quinta-feira, 28 de julho de 2022

A epistemologia do que julgamos ser verdade



O que dizemos e fazemos quotidianamente na nossa vida, a que se costuma chamar "senso comum", é o que pensamos como são as coisas. Ao passo que o que dizem os filósofos acerca do que julgamos como são as coisas é muito diferente. O que está em causa é o reconhecimento de certa correspondência inteligível entre nossas palavras e as coisas no mundo. Indissociável desse reconhecimento, acompanha-o também uma confiança em relação ao nosso sentir comum. Daí não vermos como se poderia dispensar o vocabulário que usamos para viver e conviver. Por conseguinte, os nossos hábitos linguísticos e o nosso comportamento a condizer é considerada configurar-se como se fosse a verdade.

Fala-se do “realismo do senso comum”, algo como uma forma incipiente de realismo metafísico, que estaria, por assim dizer, embutida na prática corriqueira da linguagem. O realismo metafísico, sob essa perspectiva, que não é senão demasiado comum na literatura filosófica corrente, não mais seria que o prolongamento, sofisticado e elaborado em linguagem filosófica, de uma postura realista mais tosca e não elaborada, identificada àquele sentimento humano de que há uma realidade que nos transcende e que se diz em nosso discurso e se “espelha” em nossas verdades ordinárias.

Há uma ideia fortemente consolidada de que, independentemente de nós, a realidade é só uma e que a essa realidade corresponde uma só verdade. E como acreditamos que é possível nós conhecermos a verdade, e, por conseguinte, poder dizer verdades sobre ela, parece-nos em geral que a verdade das nossas proposições não está em nós. Não depende, portanto, de nós a reconhecermos. Um mundo real está aí, as verdades lhe dizem respeito, mas a realidade e a verdade não precisam de nós. Assim costumamos julgar.

Muito de nossos esforços, como indivíduos e como sociedade, vai na direção de querermos ampliar mais e mais nosso conhecimento do mundo. 
E entendemos que temos sido e somos, com frequência, bem-sucedidos. Essa busca humana da verdade, filósofos das mais variadas tendências sempre a tematizaram, os próprios filósofos céticos não deixaram de reconhecê-la. Sexto Empírico chega mesmo a dizer que o homem é um animal que, por natureza, ama a verdade, que o “o homem é indagador por natureza e há, infundido em seu peito, um grande e apaixonado anseio pela verdade”. E os contextos não nos sugerem ironia nem qualquer alusão a uma eventual propensão do homem comum a ser dogmático.

As filosofias fizeram da verdade um de seus temas preferenciais e bom número de filósofos pretendeu ter estabelecido verdades definitivas e absolutas, cujo reconhecimento se exprime então em seus discursos verdadeiros. Opuseram a realidade às aparências e se julgaram capazes de, para além das aparências, chegar à “realidade mesma” das coisas, conhecendo como estas são por natureza. 
Ao longo dos séculos – e isso desde a filosofia clássica grega – o dogmatismo filosófico foi com muita frequência associado a uma postura metafísica realista e à noção de verdade como correspondência. O realismo metafísico postula uma realidade concebida como existente em si mesma, com uma natureza constituída de modo determinado e independentemente de nossa capacidade cognitiva, por vezes como independente também de qualquer conhecimento que lhe pudesse dizer respeito, humano ou outro. 

Eram metafisicamente realistas os dogmatismos clássicos e helenísticos que o ceticismo grego combateu. Eram-no a teoria platónica das Formas, a metafísica aristotélica, o materialismo epicurista e o sistema estoico. As doutrinas da verdade, sob diferentes roupagens, propunham basicamente uma noção de correspondência da verdade. Aristóteles legou-nos em sua Metafísica uma formulação que se tornou paradigmática: “Dizer que o ser não é, ou que o não-ser é, é falso, mas que o ser é e que o não-ser não é, verdadeiro”. O ceticismo grego tinha diante dos olhos essa noção de verdade que o pensamento antigo formulou.

As principais correntes filosóficas medievais mantiveram fundamentalmente a “opção” grega pelo realismo metafísico e pela noção de correspondência da verdade que o acompanhava. E ela foi também preservada em boa parte no pensamento filosófico moderno, pelo menos até ao advento do empirismo cético de Hume e da revolução epistemológica kantiana que lhe sucedeu. Na filosofia depois de Kant, essa noção metafísica de verdade e essa postura realista caíram em descrédito crescente. Nietzsche criticou-as severamente e a filosofia contemporânea, sob diferentes óticas e perspectivas, as tem continuamente questionado – em verdade as tem ostensivamente rejeitado.

