nem proletariado numa sociedade emancipada. Certamente continuará a haver mulheres de origem africana e homens cujos antepassados eram celtas, ou magrebinos. Outra coisa é a teoria marxista. É o conflito histórico entre as classes sociais num processo muito mais amplo de mudança histórica, que não pode ser confundida com o racismo e o sexismo. Só uma desatenção pós-modernista em relação ao caráter multifacetado da história poderia permitir uma manobra dessas.

A tríade raça-classe-género favorece outro equívoco. Esses grupos sociais têm em comum o facto de nas atuais condições lhes ser negada a humanidade plena. No que tange à miséria, existe um sem-número de candidatos mais sensíveis para a ação política: vagabundos, camponeses necessitados, presidiários, pensionistas e mesmo estudantes empobrecidos. Se se equivocam alguns marxistas, ao imaginarem que existe um único agente da transformação social: a classe trabalhadora; também se equivocam os pós-modernistas burgueses de mentalidade relativista ao imaginarem que esse agente ficou ultrapassado diante dos “novos movimentos políticos”. Pois isso significaria tanto negar que a exploração económica existe, ou imaginar com presunção “elitista” que as mulheres ou os gays ou os grupos étnicos, que não fazem parte da classe trabalhadora, poderiam assumir o lugar dela no desafio ao poder do capital.

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