quinta-feira, 14 de julho de 2022

O Ano Zero antes da Guerra Fria - 1945



O próprio Ano Zero seria em certa medida eclipsado da memória coletiva do mundo pelos anos de destruição que o precederam e por novos dramas que ainda adviriam na Coreia, no Vietname, na Índia e no Paquistão, em Israel, no Camboja, em Ruanda, no Iraque, no Afeganistão e em outros lugares. Mas, para aqueles que chegaram à maioridade depois do Ano Zero, depois de tanta coisa ser criada entre as ruínas da guerra, foi talvez o ano mais importante de todos. Aqueles dentre nós que cresceram na Europa Ocidental, ou mesmo no Japão, puderam desfrutar sem temores o Estado de bem-estar social, economias cujo crescimento parecia irrefreável, uma lei internacional, um “mundo livre” protegido pela aparentemente inexpugnável hegemonia americana. Não iria durar, é claro. Nada dura para sempre. Mas isso não é razão para não prestar homenagem aos homens e mulheres que estavam vivos em 1945, a suas adversidades, e a suas esperanças e aspirações. 

É difícil dizer quando exatamente começou a Guerra Fria. Divergências sérias já eram visíveis em Yalta, por mais que Roosevelt tentasse manter Stalin a seu lado — a ponto de fustigar Churchill sem necessidade. Os ministros do Exterior das Cinco Grandes Potências — Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética, França e China — tinham-se reunido para discutir vários tratados de paz, especialmente com a Itália, a Finlândia e os países balcânicos. Não discordaram em nada que fosse substancial. Na verdade, os Estados Unidos, em prol da harmonia na aliança entre as grandes potências, já tinham concordado em reconhecer o governo provisório imposto pelos soviéticos na Polónia sem maiores questionamentos quanto à sua natureza, e estavam preparados para fazer o mesmo no caso da Hungria. Em seu relatório sobre a conferência, o secretário de Estado James F. Byrnes declarou que seu governo “compartilha o desejo da União Soviética de ter governos amigáveis à União Soviética na Europa Oriental e Central”.

Mas Molotov tinha outra agenda. O comunismo era a principal força em duas das grandes potências, fora a União Soviética: na França, onde o Partido Comunista ainda era muito poderoso, e na China, onde uma guerra civil em fogo brando logo chegaria à fervura. Se Molotov pudesse humilhar os nacionalistas chineses e os franceses, e ainda envolver os Estados Unidos, a causa comunista sairia bastante fortalecida. Assim exigiu que a França e a China fossem excluídas das discussões sobre os tratados, uma vez que não eram signatárias dos termos de rendição dos países mais relevantes. O objetivo era fustigar os franceses, insultar os chineses e irritar os britânicos. John Foster Dulles, em suas memórias, não pôde deixar de expressar a sua admiração pelos talentos e pelo sangue-frio diplomáticos de Molotov. O ministro do Exterior francês, Georges Bidault, um ex-líder da resistência e futuro presidente, foi constantemente menosprezado, provocado e humilhado. 
O ministro chinês era simplesmente ignorado, como se nem estivesse presente na sala. E Bevin, que era temperamental, era alfinetado até irromper em explosões de fúria, a que se seguiam pedidos de desculpas que poderiam resultar em concessões à posição soviética. Foi dito a Bevin e Byrnes que a União Soviética não mais cooperaria caso a França e a China não fossem excluídas. Byrnes recusou-se a impor mais humilhação a seus aliados, e a conferência foi abandonada. 