Das críticas que se fizeram e se fazem à noção de verdade como correspondência entre o discurso e as coisas, Kant foi um filósofo sumamente oportuno. Na Crítica da Razão Pura, o filósofo deu efetivamente um passo decisivo para uma nova conceção que levou ao aprofundamento da questão que envolve as noções de realismo e de verdade como correspondência. Kant teve a felicidade de poder mostrar que a rejeição do realismo metafísico (que ele chamou de “transcendental”) não implica necessariamente a recusa de toda a postura que se possa legitimamente chamar de “realista”. A noção de correspondência na formulação da verdade pode ser preservada, mesmo abandonando a sua interpretação metafísica. Por outras palavras, Kant rompeu com a ligação milenar que se estabelecera entre o realismo metafísico e a noção de correspondência na noção de 'verdade'. Deixouportanto, manifesto o caráter contingente e não essencial dessa ligação. 

Os crentes no realismo transcendental - que consideram espaço e tempo como dados reais em si mesmos, que existem independentes da nossa percepção através dos nossos sentidos - vão mais longe, interpretando a aparência das coisas como coisas-em-si, que existe independentemente de nós e da nossa sensibilidade. Essa suposição errónea, que aquilo que nós vemos deve ter uma existência por si mesma, acabaria por significar que as nossas representações sensoriais são inadequadas para estabelecer a realidade das coisas. 

Mas se pensarmos bem, as aparências não podem ser independentes. A aparência é o resultado do encontro da coisa-em-si com os nossos sentidos e a sua representação no nosso cérebro. Como o cérebro faz isso, se é como fotografasse, se é como se desenhasse, é um problema diferente que faz parte do labor dos neurocientistas. Não é um problema filosófico ou conceptual. Está mal concebida a ideia de procurar se a causa da percepção reside no interior do nosso cérebro, ou no mundo exterior ao cérebro. Kant tem razão num ponto: é impossível apresentarmos uma prova satisfatória e inequívoca de que estamos certos quando dizemos que uma coisa é assim e assado. Temos de acreditar nas provas indiretas, desde o modo como conseguimos sobreviver no dia-a-dia, bem como no sucesso do empreendimento científico. Se foi possível ir à lua e voltar, é porque aquilo que se sabia estava certo.

Do que se disse até aqui, não resulta que devamos deitar fora o idealista cético. O idealista cético é, em verdade, um “benfeitor da razão humana”, precisamente porque nos compele a uma vigília atenta e nos faz ver que, sob pena de nos contradizermos a cada passo, devemos tomar todas as nossas percepções, chamemo-las de internas ou de externas, tão-somente como uma consciência do que está sob dependência de nossa sensibilidade, compelindo-nos a considerar os objetos externos dessas percepções como coisas reais e verdadeiras. E devemos deixar cair tanto o conceito de coisa-em-si, como de transcendental, que são conceitos que geram mais confusão do que iluminação. E assim, espaço e tempo são realidades independentemente dos nossos sentidos, conceitos e intuições a priori. As dificuldades com que depara o realismo transcendental e o impedem de estabelecer a realidade dos objetos externos não mais reaparecem, já que toda a percepção fornece prova imediata de algo real no espaço ou, antes, é o próprio real. Somos realistas empíricos quando concedemos à matéria uma realidade que não é inferida mas sim imediatamente percebida. E assim deixamos cair por terra o idealismo.

Aquilo que os idealistas metafísicos chamaram aparência ou fenômeno, que tantas doutrinas de realidades absolutas e coisas-em-si gerou, é o que os neurocientistas chama de representações. Pode assim interpretar-se a realidade no espaço e no tempo, opondo-a às coisas fictícias, aos objetos do sonho e da imaginação, distinguindo-a dos eventos puramente mentais, caracterizando-a decididamente como exterior ao sujeito empírico, preservando, em suma, a nossa intuição comum da realidade exterior. Nesse domínio empírico, continua sempre possível falar de correspondência entre o nosso conhecimento e os objetos. Ora, é nesses termos que podemos definir a noção de verdade. Não é essencial ao realismo a metafísica, que significa que se pode adequadamente pensar a relação e a correspondência como pilares conceptuais na noção de verdade.


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