segunda-feira, 18 de julho de 2022

Discurso franco e filosofia de vida



Michel Foucault (1926-1984), no inverno de 1984, alguns meses antes de morrer, dedicou a sua última série de lições no Collège de France ao tema do discurso franco na Antiguidade clássica. Investigando, tal como fizera Nietzsche um século antes, possíveis antecedentes de sua própria abordagem à sinceridade, Foucault analisou a vida de Sócrates e – usando provas compiladas por Diógenes Laércio – a vida, muito mais estranha, de Diógenes de Sinope (m. c. 320 a.C.), o cínico arquetípico que, segundo as descrições antigas, vivia num barril, carregando uma lamparina à luz do dia e dizendo a todos os que perguntavam: “Estou em busca de um homem”, que significava com coluna vertebral e honesto.

Foucault, é claro, sabia que as lendas acerca de um filósofo como Diógenes não eram mais levadas a sério. Porém, tal como Nietzsche, ele menosprezava a “negligência” moderna diante do que chamou de “problema” da vida filosófica. Esse problema, especulava, desaparecera por duas razões: em primeiro lugar, porque as instituições religiosas, em especial o monasticismo cristão, haviam absorvido, ou (em suas próprias palavras) “confiscado”, o “tema da prática da verdadeira vida”. E, depois, “porque a relação com a verdade agora só pode ser validada e expressa como conhecimento científico”.

Foucault não foi a única figura do século XX a reconhecer que a filosofia poderia ser um modo de vida, como uma busca nietzschiana por “tornar-se o que se é”, e não apenas um estudo dos traços mais gerais do mundo e das categorias do pensamento. Heidegger com ‘Ser e Tempo’ e Sartre com ‘O Ser e o Nada’ caminharam no mesmo sentido. Ainda assim, o próprio Foucault recorda que, apesar de sua durabilidade, o tema da vida filosófica tem sido desafiado, desde o Renascimento e a Reforma, pelas conquistas práticas da física, da química e da biologia modernas, assim como pelo crescente número de tradições religiosas e espirituais que, como o protestantismo, enfatizam o autoexame. Daí o problema da vida filosófica: dadas a evidente força pragmática da ciência aplicada e a força igualmente evidente das comunidades de fé em dar um sentido para a vida, por que deveríamos nos esforçar para elaborar “nossas próprias ponderações” em resposta a questões monumentais, como “O que posso saber?”, “O que devo fazer?” e “O que posso esperar?”.

Acerca dos filósofos antigos, os mitos devem ser levados em consideração, pois tais lendas formaram uma parte constitutiva da tradição filosófica do Ocidente. Que as vidas de muitos filósofos antigos estejam além de qualquer possibilidade de crença é um facto cultural por si só: isso ajuda a explicar a contínua fascinação. Foi Platão, em seus diálogos socráticos, quem popularizou a palavra filosofia. No século seguinte ao da morte de Sócrates, um grupo distinto e identificável de “filósofos” floresceu pela primeira vez. Monumentos em homenagem a eles – bustos, estátuas – foram erguidos em Atenas e em outros lugares de língua grega. E então, ao olhar para trás, estudiosos antigos estenderam a palavra filósofo a sábios gregos mais velhos.

Hoje, muitos dizem que o primeiro filósofo foi Pitágoras (c. 580-500 a.C.), alegando, a partir de argumentos socráticos, que ele não considerava sábio homem algum, mas apenas deus. Em sua Metafísica, Aristóteles foi ainda mais longe, aplicando o termo a uma ampla gama de teóricos pré-socráticos, de Tales a Anaxágoras (c. 500-429 a.C.), e afirmando, também a partir de Sócrates, que tais pensadores “filosofavam para escapar da ignorância”, espantados como estavam diante dos primeiros princípios por trás de todas as coisas.

Para Sócrates, assim como para muitos (mas não todos) daqueles que tentaram se pautar por seu exemplo, essa ambição de alguma forma girava em torno da resposta ao adágio “Conhece-te a ti mesmo”. Mesmo na Antiguidade, o autoexame representa apenas uma parte da história da filosofia. Desde o início – em Platão e em Agostinho –, o problema da filosofia se desdobra na complicada relação entre o que hoje chamamos de “ciência” e “religião”: no caso de Platão, entre a lógica matemática e a relação mística; em Agostinho, entre a busca aberta pela sabedoria e a transmissão de um pequeno número de dogmas invariáveis.

Os filósofos antigos declaravam ser “natural acreditar em grandes homens”. Hoje, uma crença deste género não parece natural, e o que faz de alguém “grande” está longe de ser evidente. Quando Nietzsche cogitou aproximar-se da vida filosófica “para ver se seria possível viver de acordo com ela”, ele aparentemente pensava num personagem exemplar – e mítico – como Sócrates. Porém, está no destino de um filósofo moderno como Nietzsche legar-nos cadernos e cartas que fornecem, com detalhes, indícios de uma série de inconsistências e idiossincrasias que tornam absurdo questionar seriamente se seria possível viver dessa maneira. Além disso, é consequência da crítica do próprio Nietzsche à moral cristã o facto de todos que a levam a sério acharem difícil, se não impossível, encontrar um código de conduta que seja bom para todos e, portanto, digno de ser copiado.

Qual a relação entre razão e fé, entre filosofia e religião? E de que maneira a busca pela sabedoria se relaciona tanto com as formas mais rigorosas de investigação quanto com a “ciência”? Exerce-se melhor a filosofia em particular ou em público? Quais são suas implicações, caso existam, para a política, a diplomacia e a conduta dos cidadãos numa sociedade democrática?

Acima de tudo, o que é esse “eu” que tantos filósofos tentaram conhecer? E de que forma a conceção que temos dele mudou ao longo da história, em parte como consequência do tratamento dado por sucessivos filósofos às suas investigações? O autoconhecimento seria mesmo possível? E, caso seja, até que ponto? Mesmo após autoexaminar-se durante anos, Nietzsche declarou que “somos necessariamente estranhos para nós mesmos”.

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