sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

A Palestina vista por Helena Salem





Texto baseado em Helena Salem 1948-1999], jornalista brasileira correspondente no Médio Oriente. 

Helena Salem, filha de imigrantes judeus, graduou-se em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1970, no auge da ditadura militar. Mas, desde meados da faculdade, começou a trabalhar na editoria internacional do Jornal do Brasil, onde se especializou em Médio Oriente. Depois de passar um ano em Itália, com uma bolsa de pós-graduação em Política Internacional, cobriu a Guerra do Yom Kippur, em 1973, nos países árabes, para o mesmo JB, permanecendo na região durante quatro meses. Ainda que de origem judaica, escreveu com abertura e simpatia sobre a Questão Palestiniana, o que haveria de lhe custar um alto preço. A partir daí teve uma vida profissional movimentada. Foi editora internacional do jornal Opinião, conheceu o exílio em Portugal, onde seria correspondente na Revista o Expresso. De volta ao Brasil, com a amnistia em 1979, trabalhou no Jornal da República e colaborou com diversos meios de comunicação, entre eles Folha de S. Paulo, até regressar ao quotidiano da redacção, como repórter especial de O Globo. Decidiu então dedicar-se à cobertura de cinema, sua (também) velha paixão. Cobriu os principais festivais nacionais e internacionais, e, com o cineasta Jorge Bodanzky, correalizou o documentário Igreja dos Oprimidos, inspirado num livro de sua autoria; esta coprodução franco-brasileira para a televisão francesa ganhou o prémio Margarida de Prata, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Nos últimos anos de vida trabalhou como repórter especial para o jornal O Estado de São Paulo, escrevendo sobre cinema.
«Depois que voltei, certa vez, um editor de jornal, quando eu saía para uma chamada “grande reportagem”, advertiu-me: "Helena, ao falar com a fulaninha, não deixe de olhar para os pés dela, os dedos, como toma café, tudo, isso é que é importante, mais do que o que ela disser. Jornalismo é isso, o colorido, as fofocas"»
«Como, no caso, se tratasse de uma excelente atriz, inteligente, com várias coisas a dizer, não resisti em ponderar para o tal editor (que mais tarde cairia em desgraça): “Fulaninho, jornalismo é isso para você. Pode ser que tenha razão. Inclusive como sua repórter tenho de fazer o que você me pede. Mas te asseguro que para o La República, de Roma, jornalismo pode ser outra coisa; para o Expresso, de Lisboa, uma outra; para o Libération, de Paris, ainda outra, e o The Guardian, de Londres, também. Para só te citar alguns. Então, fulaninho, seja mais humilde, diz que você quer isso, porque a tua opinião sobre jornalismo é isso.” Também eu não fui humilde na resposta e ele certamente quis me esganar com os olhos. Mas era impossível, mais uma vez, engolir aquela ideia de uma verdade indiscutível, com que se tenta impor como universal um ponto de vista particular. No Brasil, a forte influência do jornalismo americano, supostamente imparcial, sem conotações políticas, verdadeiro, contribuiu muito para a difusão desse mito do jornalismo sem ideologia, sem cor, puro. Que, a propósito, de puro geralmente não tem nada. Como se a verdade revelada em cada linha não se ligasse à luz utilizada, ao local onde você escolhe colocar a câmara.»
Para ir de Belém para Jerusalém, o dono do hotel é que nos dá as coordenadas: toma-se o autocarro 21, na Hebron Road, perto de Beit-Jala. E não esquecer de o passaporte sempre à mão. A passagem custa 6 shekels. É sentar-se e aguardar que chegue o motorista. Se olharmos à volta pela janela do autocarro é possível que chegue a hora de algum homem estender o tapete no chão e voltar-se para Meca para orar à hora certa. Essa disciplina para a reza é uma imagem de marca no mundo muçulmano. Não importa o que estejam a fazer, param e rezam. A maioria de nós ocidentais, com agendas superlotadas, não consegue nem uma vez sequer no dia esses dez minutos para se comprometer com seja lá o que for: com a respiração, com um pouco de meditação, de reflexão. Terminada a reza, enrola-se o tapete e prossegue-se o que se estava a fazer.

O percurso é rápido, cerca de vinte minutos, se não tivermos problemas no checkpoint. O motorista entra em Beit-Jala e segue por uma rua bastante íngreme e longa que cruza a cidade. Passamos por um checkpoint volante do qual se avista o checkpoint de Jerusalém. O motorista pára neste checkpoint. Um soldado aparece no primeiro degrau com uma metralhadora em punho. Dá uma olhada geral e desce. O motorista recolhe os documentos de todos os passageiros, no caso o passaporte, e manda-nos descer do autocarro, em fila do lado de fora. Um dos soldados sobe novamente e faz a vistoria à procura de alguma coisa, como armas, explosivos, bombas, facas, qualquer objeto que possa ser usado num atentado. Outro soldado inspeciona a mala ou o saco dos passageiros. E um terceiro soldado confere os documentos. É cada vez menor o número de palestinos que têm autorização para entrar em Jerusalém: só doentes graves que precisam de tratamento especializado, quem têm emprego comprovado, e alguns casos especiais que recebem autorização temporária. E eles recebem uma permissão de acesso. Esses documentos é que são conferidos. Os soldados são muito jovens. Em Israel, é obrigatório adolescentes, homens e mulheres, a partir dos 17 anos, alistarem-se. E a mistura de tanta juventude com uma arma dessas na mão só poderia assustar.

