quinta-feira, 21 de julho de 2022

Ideologia em Marx



Para começar, Marx, em “A Ideologia Alemã”, não separa a produção das ideias e as condições sociais e históricas nas quais são produzidas. Mas tal separação, aliás, é o que caracteriza a Ideologia. Marx concebe a História como um conhecimento dialético e materialista da realidade social. E que entre as várias fontes dessa conceção se encontra a filosofia hegeliana, criticada, mas conservada em aspetos essenciais.

Da conceção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição. Porém, Marx demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo mesmo, entre sua face subjetiva e sua face objetiva, entre sua exteriorização em obras e sua interiorização em ideias: a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais e se chama luta de classes. Da conceção hegeliana, Marx também conserva as diferenças entre abstrato/concreto, imediato/ Imediato, aparecer/ser. Tanto assim que define o concreto como “unidade do diverso, síntese de muitas determinações”, devendo-se entender o conceito de determinação não como sinónimo de conjunto de propriedades ou de características, mas como os resultados que constituem uma realidade no processo pelo qual ela é produzida. Ou seja, enquanto o conceito de “propriedades” ou de “características” pressupõe um objeto como dado e acabado, o conceito de “determinação” pressupõe uma realidade como um processo temporal.

A análise da mercadoria revelará, por exemplo, que há mais mercadorias do que supúnhamos à primeira vista, pois um elemento fundamental do modo de produção capitalista, o trabalhador, que aparece como um ser humano, é, na verdade, uma mercadoria – ele vende no mercado a sua força-de-trabalho. Vemos, pois, que a mercadoria não é uma coisa (como aparece), mas trabalho social, tempo de trabalho. E que não é qualquer tempo de trabalho, mas tempo de trabalho não pago, portanto, a mercadoria oculta o facto de que há exploração económica.

Ora, a matéria, como provam as ciências naturais, é algo inerte, constituído por relações mecânicas de causa e efeito, de partes exteriores umas às outras, sendo inconcebível supor que haja interioridade naquilo que é material. E a reflexão supõe uma interiorização, uma volta sobre si e para dentro de si. Como colocar reflexão na matéria? E que a matéria de que fala Marx não é a matéria física ou química, a coisa inerte que não possui atividade interna. A matéria de que fala Marx é a matéria social, isto é, as relações sociais entendidas como relações de produção, ou seja, como o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético é os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens.

Nas considerações sobre “a ideologia em geral”, Marx e Engels determinam o momento de surgimento das ideologias no instante em que a divisão social do trabalho separa trabalho material ou manual e trabalho intelectual. Para compreendermos por que esta separação aparecerá como independência das ideias com relação ao real e, posteriormente, como privilégio destas sobre aquele, precisamos acompanhar em linhas gerais o processo da divisão social do trabalho, tal como Marx e Engels o expõem na Ideologia Alemã.

Os homens, escrevem Engels e Marx, se distinguem dos animais não porque tenham consciência (como dizem os ideólogos burgueses), mas porque produzem as condições de sua própria existência material e espiritual. São o que produzem e são como produzem. Essa produção das condições de existência depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biofisiológicas do organismo humano) e do aumento da população pela procriação. Esta, além de ser natural, já é também social, pois determina a forma de intercâmbio e de cooperação entre os homens, forma esta que, por sua vez, determina a forma da produção na divisão do trabalho.

A produção e reprodução das condições de existência através do trabalho (relação com a natureza), da divisão do trabalho (relação de intercâmbio e, de cooperação entre os homens), da procriação (sexualidade e família), constituem em cada época o conjunto das forças produtivas que determinam e são determinadas pela divisão social do trabalho. Essa divisão, que já se inicia na própria família, conduz à separação entre pastoreio e agricultura, entre ambos e a indústria e entre os três e o comércio. Estas separações conduzem à separação entre cidade e campo, ao mesmo tempo em que, no interior de cada esfera de atividade, novas formas de divisão do trabalho se desenvolvem.

A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação de algo fundamental na existência histórica: a existência de diferentes formas da propriedade, isto é, a divisão entre as condições e instrumentos ou meios do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, por sua vez, na desigual distribuição do produto do trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho engendra e é engendrada pela desigualdade social ou pela forma da propriedade.

