domingo, 30 de outubro de 2022

Que sabedoria emana da experiência?


Em pleno século XXI esta é uma pergunta incisiva: Podemos fazer o mesmo tipo de abordagem que fizemos para a Ásia em relação à África subsariana? Os autores ditos pós-modernos incutiram a ideia que o folclore, as histórias, as máximas sábias, a tradição, a arte e a religião contêm e exprimem mundividências. O material contém de facto mundividências associadas aos povos e línguas de diferentes partes de África, dos iorubas da Nigéria e Benim, aos zulus de KwaZulu-Natal. Caso associemos um sentido alargado e extremamente indefinido à dita “sabedoria”, permitindo-nos abranger qualquer mundividência com essa designação, então seria sabedoria a mundividência implícita em Homero (por exemplo), baseada na interação entre as divindades do Olimpo e a humanidade, assim como as tradições indígenas australianas, que são antigas e elaboradas. 

Todas as culturas e civilizações orientais desenvolveram corpos de pensamento na forma de debates detalhados e escritos, em quase tudo como metafísica, epistemologia, ética e política. São exemplos o Advaita Vedanta, o confucionismo e o budismo. Kungzi (VI a.C.), a quem os missionários portugueses do século XVI chamaram Confúcio, é a primeira das figuras a indignar-se com a crise de sua época. Confúcio pregava a reestruturação social de sua civilização, tendo como modelo o passado ideal dos Zhou, mas através de uma metodologia totalmente inovadora. Confúcio examinou as causas da corrupção de sua sociedade, e concluiu que a degradação era promovida pelo não cumprimento das vontades da natureza. No entanto, o próprio Confúcio achava que a sua proposta ética não podia fundamentar-se em nenhum critério religioso.

Xunzi acreditava que a cultura era uma construção humana para sua própria preservação, e apenas aqueles que não fossem instruídos tornar-se-iam elementos perigosos. Um mínimo de noção de civilidade tornava qualquer ser mais sociável. O Ser, mau por natureza, “precisava de professores e leis” para ser modificado. No entanto, se tal mister fosse alcançado, haveria uma harmonia perfeita. Xunzi aperfeiçoou, ainda, a questão da retificação dos nomes. Introduzida por Confúcio, ela tratava da necessidade de verificar como eram aplicados e entendidos certos conceitos, conceções e termos empregues no discurso filosófico, social e político. O objetivo não era apenas o de criar definições específicas para cada palavra, mas também, de torná-la compreensível e acessível a todos; e, por fim, de garantir a sua aplicabilidade no quotidiano, evitando confusões. O embate das ideias de Mêncio com as de Xunzi nos dá um exemplo perfeito da capacidade de interpretação variada que estes autores possuíam.

No período Han (III a.C. — III d.C.), quando o Confucionismo foi adotado pelo Estado como filosofia oficial, a China passou por um período de grande renovação cultural e intelectual derivada destas propostas. No entanto, a escola dos letrados sofreu, também, grandes deturpações, transformando-se inclusive numa espécie de “religião estatal”, algo que Confúcio provavelmente lastimaria. O principal desvio, no entanto, foi a transformação do comportamento ritual em um separador da cultura chinesa em relação ao resto do mundo. Confúcio foi capaz de elaborar uma proposta, em muitos aspetos invejável, para a resolução de problemas sociais que parecem atravessar a existência humana com persistência e tenacidade, sobre os quais apenas a vontade íntima é capaz de se sobrepor.

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Será correto colocar as mundividências identificáveis nas tradições africanas na mesma categoria das obras de Platão ou Kant? No mínimo, será preciso dizer que há uma grande diferença aqui. Ora, o que está aqui em causa é a questão da visão pós-colonial dos arautos do chamado politicamente correto. É uma tentativa de tornar o uso inequívoco de termos como uma perspetiva desacreditada, a sustentada pelos colonizadores brancos do passado, de que as culturas africanas são “inferiores”. O “rei da África ocidental” seria suficiente, só por si, para mostrar a mentira dessa perspetiva. Muitos autores pós-modernos foram beber inspiração ao sentido de pertença das terras nativas por parte de pessoas que se formaram nos departamentos de estudos culturais de algumas universidades ocidentais, sobretudo do Reino Unido e Estados Unidos.