Israel começou a restringir a movimentação dos palestinos principalmente a partir da Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando ocupou mais terras árabes, deixando os palestinos, na época, com 22% dos 43,5% da parte que havia sido destinada a eles pela partilha definida pelas Nações Unidas, em 1947. A Resolução 242 da ONU dava aos israelitas 56,5% da área. Hoje, com o crescente aumento dos assentamentos ilegais e com a construção do Muro de Israel, os palestinos vivem em menos de 11% do território dividido pela ONU. Na Cisjordânia, são cerca de setecentos postos de controle, entre checkpoints, cercas de arame farpado, trincheiras e tipos diversos de bloqueios. Setenta e quatro por cento das ruas e estradas dos territórios ocupados são controlados pelo exército israelita. Esses dados são da organização não governamental Palestine Monitor.

A partir da primeira intifada, em 1987, foi implementado o sistema de permissão de acesso a Jerusalém, ao que o governo de Israel denomina território judeu. Depois, em 1988, proibiu a viagem de Gaza à Cisjordânia e vice-versa. Isso até hoje só é possível em datas e casos especiais, com autorização. Outra data marcante foi 1991; com a Guerra do Golfo, Israel, que é aliado dos Estados Unidos, se sentia entre inimigos e, vendo-se ameaçado de todos os lados, quis fechar mais as fronteiras. O sistema de permissão de acesso ao território israelita ficou mais rigoroso e individualizado. 
Desde 2000, quando aconteceu a segunda revolta palestina contra a ocupação, o cerco se fechou ainda mais. E com a construção do Muro de Israel, a partir de 2002, os palestinos dizem que vivem numa prisão a céu aberto.

Os atentados suicidas começaram em 2001, pelos chamados homens-bomba, e mulheres-bomba também, do Hamas, da Jihad Islâmica e da Brigada dos Mártires de Al-Aqsa. Em 2006, uma mulher-bomba, com 57 anos,
 Fátima Omar Mahmud Al-Najar, era mãe de 9 filhos e avó de 41 crianças. Dias antes de cometer suicídio, Fátima havia participado no cordão humano formado por dezenas de mulheres palestinas em torno da mesquita de Beit Hanun, em Gaza, para proteger militantes palestinos sitiados por soldados israelitas. No dia 3 de novembro de 2006, o exército de Israel atirou contra mulheres e crianças que estavam ali com a justificação de que os homens estavam tentando fugir vestidos de mulheres. O exército ocupou Beit Hanun por duas semanas. Dezanove pessoas morreram, a maioria mulheres e crianças. No dia 23 de novembro, Fátima se aproximou de um grupo de soldados e detonou os explosivos. Ela morreu e cinco militares ficaram feridos.

Junto ao muro da Cidade Velha de Jerusalém h
á bastante judeus ortodoxos, roupa preta e cabelo com tranças a cair à frente das orelhas, com o livrinho da Torá pertinho dos olhos. A rua movimentada é a Jaffa Road, uma rua comercial famosa da cidade. Vê-se que há uma boa mistura de judeus e árabes por aqui. Os árabes que estão aqui moram ou trabalham na cidade, porque a maioria que vem dos territórios ocupados não pode circular por Jerusalém. Eles têm um destino certo, e se forem apanhados fora do itinerário são mandados de volta e podem até ser presos. A Cidade Velha ou Cidade Antiga de Jerusalém é retangular e cercada por uma enorme muralha. Em 1981, o lugar foi nomeado pela Unesco Património Mundial da Humanidade. Foi construída, provavelmente, pelo rei Salomão, entre 1000 e 900 a.C. Existem oito portões. A cidade concentra os principais locais sagrados e está dividida em quatro partes: a judaica, a cristã, a arménia e a muçulmana.

O bairro cristão está na parte noroeste. A Basílica do Santo Sepulcro é o lugar mais visitado, junto com a Via Dolorosa, o caminho percorrido por Jesus. A sudoeste, está o bairro arménio. O bairro muçulmano fica a nordeste, onde estão localizadas as duas mesquitas — a Cúpula da Rocha e a Mesquita de Al-Aqsa — e o Haram Ash-Sharif, chamado pelos judeus de Monte do Templo. O bairro judeu fica a sudeste, onde também ficam o monte Sião e o túmulo do rei David. Para entrar no bairro árabe tem de se encontrar o portal de Jaffa. As ruas da Cidade Velha são bastante estreitas e cheias de gente, muitos turistas, europeus, muitos africanos, orientais, gente de todos os lugares. E, além dos lugares sagrados, lojas, árabes ou beduínos que veem a alma das pessoas através dos olhos, muitas lojinhas de lembranças ou recordações.

Já é final de tarde. Os trabalhadores estão voltando para casa, e é hora também de nós regressarmos a Belém, o nosso hotel. O autocarro está lotado. São palestinos bastante simples que encontram serviço braçal em Jerusalém. A maioria trabalha na construção civil, como pedreiro. Muitos trabalham, inclusive, em assentamentos ilegais, construindo casas e prédios em terras palestinas, em terras que foram tomadas deles mesmos. No checkpoint, a mesma rotina: descemos, mostramos os documentos e, desta vez, temos de trocar de autocarro. 

Sem comentários:

Enviar um comentário