terça-feira, 25 de outubro de 2022

Deng Xiaoping




As fervilhantes cidades chinesas, os booms de construção, os engarrafamentos monstruosos, o dilema não comunista de uma taxa de crescimento ocasionalmente ameaçada pela inflação e, em outras ocasiões, encaradas pelas democracias ocidentais como um baluarte contra a recessão global — tudo isso era inconcebível na insípida China maoista de comunas agrícolas, economia estagnada e uma população usando roupas padronizadas e professando fervor ideológico extraído do “Pequeno Livro Vermelho” de citações de Mao que havia destruído a China tradicional e deixou o entulho como blocos de construção para uma modernização completa.

Deng Xiaoping [1904-1997] teve a coragem de basear a modernização na iniciativa e resistência dos chineses individualmente. Ele aboliu as comunas e promoveu a autonomia nas províncias para introduzir o que chamou de “socialismo com características chinesas”. A China de hoje — como a segunda maior economia mundial e o mais amplo volume de reservas em moeda estrangeira, e com inúmeras cidades exibindo orgulhosos arranha-céus — é um testemunho da visão, da tenacidade e do bom senso de Deng Xiaoping.

Deng trilhou um caminho indeciso e improvável para chegar ao poder. Fora o secretário-geral do poderoso Comité Central do Partido Comunista até sua prisão, em 1966, acusado de ser um “companheiro de jornada do capitalismo”. Em 1973, havia regressado ao Comité Central mediante a intervenção pessoal de Mao e contra a oposição dos radicais no Politburo. Embora Jiang Qing o tenha publicamente vilipendiado pouco depois de seu regresso a Pequim, ele foi claramente importante para Mao. Este, num comportamento atípico, pediu desculpa pela humilhação de Deng durante a Revolução Cultural.

A China era um país pobre, dissera ele, necessitado de mudanças científicas e de aprendizagem com países avançados — o tipo de confissão que os líderes chineses nunca haviam feito antes. A visitantes australianos convidou-os a observar o lado atrasado da China em suas viagens, não apenas as realizações do país, mais um comentário sem precedentes para um líder chinês.

Deng chegou a Nova York em abril de 1974 como parte de uma delegação chinesa, tecnicamente chefiada pelo ministro das Relações Exteriores, para uma sessão especial da Assembleia Geral das Nações Unidas que lidava com o desenvolvimento económico. Deng havia sido designado para substituir Zhou Enlai, o primeiro-ministro, e, de certa forma, exorcizá-lo. Um substituto informal de Zhou, que permaneceu, porém, com o título largamente simbólico de primeiro-ministro. Pouco depois de Mao ter iniciado a Revolução Cultural em 1966, Deng havia sido destituído de seu Partido e de suas posições no governo. Ele passara os sete anos seguintes primeiro numa base do exército, depois no exílio na província de Jiangxi, cultivando legumes e trabalhando meio período como operário em uma oficina de consertos de tratores. Sua família foi considerada ideologicamente incorreta e não teve proteção alguma dos Guardas Vermelhos. Seu filho, Deng Pufang, foi atormentado pelos Guardas Vermelhos e empurrado do topo de um prédio na Universidade de Pequim. Mesmo com as costas quebradas, Deng Pufang teve negado o atendimento médico em um hospital. Após o episódio, ficou paraplégico.

Entre os inúmeros aspetos extraordinários do povo chinês está o modo como muitos deles conservaram um comprometimento com sua sociedade independentemente de quanto sofrimento e injustiça ela possa ter-lhes infligido. A Revolução Cultural é tratada, às vezes obliquamente, como uma espécie de catástrofe natural que teve de ser suportada, mas não é algo sobre o qual se fale como tendo determinado a vida da pessoa depois disso.

De sua parte, Mao parecia ter refletido muito dessa mesma atitude. Ele mandou chamar os quatro marechais do exílio quando precisou de conselho sobre como posicionar a China diante da crise internacional de 1969. Desse modo também Deng voltou aos altos escalões de governo. Quando Mao decidiu tirar Zhou, Deng era a melhor — senão a única — reserva estratégica disponível para dirigir o país.

Homem compacto e rijo, Deng entrava no ambiente como alguém impulsionado por alguma força invisível, pronto para o trabalho. Deng raramente perdia tempo com amenidades, tampouco achava necessário suavizar os seus comentários envolvendo-os em parábolas, como Mao tendia a fazer. Ele não cobria a pessoa de solicitudes, como Zhou fazia. Zhou entendia inglês sem tradução e ocasionalmente falava a língua. Depois de 1974, emergindo da devastação da Revolução Cultural, Deng, com algum risco pessoal, uma vez que Mao continuava no poder, começou a moldar uma modernização que iria transformar a China numa superpotência económica.

Em 1974, quando Deng regressou de seu primeiro exílio, não dava a impressão de que seria uma figura de relevância histórica. Ele não articulava nenhuma grande filosofia; ao contrário de Mao, não fazia qualquer asserção arrebatadora sobre o destino único do povo chinês. Seus pronunciamentos pareciam enfadonhos e muitos giravam em torno de detalhes práticos. Deng falava da importância da disciplina entre a classe militar e da reforma no Ministério da Indústria Metalúrgica. Fez uma solicitação para aumentar o número de vagões, e impedir os condutores de beber no trabalho e regularizar as paragens de almoço. Esses eram discursos técnicos, não transcendentes.

