sábado, 2 de julho de 2022

A face de Janus




Diz-se, façamos de conta em conversas de café, que o Ocidente perdeu a face de Janus que contempla o mundo. Na minha lista de génios, à volta de cem, desde Tales a Zuckerberg, pelo meio encontra-se Leonardo da Vinci, Darwin, Einstein, e por aí fora. E, todavia, todos eles cometeram muitos erros e enganaram-se imenso. Neste tipo de Universo, só temos acesso àquilo que ficou designado pelos filósofos de “Aparência”. E, pelo menos, de uma coisa estamos certos: no mundo de aparências o erro e o engano são as coisas mais abundantes e mais bem distribuídas universalmente. Historicamente, as civilizações confiaram no sangue, nos deuses e nos inimigos partilhados para contrariar a tendência de se dividirem à medida que iam crescendo. Mas o que é que mantém unidas democracias seculares grandes e diversificadas, como os Estados Unidos e a Índia, ou, até mesmo, a Grã-Bretanha moderna e a França?

Mark Zuckerberg, bem como a maioria dos atuais génios da matemática, são aquele tipo de pessoa que uns chamam ingénuo e outros autista. Não são pessoas malévolas, claro está, que tenham desejado as perversidades das suas invenções. Mas, ao reajustar tudo numa corrida pelo crescimento, esta conceção ingénua da psicologia humana, que não compreende a sua complexidade, negligenciaram os custos externos que eles próprios impuseram à sociedade. No século XXI, as empresas de tecnologia americanas reajustaram o mundo e criaram produtos que parecem agora ser corrosivos para a democracia, obstáculos à compreensão partilhada e destruidores dos afetos sentimentais humanos.

Os sociólogos identificaram pelo menos três grandes forças que unem coletivamente as democracias bem-sucedidas: capital social (extensas redes sociais com altos níveis de confiança), instituições fortes e histórias partilhadas. As redes sociais enfraqueceram todas as três forças. Nas suas primeiras encarnações, plataformas como o Myspace e o Facebook eram relativamente inofensivas. Mas atividades que podem impressionar os outros não cimentam uma amizade da mesma maneira que uma conversa de café.

Antes de 2009, o Facebook dava aos utilizadores uma cronologia simples. Isso começou a mudar em 2009, quando o Facebook deu aos utilizadores uma forma de, publicamente, dar “gostos” nas publicações com o clique de um botão. Nesse mesmo ano, o Twitter introduziu algo ainda mais poderoso: o botão de retweet, que permitiu aos utilizadores subscreverem publicamente uma publicação, ao mesmo tempo que a partilhavam com todos os seus seguidores. O Facebook copiou rapidamente essa inovação com o seu próprio botão de “partilhar”, que ficou disponível para os utilizadores de smartphones em 2012. Os botões “gosto” e “partilhar” rapidamente se tornaram funcionalidades padrão da maioria das outras plataformas.

Em 2013, as redes sociais tinham-se tornado num novo paradigma social. Com jeito e sorte era possível criar uma publicação que se “tornasse viral” e o tornasse “famoso na internet” por alguns dias. Se errasse, poderia ficar soterrado em comentários de ódio. As nossas publicações alcançam a fama ou a ignomínia com base nos cliques de milhares de estranhos e, em contrapartida, contribuímos com milhares de cliques para o jogo. E nesta altura já muitos inventores destas novas tecnologias se penalizavam porque se tinham enganado quanto ao seu otimismo acerca da bondade humana. O que se estava a destapar era a verdadeira natureza humana tapada por camadas e camadas de sucessivas doutrinas morais hipócritas. Os filósofos da modernidade iluminista eram excelentes psicólogos sociais. Sabiam que a democracia tinha um calcanhar de Aquiles porque dependia do julgamento coletivo do povo sujeito à turbulência das paixões indisciplinadas.