A propriedade começa como propriedade tribal e a estrutura social é a de uma família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes e consumo. A segunda forma da propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade privada coletiva dos cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma, por exemplo), e a estrutura da sociedade é constituída pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos. Esta separação permite aos senhores se distanciarem da terra e dos ofícios, que ficam a cargo dos escravos – esta separação leva os senhores a viverem nas cidades e a partir daí se estabelece a separação entre a cidade e o campo, de onde resultarão lutas sociais e políticas. A terceira forma da propriedade é a feudal ou estamental e que se apresenta como propriedade privada territorial trabalhada por servos da gleba, e como propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres ou oficiais das corporações que vivem nos burgos (cidades medievais). 

A estrutura da sociedade cria os proprietários como nobreza feudal e como oficiais livres dos burgos, e os trabalhadores como servos da terra enfeudada e como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a eles, há uma figura social intermediária: o comerciante. As transformações dessa estrutura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do trabalho, dá origem à forma da propriedade que conhecemos: a propriedade privada capitalista. Aqui a divisão social do trabalho alcança seu ápice: de um lado, os proprietários privados do capital (portanto dos meios, condições e instrumentos da produção e da distribuição), que são também os proprietários do produto do trabalho, e, de outro lado, a massa dos assalariados ou dos trabalhadores despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força de trabalho, que vendem como mercadoria ao proprietário do capital.

Na Ideologia Alemã, Marx expõe de modo muito breve a passagem dessas formas da propriedade ou da divisão social do trabalho, cujas transformações constituem o solo real da história real. Nos Fundamentos para a Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx retoma a exposição de maneira extremamente minuciosa, corrige várias das afirmações feitas na Ideologia Alemã, introduz novas determinações na forma da propriedade e, sobretudo, define a relação de produção a partir do processo de constituição das forças produtivas na divisão social do trabalho, introduzindo o conceito, inexistente no texto da Ideologia Alemã, de modo de produção. Este não é um dado, mas uma forma social criada pelas ações económicas e políticas dos agentes sociais (independentemente de sua vontade e de sua consciência. A consciência estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da existência, e as ideias nascem da atividade material.

Cada um não pode escapar da atividade que lhe é socialmente imposta. A partir desse momento, todo o conjunto das relações sociais aparece nas ideias como se fossem coisas em si, existentes por si mesmas e não como consequência das ações humanas. Pelo contrário, as ações humanas são representadas como decorrentes da sociedade, que é vista como existindo por si mesma e dominando os homens. Se a Natureza, pelas ideias religiosas, se “humaniza” ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é, aparece como um dado natural, necessário e eterno, e não como resultado da praxis humana. Esta fixação da atividade social – esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa de nosso controlo, que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos – é um dos momentos fundamentais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos.

A ideologia propriamente dita, isto é, o sistema ordenado de ideias, é como algo separado e independente das condições materiais, visto que os teóricos, os ideólogos, os intelectuais não estão diretamente vinculados à produção material das condições de existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação ou separação através de suas ideias. As ideias aparecem como produzidas somente pelo pensamento, porque os seus pensadores estão distanciados da produção material.

As ideias podem parecer estar em contradição com as relações sociais existentes, mas o mundo social é que é contraditório. Por exemplo, faz parte da ideologia burguesa afirmar que a educação é um direito de todos os homens. Ora, na realidade sabemos que isto não ocorre. Nossa tendência, então, será a de dizer que há uma contradição entre a ideia de educação e a realidade. Na verdade, porém, essa contradição existe porque simplesmente exprime, sem saber, uma outra: a contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com o seu trabalho e aqueles que usufruem dessas riquezas, excluindo delas os produtores. Porque estes se encontram excluídos do direito de usufruir os bens que produzem, estão excluídos da educação, que é um desses bens. Em geral, o pedreiro que faz a escola; o marceneiro que faz as carteiras, mesas e lousas, são analfabetos e não têm condições de enviar seus filhos para a escola que foi por eles produzida. O facto de ser a maioria analfabeta a construir as escolas que os seus filhos não vão frequentar é a consequência da verdadeira contradição entre a ideia burguesa e a realidade.

As relações sociais e a consciência da ideia podem entrar e efetivamente entram em contradição como resultado da divisão social do trabalho material e intelectual. Quem produz não consome. E quem consome não produz. E é esta a contradição da perceção da desigualdade social: uns pensam, outros trabalham; uns consomem, outros produzem e não podem consumir os produtos de seu trabalho. Na realidade há antagonismos entre classes sociais particulares, pois onde houver propriedade privada não pode haver interesse social comum.

Sem comentários:

Enviar um comentário