quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A entrada da China e da volatilidade ocidental numa nova era



Há 2500 anos, mais ano menos ano, o mestre chinês, que no Ocidente é tratado pelo nome de Confúcio, já colocava em questão o paradigma da universalidade dos saberes e da diversidade dos seres, tópicos fundamentais para a elaboração de sistemas éticos. Poderia, então, estar capacitado a dar uma resposta ao problema dos direitos humanos, tal como entendemos hoje, no Ocidente, que acusa a China de deixar muito a desejar no que respeita a direitos humanos?

Porque será que ainda hoje as sociedades se pareçam tão estranhas? Na China, muitos dos códigos que ainda remontam a Confúcio não se parecem com os códigos europeus desde a democracia aos direitos humanos. A resposta é: tudo tem a ver com a cultura. Parece então óbvio que nos remetamos à questão das culturas. Tomemos como exemplo a noção de individualismo como contraposição ao forte sentido gregário dos chineses. Enquanto no individualismo a afirmação do indivíduo sobre a sociedade é uma meta primordial, no confucionismo é a vinculação do individuo à família o fator determinante da sua formação moral e social. No Ocidente, a questão da Liberdade é entendida como egoística e antropocêntrica, concentrada no indivíduo. Na Ásia, a restrição íntima do individualismo é considerada a base da Liberdade social, através do equilíbrio comunitário. Como afirmou Confúcio: “o autocontrolo raramente leva ao mau caminho”.

Cada sociedade produziu uma cultura específica pela necessidade de respostas aos mesmos problemas, mas em interação com ambientes diferentes. Logo, isso nos remete para a ideia constante de que todos os seres são iguais, mas cada um tem o seu próprio espaço e, por conseguinte, cada um desenvolve a melhor forma de viver nele. Isso, porém, não quer dizer que os chineses acreditassem sempre que o meio fazia a pessoa: ele o influenciava, com certeza, mas todos possuem a capacidade de mudar o seu destino. Assim, a cultura é vista, portanto, como a melhor forma de interagir com o ambiente: e no momento que ela atinge sua conformação ideal, ela pode ser modificada de acordo com a necessidade, mantida como padrão, ou deixada cair em desuso, caso os novos tempos o exijam. O que não muda, portanto, são os pressupostos sobre as quais as culturas são construídas: a busca simultânea do equilíbrio harmónico do indivíduo na sociedade, e da sociedade no seu meio juntamente com os demais.

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Antiguidade, é o momento histórico que no Ocidente precede a Era Moderna. E onde fica então a tradicional Idade Média? Fica na Antiguidade assim, dividida em dois períodos distintos: 1) O primeiro período da civilização greco-romana que termina com o fim do Império Romano do Ocidente no século V, e substituído pelos hábitos dos Bárbaros Germânicos; 2) O segundo período que é o período de excelência da grande cristianização da Europa que termina no século XV com Constantinopla a substituir o cristianismo pelo islamismo.

Uma vez que sabemos que houve o estabelecimento de contactos intelectuais profundos dos gregos do período helenístico com o Oriente, depois das conquistas de Alexandre Magno que se haviam estendido até à Índia, estabeleceu-se um corredor cultural da Ásia Central até ao Mediterrâneo, produzindo os seus efeitos na literatura e no imaginário destas civilizações. Um texto budista intitulado Milinda-Panha mostra como se estabeleceu um diálogo entre um rei grego (Menandro) e o sábio Nagasena acerca do budismo. Algum tempo depois, quando Roma assume o controlo da Europa, Filóstrato envia seu Apolónio de Tiana para estudar filosofia e magia com os indianos. Os chineses receberiam as suas primeiras informações sobre o Ocidente através do historiador Sima Qian, e Roma conheceria, com maior precisão, as origens da seda por Plínio, o Velho.

As diferenças intelectuais entre Ocidente e Oriente não pareciam ser tão problemáticas até ao final do século XVIII. Que, entretanto, vivia-se o período do Iluminismo da Era Moderna que havia começado no século XV com a Renascença e a Ciência a que todo o mundo se submeteu numa submissão, que hoje quer que se diga colonial. Mas aqui, o interesse dos árabes pela filosofia grega, é manifesta. Veja-se um Averróis e um Avicena. Ou ainda, veja-se o fascínio dos europeus pela “Tartária”, nome dado à China na época da sua dominação pelos mongóis. Muito antes de Marco Pólo, missionários nestorianos já divulgavam o cristianismo pela China; João de Carpino (1245-47) e Guilherme de Rubroeck (1253–55) foram também preparar o terreno para a chegada dos europeus no século XIII. O Livro de Pólo (1271–95), portanto, só viria a se tornar o mais famoso justamente por suas fantasiais e pelo tom aventureiro, se comparado às descrições de João de Montecorvino (1289-1328) ou André de Perusia (1307-30), bem mais realistas e precisas.

A ação jesuítica, principalmente a partir do século XVI, dinamizaria por completo esta relação. Um movimento em torno da tradução de obras clássicas chinesas seria iniciado, e uma estreita relação intelectual e científica se estabeleceu entre a Europa e a Ásia. Leibniz, fascinado pela China, chega a propor a existência de paralelos entre o pensamento ocidental e o neo/confucionismo. No século XVIII, Malebranche cria o seu Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filósofo Chinês; Voltaire empreende a divulgação da “miragem chinesa”, uma visão idílica do pensamento e da vida no império celeste baseada em suas leituras sobre Confúcio e nas cartas jesuíticas. Montesquieu iria criticar severamente esta posição, baseando-se igualmente naquilo que pensava conhecer sobre a China.

