segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A cultura chinesa e a sua forma de pensar



O facto de as mundividências de pensamento dos chineses diferirem, em alguns aspetos, das dos europeus, não significa que os chineses tenham um mecanismo cerebral de raciocínio diferente dos europeus. Duas civilizações distintas, e, no entanto, nada diferem em tudo o que é lógico, como 2+2 = 4. Lendo Confúcio, com um pouco de boa vontade encontraremos um raciocínio apuradamente lógico-formal. 

A escrita chinesa é pictográfica, em que os símbolos podem representar conteúdos com mais do que um significado, ou mais do que uma ideia. E a cosmologia chinesa é processual, centrada num movimento criativo dialético que se manifesta através da oposição complementar entre yin e yang. Por conseguinte, a geração dos seres e das coisas regula-se essencialmente pelo Li (ordenação ou princípio) e materialmente pelo Yi (mutação que promove a variabilidade). Foi assim, pois, que áreas como a medicina, matemática, química, entre outras, evoluíram significativamente desde a antiguidade, criando um legado acessível até aos dias de hoje. A ciência tradicional chinesa nada tem de mística ou mágica, baseia-se num sistema formal. Confúcio e Mêncio ocasionalmente serviam-se de expedientes formais para fixar pequenas sequências de raciocínio.

Uma coisa deve ser considerada: não há nenhuma cultura que possa reivindicar o monopólio do saber. O facto de haver maneiras diferentes de pensar sobre muitas coisas como, por exemplo, a moral e a ética, não significa que os europeus tenham legitimidade em reivindicar qualquer tipo de superioridade. O pensamento chinês possui uma singularidade própria que demarca diferenças em relação ao conhecimento desenvolvido no Ocidente. Organicista, quase “fechado em si próprio”, o pensamento chinês não deixou de ser abrangente e universal. Gerou uma ciência comprovadamente eficaz. O que é importante é não sermos tentados a enquadrá-lo dentro das balizas culturais ocidentais. Precisamos, no entanto, de conhecer melhor as suas origens.

Historicamente, o século VI a.C. é fundacional daquilo a que no Ocidente chamamos hoje ‘pensamento chinês’, quando num contexto de crise social se iniciou a criação de uma série de escolas preocupadas em formular propostas de reforma política e cultural que pudessem retomar a ideia de uma antiga harmonia perdida. No entanto, não se pode desprezar que há sempre nestes casos uma continuidade de linhas de diálogo empregadas em seu desenvolvimento desde séculos mais remotos em que é a transcendência que predomina como fonte de equilíbrio entre o material e o etéreo, ou seja, o equilíbrio entre opostos.

Foi durante os séculos II a.C. e I a.C. que a dinastia Han protagonizou a exegese dos textos clássicos tendo levado a uma geração de pensadores chineses a formular propostas filosóficas que condensassem os saberes das antigas escolas (confucionista, taoista, cosmogonista, entre outras). Desta forma se criaram textos cujo conteúdo demandava, necessariamente, algumas explicações complementares para a sua compreensão. Neste contexto é que surgem o Huainanzi, de Liu An, e o Chunqiu Fanlu, de Dong Zhong Shu, que pela primeira vez ordenam e sintetizam, de forma cosmológica, este acervo conceptual antes disperso e fragmentado entre os textos antigos.

Esta cosmologia tem uma importância fundamental para o pensamento chinês, pois ela constitui a estrutura de todas as suas ciências e nos permite compreender os paradigmas sobre os quais os pensadores clássicos montaram as suas propostas. Tão importante quanto é o fato desta ser uma cosmologia, e não uma cosmogonia, criada com base numa observação do material físico. A China, aliás, parece se destacar entre as civilizações por ser, talvez, a única que não possui um mito de criação autêntico. Somente na época dos Han é que um mito deste género viria a fazer parte da tradição, tendo sido importado provavelmente das áreas que haviam sido recentemente conquistadas no sul do território.

Tudo no Universo possui um Li, ou princípio. Li também pode ser traduzido como forma ou estrutura. O princípio pode ser inferido pela perceção de uma forma subjacente na matéria, determinada pela conformação dos veios da pedra de jade. Os antigos chineses acreditavam que o princípio de algo já estava contido na matéria e podia ser imaginado, portanto, antes da sua manifestação. Como o diamante, o jade só pode ser lapidado de acordo com os veios da pedra, senão esfacelar-se-á. Se o pensamento grego está impregnado do espírito do oleiro, que trabalha a massa amorfa da argila, primeiro moldada e logo formada inteiramente segundo a ideia do artesão, o pensamento chinês é marcado pelo espírito do lapidário, que experimenta a resistência do jade e emprega toda a sua arte tão somente em tirar partido do sentido destes pedaços de matéria bruta, para extrair o que nela preexistia e da qual nada podia se ter ideia antes de ser descoberta.

É o vazio que conforma a matéria, é o nada que ordena o que existe. Trinta raios ligam a roda ao eixo. A utilidade do eixo está no vazio da roda. O barro vai ao forno para fazer um pote, mas a utilidade do pote está no vazio. Fazem-se janelas e portas num quarto, mas a utilidade de um quarto reside no vazio. A analogia da pedra de jade foi utilizada pelos chineses para demonstrar que o vazio é o gerador da forma na matéria. Assim, Qi (vazio e matéria) é a oposição básica que gera energia, ou seja, a dualidade universal composta por yang e yin.

