segunda-feira, 4 de abril de 2022

Falar russo ou ucraniano na Ucrânia?




As origens do povo russo estão dentro das fronteiras da Ucrânia, em torno da região de sua capital - Kiev. Foi no século IX que se formou o chamado Rus’ de Kiev, que amalgamava os eslavos orientais daquela região. Na época não havia a diferença entre os russos atuais, os pequeno russos (os ucranianos atuais) e os russos brancos (os bielorrussos atuais). Rus’ era uma confederação solta de cidades Estado governadas por nobres vassalos do Grande Príncipe de Kiev.

Essa origem comum e o facto de Kiev ter sido o berço da civilização russa atual explicam muito do caráter de Putin na relação existente hoje entre a Rússia e a Ucrânia de amor/ódio. Parte dos ucranianos, principalmente os que vivem no leste do país, tem laços íntimos com o “Grande Irmão” russo. A outra metade, geralmente localizada no oeste do país cujo centro é Lviv, quer evitar a dependência da Rússia e viver a sua própria vida segundo os padrões dos países da atual União Europeia.

A guerra de 1812 provocada pela invasão de Napoleão Bonaparte foi um importante divisor de águas na cultura da aristocracia russa. Foi uma guerra de libertação nacional do império intelectual dos franceses, um momento retratado por Tolstoi no ‘Guerra e Paz’, 1869, com os Volkonsky a lutarem para se libertarem das convenções estrangeiras da sociedade e começar uma nova vida com base em princípios russos. O Príncipe Andrei Nikolayevich Bolkonsky, filho do famoso general russo Nikolai Volkonsky, criou e educou Andrei (
o melhor amigo de Pierre Bezukhov) e a sua irmã Maria Volkonskaya numa propriedade remota. 

Subitamente, os nobres veem-se a redescobrir os esquecidos costumes nacionais. Embora as vozes contra os franceses tivessem quase se transformado num coro na primeira década do século XIX, a aristocracia estava muito comprometida com a cultura de um país, a França, com o qual guerreava. Os salões de São Petersburgo estavam cheios de jovens admiradores de Bonaparte, como Pierre Bezukhov em Guerra e Paz. O grupo mais elegante era o dos condes Rumiantsev e Caulaincourt, embaixador francês em Petersburgo, círculo no qual vivia a Hélène de Tolstoi. Mas, mesmo nesses círculos, a invasão de Napoleão causou horror, e a sua reação contra tudo o que fosse francês foi a base de um renascimento russo na vida e nas artes.

No clima patriótico de 1812, educados para falar e pensar francês, esforçavam-se para conversar na língua nativa. O almirante Shishkov, durante algum tempo ministro da Educação Pública, atacou as expressões francesas do estilo de salão e quis que o russo literário retornasse às raízes arcaicas do eslavo canónico. Para Shishkov, a influência do francês era culpada do declínio da religião ortodoxa e do velho código moral patriarcal: o estilo de vida russo estava sendo corroído pela invasão cultural do Ocidente.

A língua russa fazendo parte da grande família indo-europeia (à qual pertencem também o alemão e o inglês, o persa e o português, entre muitas outras), é uma língua relativamente recente, mas de grande difusão. A grande difusão da língua russa tem muito a ver, é claro, com o imperialismo czarista, assim como com a influência que a União Soviética obteve, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Assim, em suas dezenas de repúblicas, espalhadas desde o extremo oriente da Ásia até a Polónia e os países bálticos (Lituânia, Letónia e Estónia), o russo era praticado, sendo seu uso obrigatório tanto nas escolas quanto nas repartições públicas de todo o tipo.

A língua russa utiliza uma versão, pouco alterada, do alfabeto cirílico, criado pelo missionário grego Cirilo, em colaboração com o seu colega Metódio. Embora o alfabeto exista desde o século IX, o primeiro livro publicado em russo data apenas de 1625. A questão de língua é tão relevante que o próprio czar Pedro, o Grande, fez questão de participar da reforma do alfabeto cirílico em 1708. A reforma marcaria o rompimento com o eslavo eclesiástico, praticado pela Igreja. Em 1767, o russo é declarado a língua de ensino na Universidade de Moscovo, em 33 letras do alfabeto cirílico.