Um autor, como Blyden chamou orgulhosamente “negritude”, a prontidão com que a sua sofisticação política e cultural agarrou a oportunidade para se expressar. Edward Wilmot Blyden III (19 de maio de 1918 - 10 de outubro de 2010) foi um diplomata, cientista político e educador nascido na Serra Leoa. Ele se destacou como educador e colaborador do discurso pós-colonial sobre o autogoverno africano, e do não alinhamento do Terceiro Mundo. Ele é um intelectual africano, digamos assim, no sentido de ter nascido e de ter vivido em África; mas o seu pensamento emerge do mesmo contexto geral da filosofia ocidental.

Este tipo de ponto de vista leva os proponentes do conceito de “filosofia africana” a afirmar que negar a sua existência representa “uma destituição implícita de África”, e até “a sugestão de um insulto”. Porém, adotar esse ponto de vista defensivo é perder a oportunidade de responder à questão-chave: “Há alguma coisa a um tempo distintamente africano e fundamentalmente filosófico na cultura ou tradição africana?”

A taxinomia de um outro autor, Henry Odera Oruka, das práticas culturais e intelectuais africanas que, segundo ele, obedecem a uma tradição africana incluem mundividências tradicionais, provérbios sábios, pontos de vista políticos, e o estudo “hermenêutico” da gramática das línguas africanas. Por conseguinte, o termo “filosofia africana” procura outro significado, e pretende tê-lo por razões que se prendem com a identidade pós-colonial, e não com a verdade ou a compreensão per se. Esta controvérsia não é uma questão de os filósofos de outras partes do mundo rejeitarem a admissão no seu clube, por razões que não são intrínsecas à questão do objeto e método da filosofia; os principais filósofos africanos, como Paulin Hountondji, Kwasi Wiredu e Kwame Anthony Appiah, opõem-se à abordagem etnofilosófica.

É mais persuasivo observar que se pode dizer que as tradições e perfis que estruturam as sociedades e as relações sociais, e as justificações oferecidas para essas tradições, constituem uma ética do ponto de vista da etnografia. O conceito de ubuntu é um conceito de interesse significativo para o pensamento ético da tradição humanista. É uma definição da existência moral humana, em termos de mutualidade, um reconhecimento da interconexão entre pessoas, que é essencial e, consequentemente, constitutiva, definidora e criadora da própria humanidade. “Humanidade” — expressamente no sentido combinado de “humano” e de “humanitário” — é exatamente o que ubuntu quer dizer nas línguas angunes como o zulu, o xossa e o ndebele: -ntu é “humano” e o prefixo ubu- faz o trabalho que o sufixo “-idade” desempenha em português, nomeadamente, forma um substantivo abstrato a partir de um concreto.

É a gentileza, a bondade, a generosidade, a cordialidade, a compaixão, o cuidado, atitudes e ações humanitárias, e o reconhecimento da interdependência que confere um direito livremente reivindicado de reciprocidade — e, simultaneamente, uma obrigação voluntariamente aceite. O resumo mais breve destes valores humanísticos é a asserção “Sou por causa de ti”. Apesar de ser um conceito antigo, a sua saliência contemporânea deve-se à promoção levada a cabo pelo autor Jordan Kush Ngubane em meados dos anos 1950, e a sua adoção por parte do arcebispo Desmond Tutu, quando era presidente da Comissão da Verdade e da Reconciliação, depois do fim do apartheid na África do Sul. Emergem, sem dúvida, da natureza essencialmente social dos seres humanos, fazendo da reciprocidade uma atitude evolutivamente vantajosa.

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