Na esteira da Revolução Cultural e dada a presença ameaçadora de Mao e da Gangue dos Quatro, o pragmatismo comum era uma posição ousada em si mesma. Por uma década, Mao e a Gangue dos Quatro haviam defendido a anarquia como meio de organização social, a “luta” sem fim como meio de purificação nacional. Após a Revolução Cultural ter elevado a busca do fervor ideológico a selo de autenticidade, a conclamação de Deng a uma volta à ordem, ao profissionalismo e à eficiência era uma proposição ousada. Em 26 de setembro de 1975, em comentários intitulados “A prioridade deve ser dada à pesquisa científica”, Deng tocou em diversos temas que seriam sua marca registada: a necessidade de ênfase em ciência e tecnologia para o desenvolvimento da economia chinesa; a profissionalização da força de trabalho chinesa; e o encorajamento do talento e da iniciativa individuais — precisamente as qualidades que haviam sido paralisadas pelos expurgos políticos, o fechamento de universidades durante a Revolução Cultural e a promoção de indivíduos incompetentes com base na ideologia.

Acima de tudo, Deng insistia que a China enfatizasse a competência profissional acima da correção política (mesmo ao ponto de encorajar as buscas profissionais de indivíduos “excêntricos”) e recompensar os indivíduos por se destacar em seus campos de atuação. Isso era uma mudança radical na ênfase de uma sociedade em que funcionários do governo e unidades de trabalho haviam ditado até os mínimos detalhes educacionais, profissionais e pessoais nas vidas dos indivíduos por décadas. Se Mao levava as questões para a estratosfera das parábolas ideológicas, Deng subordinava as buscas ideológicas à competência profissional.

Deng definia as prioridades chinesas tradicionais como “a necessidade de conquistar a consolidação, a estabilidade e a unidade”. Embora sem ocupar uma posição de poder supremo, com Mao ainda ativo e a Gangue dos Quatro permanecendo influente, Deng falou duramente sobre a necessidade de superar o caos reinante e “pôr as coisas em ordem”.

Em 8 de janeiro de 1976, Zhou Enlai sucumbiu à longa batalha contra o cancro. Sua morte evocou uma manifestação de pesar público sem precedentes na história da República Popular. Deng aproveitou a ocasião do funeral em 15 de janeiro para louvá-lo por suas qualidades humanas. Após as manifestações em memória de Zhou, Deng foi expurgado outra vez de todas as funções. Só escapou de ser preso porque o Exército de Libertação Popular o protegia em bases militares, primeiro em Pequim, depois no sul da China. Cinco meses depois, Mao morreu. Sua morte foi precedida (e, na visão de alguns chineses, profetizada) por um catastrófico terramoto na cidade de Tangshan.

Deng Xiaoping emergiu de seu segundo exílio em 1977 e começou a articular uma visão da modernidade chinesa, depois do curto período de Hua Guofeng que havia realizado um ato de transcendentes consequências. Um mês após a morte de Mao, Hua Guofeng se aliou com os moderados — e vítimas altamente influentes da Revolução Cultural — para prender a Gangue dos Quatro. Deng retomou os cargos no establishment político e militar, mas em todos os aspetos da hierarquia formal era subordinado de Hua Guofeng. Hua mantinha todos os cargos-chave, que herdara de Mao e Zhou: era o presidente do Partido Comunista, primeiro-ministro e presidente da Comissão Militar Central. Contava com o benefício do endosso explícito de Mao.

O Partido Comunista devia se mostrar menos intrusivo e o governo tinha de ser descentralizado. Deng enfatizava a importância da descentralização em um país vasto com imensa população e diferenças regionais significativas. Mas esse não era o principal desafio, a tecnologia moderna tinha de ser introduzida na China, dezenas de milhares de estudantes chineses seriam mandados para o exterior (“Nada temos a temer com a educação ocidental”).

Deng prevaleceu porque havia ao longo das décadas construído ligações dentro do Partido e especialmente no Exército de Libertação Popular, e porque operou com destreza política muito maior do que Hua. Como um veterano de décadas de lutas internas no Partido, aprendera como fazer argumentos ideológicos servir a propósitos políticos. Os discursos de Deng durante esse período foram obras-primas de flexibilidade ideológica e ambiguidade política. Sua principal tática era elevar os conceitos de “procurar a verdade nos factos” e integrar “teoria e prática” ao “princípio fundamental do Pensamento de Mao Zedong” — proposição raramente apresentada antes da morte de Mao.

Deng rompeu com o precedente estabelecido por Mao minimizando sua própria capacidade em lugar de se apresentar como um génio em determinado campo. Ele incumbia seus subordinados de inovar, depois endossava o que funcionava. Conforme elaborava sua visão doméstica, Deng crescia aos olhos do mundo. Em 1980, sua ascensão foi completa. No Quinto Congresso do Comité Central do Partido Comunista em fevereiro de 1980, os seguidores de Hua Guofeng foram rebaixados ou removidos de seus cargos; os aliados de Deng, Hu Yaobang e Zhao Ziyang, foram indicados para o Comité Permanente do Politburo. As maciças mudanças de Deng não foram atingidas sem significativas tensões sociais e políticas, culminando enfim na crise da praça Tiananmen de 1989. Mas, Deng havia domado e reinventado o legado maoista, lançando a China de cabeça em um rumo de reforma que iria, no devido tempo, arrogar para si uma influência que seu desempenho e sua história o autorizavam a fazer.

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