quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Direitos Humanos e diferenças culturais



Existirão diferenças irredutíveis entre as tradições culturais europeias e asiáticas e as suas crenças sejam elas religiosas ou políticas? Será que estarão irremediavelmente divididos quando se trata de direitos humanos? É verdade que os porta-vozes dos governos de vários países asiáticos têm discutido a pertinência e o fundamento dos direitos humanos universais. Fazem-no frequentemente em nome de “valores asiáticos” específicos, que diferem das prioridades ocidentais. Insistem muitas vezes em afirmar que o apelo à aceitação universal dos direitos humanos reflete a imposição dos valores ocidentais sobre as outras culturas.

Os direitos humanos na China são um tema altamente contestado, e são revistos periodicamente pelo Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas. O governo da República Popular da China tem discordado com frequência. A Amnistia Internacional regularmente tem apresentado evidências de que a República da China viola as liberdades de expressão, movimento e religião de seus cidadãos e de outras pessoas de sua jurisdição. As autoridades da República da China afirmam definir os direitos humanos de maneira diferente, de modo a incluir os direitos económicos e sociais, bem como os direitos políticos, tudo em relação à “cultura nacional” e ao nível de desenvolvimento do país.

Que fundo de verdade se poderá atribuir a essa grande dicotomia cultural entre as civilizações ocidentais e não ocidentais a respeito da liberdade e dos direitos? O conceito dos direitos humanos universais no sentido amplo do Iluminismo, de direitos de todo ser humano, é na realidade uma ideia relativamente nova, tão difícil de encontrar no Ocidente como no Oriente antigo. As preferências de Platão e de Santo Agostinho pela ordem e pela disciplina, mais que pela liberdade, eram semelhantes às prioridades de Confúcio.

Se procurarmos tais filiações como pano de fundo do pensamento contemporâneo, podemos encontrar relações semelhantes nas culturas não ocidentais. Confúcio não é o único filósofo da Ásia, nem mesmo da China. As tradições intelectuais são muito variadas na Ásia, e muitos autores deram ênfase à importância da liberdade e da tolerância, chegando alguns a ver nisso a própria definição do ser humano. A linguagem da liberdade é muito importante, por exemplo, no budismo, que nasceu e se desenvolveu na Índia para em seguida se estender ao sudeste asiático e ao leste da Ásia, China, Japão, Coreia, Tailândia e Birmânia. Esta abordagem contrasta realmente com a ideia central de Confúcio: a disciplina.

O imperador indiano Asoka, que viveu na Índia no século III a.C. e comandou um império maior que o dos outros reis indianos, interessou-se pela ética pública e praticou uma política “esclarecida” depois de se horrorizar com a visão das carnificinas nas suas vitoriosas batalhas. Converteu-se ao budismo e contribuiu para transformá-lo numa religião mundial, enviando emissários, portadores da mensagem budista, ao exterior, tanto ao Oriente como ao Ocidente. Espalhou pelo território lousas nas quais estavam gravados os princípios de uma vida boa e os deveres do indivíduo e do estado. Essas inscrições conferem particular importância à tolerância face à diversidade: considera-se que “cada ser humano” tem direito a essa tolerância — que diz respeito às liberdades individuais e às maneiras de viver — por parte do estado e dos outros indivíduos. Muitos outros autores da antiguidade e da idade média (além de contemporâneos) em diferentes regiões da Ásia também se empenharam, segundo os mais variados registos, em favor da tolerância.

Colocam-se frequentemente questões particulares a respeito da tradição islâmica. Em razão dos conflitos políticos contemporâneos, em particular no Médio Oriente, descreve-se muitas vezes a civilização islâmica como fundamentalmente intolerante e hostil à liberdade individual. No entanto, a diversidade inerente a cada tradição também se encontra no islamismo. Os sábios árabes foram recetivos à filosofia grega e às matemáticas indianas, e por sua vez, empenharam-se em difundir os frutos de seu trabalho intelectual por todo o velho mundo.

Um sábio judeu como Maimónides, no século XII, fugiu de uma Europa intolerante (onde nasceu) e da perseguição dos judeus em busca da segurança que lhe oferecia o Cairo e a proteção do sultão Saladino. Al-Biruni, o matemático iraniano que escreveu o primeiro livro geral sobre a Índia no início do século XI (além das suas traduções para o árabe de tratados indianos de matemática), foi um dos primeiros antropólogos do mundo. Observou e insurgiu-se contra o facto de que “a depreciação dos estrangeiros é comum a todas as nações - umas e outras entre si -”, e dedicou grande parte de sua vida a favorecer a compreensão mútua e a tolerância. Existem naturalmente outros teóricos islâmicos e dirigentes que foram intolerantes e hostis aos direitos individuais, mas devemos levar em conta o alcance da diversidade no interior das tradições islâmicas. Não se pode pretender que a civilização islâmica se oponha de forma genérica à tolerância ou à liberdade individual.

Por causa da história particular do século das Luzes, do capitalismo de mercado e do estado social, os direitos humanos são muito mais celebrados na maioria das sociedades ocidentais que em muitos países da Ásia e da África. Mas trata-se de uma característica do mundo contemporâneo, e não de uma dicotomia antiga. É bastante importante não apresentar uma distinção moderna como uma oposição antiga, em virtude da qual a pretensa “essência” das culturas asiáticas ou o suposto “fundamento” dos costumes do Oriente se oporia a uma presumida “natureza” da civilização ocidental.

Os partidários dos direitos humanos, assim como os seus opositores, podem tirar proveito de um estudo e de uma compreensão mais profundos das diferentes culturas e civilizações, com suas respetivas diversidades e seus elementos heterogéneos, segundo os diferentes períodos da história.

Os governos e os representantes dos governos, ou os chefes religiosos, não têm o monopólio da interpretação dos valores ou das prioridades morais. A diversidade de opiniões em cada cultura reflete-se nas dissidências contemporâneas a que temos vindo a assistir a partir da aceleração do século XXI devido à globalização e à conexão instantânea por via da Internet.

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