Mas depois, no século XIX, poucas vozes, como Schopenhauer ou Nietzsche, assumiriam com coragem compromisso com o pensamento asiático. Todo este movimento guarda uma profunda relação com o desenvolvimento da prática colonialista surgida neste século, que necessitava criar a ideia de hierarquia cultural para salvaguardar o valor e a importância de suas descobertas. Já não era apenas fé em Deus, mas também a fé na Ciência, que deveriam ser espalhados pelas culturas submetidas. A demarcação destas fronteiras encontrou ressonância no panorama da filosofia ocidental. E se algum autor parecia simbolizar esta tendência, esse seria Hegel. A consequência direta desta postura será a grande e geral inconsciência intelectual do século XX acerca da China, que somente a duros golpes políticos e após um grande esforço académico irá deslocar-se do atoleiro conceptual para reacender a necessidade de reflexão.

No final do século XIX, japoneses e chineses começaram também a diferenciar o pensamento ocidental do oriental. Um neologismo, Zhexue (em japonês Tetsugaku, que significa algo próximo a “estudo aprofundado”, “estudo com sagacidade”) começou a ser empregue para designar as formas de pensar advindas da Europa, em oposição às clássicas Jia (escolas) que compunham a tradição oriental. Note-se que, antes disso, o pensamento ocidental era classificado igualmente como Jia, sem uma notória dificuldade em aceitá-las como uma das formas do Tao (caminho). O contexto colonialista impunha, porém, uma necessária separação.

Em torno da década de 1930 alguns especialistas ocidentais e asiáticos começaram a construir um movimento de aceitação do pensamento oriental pela via filosófica. Isto significava demonstrar a validade do pensamento chinês, japonês e indiano como filosofias através justamente das estruturas de análise ocidentais. A proposta consistia em identificar a presença dos conceitos e métodos filosóficos no discurso das antigas “doutrinas”, a existência de ideias que pudessem contribuir para o enriquecimento da Filosofia, e os processos pelos quais os valores intelectuais foram estabelecidos nestas sociedades. Esta atitude foi uma excelente oportunidade de gerar aceitação, no Ocidente, dos sistemas de pensamento asiáticos.

A série “Science and Civilization in China”, organizada por Joseph Needham e publicada em Cambridge a partir da década de 1950, serviu de base — sem qualquer exagero — para a reformulação de toda a História da Ciência. Esta linha continua a encontrar alguns obstáculos. O primeiro deles é o problema de terminologia. Muito se contesta a inadequação da transliteração de termos chineses para as línguas ocidentais, provocando uma série de enganos interpretativos. Há também uma forte tendência a busca específica, nos textos chineses, de valores tidos como importantes na cultura ocidental, em detrimento daquilo que pudesse vir a ser de interesse legitimamente autóctone. Isso tem redundado numa abordagem superficial e pouco interessante da filosofia chinesa, que muitas vezes é confundida e suplantada por publicações de cunho esotérico e sensacionalista cujo principal atributo é apenas o de transmitir as deformações intelectuais propostas por autores desinformados.

Em contraposição a esta linha de estudo desenvolvida nos centros de língua inglesa, a Escola Francesa buscou abordar o problema do pensamento chinês por uma via completamente diversa. Sob a liderança de Marcel Granet, o mais famoso dos sinólogos franceses, desenvolveu-se a conceção de buscar compreender o pensamento chinês por si próprio. Isso significava afastar-se do problema “é ou não é filosofia” para demonstrar que o pensamento chinês possuía valia simplesmente pelo que representava historicamente, por sua profundidade conceptual (do qual os franceses adquiriram a consciência de seu desconhecimento) e pela construção de uma lógica alternativa à nossa. Esta orientação abriu uma nova perspetiva intercultural para a Europa, posto que ela se propunha a entender o cerne do pensar chinês, sua estrutura e funcionamento, e sua forma de lidar com o real — algo bastante distante do alcance da maior parte dos especialistas no início do século XX.

Em seu livro “O pensamento Chinês”, de 1934, Granet afirmava:
“A China Antiga, mais que uma Filosofia, teve uma Sabedoria. Esta se exprimiu em obras de características muito diversas. Raríssimas vezes assumiu a forma de exposição dogmática. Aliás, quase nada sabemos de positivo sobre a História Antiga da China”.
Seria muito fácil atribuir aos chineses uma mentalidade “mística” ou “pré-lógica”, se interpretássemos ao pé da letra os símbolos que eles reverenciam. Ademais, a injustiça que estaria presente num preconceito desfavorável. Com esta postura, a Academia francesa começava a se livrar da incómoda herança cristã e eurocêntrica que havia dominado o panorama dos estudos sinológicos ocidentais. No campo da Filosofia, a abertura gerada estimulou o interesse pela China, que se via desvinculada da necessidade de comprovar sua “validade científica”. A civilização chinesa possuía o seu próprio valor. A curiosa distinção empregada por Granet, “mais que uma filosofia, uma sabedoria” parece significar que este saber chinês, embutido em sua própria lógica, adquiriu uma eficácia comprovada histórica e intelectualmente, motivo pelo qual tal distinção só poderia ser feita por alguém, justamente, que tenha uma visão finita do que é filosofia.

O pensar chinês é um conjunto completo, orgânico, com um ritmo autêntico de funcionamento. O pensar, pois, é imanente, e essa imanência é a própria natureza. O aprofundamento no conhecimento do Oriente deu uma base mais segura para a sua interpretação. A quebra de uma hierarquia intelectual a priori tornou possível o diálogo entre saberes diferentes, e tanto europeus quanto chineses conseguiram realizar um trabalho mais profundo e menos analógico.

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