A nossa tendência é para nos dividirmos em fações, em seitas, que se inflamam pela animosidade mútua, dispostos ao vexame e à opressão. A Democracia é o melhor sistema político de governação dos povos possível; mas a sua autoridade é, por consequência, das mais frágeis. Quando os cidadãos perdem confiança nos líderes eleitos, nas autoridades de saúde, nos tribunais, na polícia, nas universidades e na integridade das eleições, então todas as decisões são contestadas. E é assim que autocracias como a China se encontram no topo da lista dos países com a autoridade mais estável. Quando as pessoas perdem confiança nas instituições, perdem confiança nas histórias contadas por essas instituições. Isso é particularmente verdadeiro para as instituições encarregadas da educação das crianças. Os currículos de história causaram muitas vezes controvérsia política, mas o Facebook e o Twitter tornam possível aos pais mostrar a sua indignação todos os dias com um novo trecho das aulas de história dos seus filhos — e das aulas de matemática e das escolhas literárias e de quaisquer novas alterações pedagógicas em qualquer parte do país. Os motivos dos professores e administradores são questionados, e por vezes seguem-se leis ou reformas curriculares abrangentes, que degradam o ensino e reduzem ainda mais a confiança no mesmo. Um resultado é que os jovens educados na era da Internet têm menos probabilidade de chegar a uma história coerente de quem somos como povo, e menos probabilidade de compartilhar qualquer história com aqueles que frequentaram escolas diferentes ou que foram educados numa década diferente.

Aqui chegados, hoje as redes sociais de muitos movimentos niilistas têm um poder solvente universal, quebram laços e enfraquecem instituições. Podem protestar e derrubar, mas nunca governar. Exigem a destruição das instituições existentes, mas não oferecem uma visão alternativa do futuro ou uma organização que o pudesse fazer. Na maioria das vezes, são pessoas a gritar umas com as outras e a viver em bolhas de um tipo ou de outro.

Como se isso já não bastasse para a degradação da democracia, as ideologias de direita e de esquerda radicalizaram-se em populismos dos extremos. Como tudo o que vem da América, é imitado e espalha-se como uma epidemia. E assim a última década é marcada pela era Trump, do racismo e xenofobia, à direita; e pela cultura do cancelamento à esquerda. Tudo isto tem tido origem e efeitos transformadores na vida universitária, e agora na política e na cultura que se espalhou no mundo Europa-América.

A estupidez à direita é mais visível nas muitas teorias da conspiração que se espalham através dos meios de comunicação social de direita. Mas à esquerda também existe um outro tipo de estupidez: a estupidez estrutural, embora de uma forma diferente. O problema é que a esquerda controla os altos comandos da cultura: universidades, organizações noticiosas, ONGs, publicidade, grande parte de Silicon Valley, e os sindicatos de professores e faculdades de ensino que moldam a educação do ensino primário ao secundário. E em muitas dessas instituições, a dissidência foi sufocada. Muitas instituições de esquerda começaram a disparar contra si próprias. E, infelizmente, essas são as pessoas que informam, instruem e entretêm a maior parte do mundo mediático. Confusos e assustados, os líderes raramente desafiaram os ativistas ou a sua narrativa não liberal. Acusações de racismo ou transfobia, por parte de grupos que se sentem vitimizados, a pessoas só porque discordam do politicamente correto.

É provável que a polarização política aumente num futuro próximo. Os níveis de raiva, desinformação e violência vão aumentar. As reformas devem reduzir a enorme influência de extremistas irritados. Uma democracia não pode sobreviver se as suas praças públicas forem lugares onde as pessoas receiam falar livremente e onde não se possa chegar a um consenso estável. O poder que as redes sociais dão aos trolls está a criar um sistema que se assemelha menos a uma democracia e mais ao domínio do mais agressivo. As reformas devem limitar a amplificação que as plataformas dão às franjas agressivas. Talvez a maior alteração que reduziria a toxicidade das plataformas existentes fosse a verificação do utilizador como condição prévia para obter a amplificação algorítmica que as redes sociais oferecem. Esta mudança eliminaria a maior parte das centenas de milhões de bots e de contas falsas que poluem atualmente as principais plataformas. Também reduziria provavelmente a frequência das ameaças de morte, ameaças de violação, maldade racista e trolls em geral. Estudos mostram que o comportamento antissocial se torna mais comum online quando as pessoas sentem que a sua identidade é desconhecida e que não podem ser localizados.

Sem comentários:

Enviar um comentário