No século XIX, época em que foi abolida a servidão e o país começou a dar seus primeiros passos no desenvolvimento de uma economia capitalista, a literatura russa se tornou um sucesso no Ocidente. Mas havia nobres que chegavam a falar a língua francesa, símbolo de status cultural, no próprio lar com a família. Dostoievski (1821-1881) e Tolstoi (1828-1910), ainda hoje são dois escritores tidos como dos maiores na cultura europeia. O “Shakespeare” russo chama-se Aleksandr Pushkin (1799-1837), o maior poeta da Rússia. Considerado o fundador da literatura russa moderna, marcou a chamada Época de Ouro da poesia russa na primeira metade do século XIX.

Quando a União Soviética chegou ao fim, o emprego exclusivo das línguas nacionais nos países que antes faziam parte, foi considerado uma atitude patriótica. Com a superação (ou pelo menos o abrandamento) dos problemas económicos que afligiram a Rússia, logo após o fim do comunismo, a sua influência voltou a crescer e a língua russa retomou grande parte do seu prestígio. A abertura política e o surgimento de uma camada de milionários russos provocaram também uma presença maior da língua russa no mundo ocidental, tanto em intercâmbios culturais, cada vez mais frequentes, como no turismo e até no mundo do Jet set das principais capitais europeias.

Viremo-nos agora para a Ucrânia. Os mais de 40 milhões de ucranianos, e as demais em zonas fronteiriças da Polónia, Eslováquia e Roménia, falam russo. Mas o ucraniano tem uma língua própria. O ucraniano atual está baseado principalmente no grupo de dialetos do sul e do leste, concretamente as regiões ao sul de Kiev como de Cherkasy e Poltava. Mas o ucraniano tem mais a ver com a parte a ocidente na região de Lviv
, importante centro cultural ucraniano. Essa influência tem sido exercida, desde a Idade Média, especialmente no léxico, mas também na fonologia, sendo mais forte nos tempos modernos, sobretudo nos séculos XIX e XX. Como resultado, podemos falar de uma dupla influência dialectal sobre o ucraniano normativo, ainda que a influência do sul e do leste seja a mais significativa.

A língua ucraniana, um ramo das línguas eslavas, assemelha-se à língua russa, embora também apresente semelhanças fonéticas com a língua servo-croata e partilhe muito do seu vocabulário com o polaco. Apesar da semelhança com o russo, o alfabeto ucraniano, com 32 letras e um sinal de abrandamento, possui diversas particularidades: utiliza o "I" latino, além de outra letra criada para representar o som /g/ (como em "gato"), além de não apresentar algumas letras russas. O nome desta língua eslava deriva de ukraina, que quer dizer “zona fronteiriça”, referindo-se à região onde o domínio cossaco fazia limites com os principados eslavos do Norte e do Oeste e das hordas turcas do Sul. A atual língua ucraniana deriva do dialeto da língua russa arcaica que se falava na região do rio Dniepre. Foi escrita em alfabeto latino, forma Latinka, similar às formas usadas pelo checo e polaco nos séculos XVI – XVII. No século XIX, o padre Josyp Łozynski Ivanovyč, de Lviv, na sua publicação Ruskoje wesile ("Casamento ucraniano") de 1834 tentou revitalizar esse uso. Durante o domínio do Império Austro-húngaro houve nova tentativa de ocidentalizar a língua ucraniana pelo uso do alfabeto latino, em projeto do político Checo Josef Jirecek. Nova tentativa nesse sentido de usar o Latinka foi feita em 1927 na conferência de Kharkiv pelos linguistas M. Johansen, B. Tkačenko e M. Nakonečnyj. Porém, a União Soviética se opôs a essa iniciativa.

Com a incorporação do país no Grão-Ducado da Lituânia (e parcialmente na Polónia) no século XIV, dá-se a evolução em língua literária unindo os eslavos da atual Bielorrússia e os eslavos da atual Ucrânia. No final do século XVIII e início do século XIX aconteceu uma revolução: muitos dos componentes não nativos da língua foram eliminados e a língua foi reestruturada sobre a base dialectal de Kiev. Uma complicação adicional se produziu entre 1863-1905, vigorando uma política czarista de unificação da língua entre o povo eslavo (pan-eslavismo). Devido a isso, a utilização do idioma falado no Oeste da atual Ucrânia foi censurada, bem como o idioma falado na atual Bielorrússia. Entretanto entrou na moda a língua polaca, bem como a cultura polaca. Após a revolução de 1917, o desenvolvimento do ucraniano teve os seus altos e baixos. O grande período de divisão do território ucraniano entre vários estados ao longo da sua história, como Polónia, Rússia, Checoslováquia, Roménia, Império da Áustria e Hungria, deixaram marcas no desenvolvimento da língua escrita e falada.

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