Estava marcado o fim de uma época, a época de Teerã, Yalta, Potsdam. Marcava o fim de qualquer pretensão por parte dos comunistas soviéticos de que eram ‘amigos’ do lado ocidental da Europa. Começava o período em que a hostilidade era proclamada abertamente. O mundo, e em particular as duas Grandes Potências, tinham pela frente uma escolha dolorosa. Uma das opções era fortalecer as Nações Unidas. Nesse caso, inevitavelmente, as Grandes Potências teriam de abrir mão de uma grande medida de soberania nacional, e o poder de veto no Conselho de Segurança seria abolido. Os russos teriam o direito de inspecionar as instalações atómicas americanas e vice-versa. Essa era a solução preferida pelo próprio Baldwin, não só por razões morais, mas em benefício da autopreservação. Dulles, como sempre, tinha uma visão mais moralista. A ONU deveria permanecer sempre fraca, porque não havia em âmbito mundial um consenso quanto a julgamento moral. Para ele, a Guerra Fria era um conflito moral tanto quanto político, uma guerra do bem contra o mal. Um mundo dividido em dois blocos, um suspeitando do outro, um mundo que poderia manter-se estável por muitos anos, mas que depois iria tender para uma guerra de grandes proporções.

E foi isso que aconteceu. Não haveria um governo mundial, muito menos uma democracia mundial. Os poderes deixados aos dois países europeus representados no Conselho de Segurança logo seriam ainda mais exauridos pela sangrenta extinção de seus impérios. Os soviéticos e os americanos derivavam para uma aberta animosidade. E a China, um país gravemente ferido pela ocupação japonesa, dividia-se ele mesmo em dois blocos, desmoralizados nacionalistas mantendo as cidades importantes ao sul da Manchúria, e os comunistas dominando o interior e grande parte do norte. 
Um artigo publicado na New York Times Magazine em 14 de outubro de 1945 expressava uma confiança total na liderança do generalíssimo Chiang Kai-shek. Isso não lhe valeria nada. Exatamente quatro anos depois, o generalíssimo se limitaria a exercer a sua autoridade sobre uma pequena ilha ao largo da costa de Fujian, antes conhecida como Formosa, e hoje como Taiwan.

E assim o Ano Zero finalmente terminava, num misto de gratidão e de ansiedade. Agradecidas por ter sido alcançado algum tipo de paz na maioria dos lugares, as pessoas tinham menos ilusões quanto a um futuro glorioso, e crescentes temores quanto a um mundo cada vez mais dividido. Milhões ainda sentiam frio e fome demais para comemorar o Ano-Novo com algum semblante de alegria. Além disso, as notícias eram frequentemente sombrias: revoltas devido à falta de alimento eram esperadas na Alemanha ocupada; atos de terrorismo estavam gerando caos na Palestina; os coreanos estavam protestando em fúria contra o estatuto de regime semicolonial; a luta continuava na Indonésia, com soldados britânicos e fuzileiros holandeses, “supridos de equipamento americano”, tentando esmagar a rebelião nativa. Mas a sensação que se tinha ao ler os jornais de todo o mundo no último dia de 1945 era de que as pessoas precisavam de descomprimir. Durante uma guerra de âmbito mundial, o que acontece em qualquer lugar é importante. Em tempos de paz, as pessoas precisam de comemorar a vida dentro de suas casas. O New York Times falava na tempestade do dia anterior, e anunciava que a cidade se preparava para uma noite de passagem de Ano-Novo como já não passava desde 1940. Porém, mais do que os artigos, foram os anúncios no Times que exibiram o quase inimaginável abismo entre o novo mundo e o velho.

Se há algo a ser deduzido desses vislumbres do estado de espírito global nessa véspera de Ano-Novo, é que um certo sentido de normalidade começava a se introduzir novamente no cotidiano de pessoas que tinham sorte o bastante para serem capazes de erguer a cabeça da calamitosa desgraça que marcou o período imediato do pós-guerra. Não era um luxo ao alcance dos que ainda estavam deslocados na Alemanha, nos campos japoneses de prisioneiros ou em qualquer limbo sórdido em que se encontrassem.

Diante da tarefa de reconstruir seus países despedaçados, eles não tinham tempo para festejos, nem mesmo para muita lamentação. Havia trabalho a ser feito. Isso propiciou uma percepção mais circunspecta da realidade, mais cinzenta, mais ordenada, menos excitante que as convulsões da guerra e da libertação. Em alguns lugares, claro, novas guerras — contra senhores coloniais ou inimigos domésticos em conflitos civis — continuariam em andamento, e novas ditaduras seriam impostas. 

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