segunda-feira, 25 de julho de 2022

Marx acreditava que a história da sociedade humana faz parte da história natural



A história do patriarcado e a da sociedade classista, estão de tal maneira interligadas na prática que seria difícil imaginar o derrube de um sem que grandes ondas de choque se abatessem sobre a outra. Marx encara as relações sexualmente reprodutivas como de primordial importância e, em A ideologia alemã, chega a afirmar que, antes de tudo, a família é a única relação social. Quando se trata da produção da vida em si — “tanto da do indivíduo por meio do trabalho quanto a da nova vida por meio da procriação” —, as duas grandes narrativas históricas de produção sexual e material, sem as quais a história humana rapidamente chegaria ao fim, são vistas por Marx como intimamente interligadas. O que homens e mulheres criam de forma mais notável são outros homens e mulheres. Ao fazê-lo, geram a mão de obra de que qualquer sistema social necessita para se sustentar. Apesar de histórias distintas, no entanto, ambas são pontos seculares de conflito e injustiça, e suas respetivas vítimas, portanto, detêm um interesse conjunto na emancipação política.

Ao longo da primeira metade do século XX, Marx foi a inspiração primordial por trás de movimentos anticoloniais. Os marxistas, assim, foram vanguardistas quanto às três maiores lutas políticas da Idade Moderna: a resistência ao colonialismo, a emancipação das mulheres e a luta contra o fascismo. Para a maioria dos grandes teóricos de primeira geração das guerras anticoloniais, o marxismo forneceu o ponto de partida indispensável. Nas décadas de 1920 e 1930, praticamente os únicos homens e as únicas mulheres que pregavam a igualdade racial eram comunistas.

Os pós-modernos têm por vezes acusado o marxismo de ser eurocêntrico, tentando impor seus próprios valores brancos, racionalistas e ocidentais em setores bem diversos do planeta. Não há dúvida de que a obra de Marx é limitada pelas condições sociais do autor. Se seu pensamento é válido, dificilmente poderia ser de outra forma. Marx foi um intelectual europeu de classe média. No entanto, não muitos intelectuais europeus de classe média clamavam pelo derrube do império ou pela emancipação dos trabalhadores das fábricas.

Os que buscam a emancipação política não se podem dar ao luxo de ser exigentes demais quanto ao pedigree dos que lhes estendem a mão. Fidel Castro não virou as costas à revolução socialista porque Marx era um burguês alemão. Os radicais asiáticos e africanos têm sido teimosamente indiferentes ao facto de Trotsky ter sido um judeu russo. São, em geral, os liberais da classe média que se aborrecem com o hábito de “patronizar” operários com sermões, digamos, sobre o multiculturalismo.

A acusação de que Marx não passa de mais um racionalista do Iluminismo disposto a saquear a natureza em nome do homem é totalmente falsa. Poucos pensadores vitorianos prefiguraram de maneira tão impressionante o ambientalismo moderno. Marx está plenamente ciente do conflito entre a exploração capitalista de curto prazo dos recursos naturais e a produção sustentável de prazo mais longo. O avanço económico, insiste repetidas vezes, tem de ocorrer sem pôr em risco as condições naturais, globais, das quais dependem as futuras gerações. Não existe a menor dúvida de que Marx estaria na linha da frente do movimento ambientalista caso fosse vivo. Por trás dessa preocupação com a natureza reside uma visão filosófica. Marx era um naturalista e um materialista para quem homens e mulheres são parte da natureza e se esquecem de sua condição de criaturas em risco.

O que se altera — o que torna históricos os seres naturais — são as várias formas que nós, humanos, usamos para trabalhar a natureza. A humanidade produz seus meios de subsistência de maneiras diversas. Isso é natural no sentido de ser necessário para a reprodução das espécies. No entanto, também é cultural ou histórico, envolvendo, como envolve, tipos específicos de soberania, conflito e exploração. Não há motivo para supor que aceitar a natureza “eterna” do trabalho nos leve equivocadamente a crer que tais formas sociais também sejam eternas. Marx acreditava que a história da sociedade humana faz parte da história natural. Isso significa, entre outras coisas, que a sociabilidade está embutida no tipo de animais que somos. A cooperação é necessária à nossa sobrevivência material, mas também faz parte de nossa autorrealização como espécie.

Para Marx, a relação entre a natureza e a humanidade não é simétrica. No fim, como ele observa em A ideologia alemã, a natureza é que dá as cartas. Para o indivíduo, isso se chama morte. O sonho de imortalidade é uma visão que secretamente odeia o material porque ele bloqueia o nosso caminho para o infinito. Essa é a razão por que o mundo material tem de ser vencido pela força ou dissolvido na cultura. É o que os pós-modernos não aceitam, os limites que nos fazem ser quem somos.

Os seres humanos para Marx são parte da natureza, embora capazes de se defender dela; e essa separação parcial da natureza é em si parte de sua natureza. A própria tecnologia com a qual trabalhamos a natureza é moldada a partir dela. No entanto, embora Marx veja a natureza e a cultura formando uma unidade complexa, ele se recusa a dissolver uma na outra. Ele rejeita a bela fantasia, velha como a própria humanidade, em que uma natureza magnânima gentilmente se curva a nossos desejos. Marx crê no que chama de uma “humanização da natureza”, mas a natureza para ele sempre será, de certa forma, recalcitrante com a humanidade, apesar de essa resistência a nossas necessidades poder ser minimizada. E isso tem seu aspeto positivo, já que superar obstáculos faz parte de nossa criatividade. Um mundo mágico também seria um mundo tedioso.

As duas grandes ameaças à sobrevivência humana que agora nos confrontam são a militar e a ambiental. Provavelmente acabarão convergindo mais e mais no futuro, conforme as lutas por recursos escassos venham a se transformar em conflito armado. Ao longo dos anos, os comunistas se incluíram entre os mais ardorosos defensores da paz. Mas, se quiser entender as causas da agressão global, o movimento pela paz não pode se dar o luxo de ignorar a natureza da besta que a alimenta. E isso significa que ele não pode se dar o luxo de ignorar os insights do marxismo.

O mesmo se aplica aos ambientalistas. O capitalismo não pode evitar a devastação ecológica, dada a natureza antissocial de seu impulso para acumular. O capitalismo pode vir a tolerar a igualdade racial e de género, mas não pode, por natureza, alcançar a paz mundial ou respeitar o mundo material. Por isso, com o capitalismo, a prazo estaremos mesmo todos mortos. Então, aí está. Marx tinha uma profunda desconfiança quanto ao dogma abstrato, e não era assim tão cético quanto ao papel do indivíduo na história. Não tinha tempo para o conceito de uma sociedade perfeita e era cauteloso com relação à noção de igualdade como se vestíssemos todos a mesma farda. Diversidade sim, mas não uniformidade.

Não se concentrou de forma tacanha na classe de operários braçais nem encarava a sociedade em termos de duas classes nitidamente polarizadas. Marx não fez da produção material um fetiche. Ao contrário, achava que ela deveria ser abolida na medida do possível. Seu ideal era o lazer, não o trabalho. Se prestou tamanha atenção ao fator económico, foi a fim de reduzir o seu poder sobre a humanidade. Seu materialismo era plenamente compatível com convicções morais e espirituais profundas.

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