Tudo no universo tem o seu oposto. Se não o tiver, não existe. Por yang e yin tudo se manifesta. Só existe matéria por causa do vazio e vice-versa. O taiji nos mostra, porém, que um engendra o outro. Um possui a semente do outro, e no movimento cíclico de mutação universal, eles se alternam constantemente no poder. Somente da cópula destes dois é que pode haver a geração da natureza: da junção de macho e fêmea é que nasce o filho; o um gera o dois, o dois gera o três e o três gera as dez mil coisas — e todas as coisas possuem yin, possuem yang e a mistura dos dois gera o Qi (harmonia).

Tao significa a via, O caminho. É a regra pelo qual se alcança a harmonia perfeita com a natureza, a compreensão de todo este sistema e o funcionamento adequado para com o mesmo. É atingir o Li supremo, através da descoberta do Li pessoal. Cumprir o Tao é cumprir o ciclo da existência, é compreender o que essa manifestação particular do Li no ser humano (shen, ou “espírito”) tem de fazer, e fazer por ela própria; é encontrar o ritmo da existência. Tao, portanto, pode ser, inclusive, todo o sistema cósmico. Mas estas são apenas aproximações que podemos fazer de um termo intraduzível, inclusive para os próprios chineses. Encontrar o Tao será, pois, a grande busca daqueles autores que, depois do século VI a.C., se propuseram a solucionar os problemas da sociedade chinesa através de suas formulações teóricas. Para o eminente Confúcio, divisor de águas deste pensar filosófico chinês, a resposta apareceria no primeiro capítulo do Zhong Yong, texto coligido pelo seu neto Zisi. Laozi, o grande mestre da escola taoista, iria afirmar, porém, que trilhar o Tao consiste exatamente na prática de uma ação isenta de propósito (wu-wei), ou seja, suster todas as coisas em seu estado natural.


Bom, para amenizar um pouco a transcendência das coisas, deixo aqui um apontamento para mostrar a perplexidade e a incompreensão do pensamento de Mao Zedong por parte dos ocidentais no tempo da Guerra Fria e da Revolução chinesa. Na primeira conversa entre Mao e o presidente Nixon, em fevereiro de 1972, Nixon cumprimentou Mao por ter transformado uma antiga civilização. Mao respondeu: “Eu não fui capaz de mudá-la. Só fui capaz de mudar alguns lugares nos arredores de Pequim.” Após uma vida inteira de lutas titânicas para extirpar as raízes da sociedade chinesa, não era pequeno o pathos na resignada admissão de Mao quanto à omnipresença da cultura chinesa e do povo chinês. Mao, com a sua insistência em virar o antigo sistema de pernas para o ar, não conseguiu escapar ao eterno ritmo da vida chinesa. Quarenta anos após a sua morte, depois de uma jornada violenta, dramática e intensa, os seus sucessores voltaram a refazer uma sociedade cada vez mais próspera, voltando a recuperar a doutrina confucionista.


Emblemático da Revolução Cultural foi o “Pequeno Livro Vermelho” de citações de Mao, compilado em 1964 por Lin Biao, mais tarde designado sucessor de Mao e morto em um obscuro acidente aéreo quando atravessava o país, alegadamente após uma tentativa de golpe. Todos os chineses eram obrigados a carregar um exemplar do “Pequeno Livro Vermelho”. Os Guardas Vermelhos, brandindo os seus exemplares, “confiscavam” prédios públicos por toda a China, com a autorização — ou ao menos a tolerância — de Pequim, desafiando violentamente as burocracias das províncias.

Mas os Guardas Vermelhos não estavam mais imunes ao dilema das revoluções se voltando contra eles mesmos do que os quadros que supostamente deveriam purificar. Ligados mais por ideologia do que por treinamento formal, os Guardas Vermelhos se dividiram em fações perseguindo suas próprias preferências pessoais e ideológicas. Conflitos entre eles se tornaram tão intensos que, em 1968, Mao dissolveu oficialmente os Guardas Vermelhos e encarregou líderes partidários e militares leais de restabelecer os governos nas províncias.

Que alguns desses alvos fossem indivíduos mortos havia séculos não diminuiu o furor do ataque. Alunos e professores revolucionários de Pequim caíram sobre a aldeia natal de Confúcio, jurando pôr fim à influência do antigo sábio sobre a sociedade chinesa de uma vez por todas, queimando livros antigos, destruindo placas comemorativas e arrasando os túmulos de Confúcio e seus descendentes. Em Pequim, os ataques dos Guardas Vermelhos destruíram 4.922 dos 6.843 assim designados “locais de interesse cultural e histórico”. A própria Cidade Proibida foi, segundo se conta, salva apenas com a intervenção pessoal de Zhou Enlai. Uma sociedade tradicionalmente governada por uma elite de literatos confucionistas agora se voltava a camponeses rústicos como fonte de sabedoria. As universidades foram fechadas. Qualquer um identificado como “especialista” era suspeito, a competência profissional sendo um conceito perigosamente burguês.

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