quinta-feira, 24 de julho de 2025

Mahsa Amini


Em setembro de 2022, Mahsa Amini, jovem curda de 22 anos, foi presa pela "polícia da moral" por supostamente usar o hijab de forma “imprópria”. Morreu dias depois sob custódia, com sinais de espancamento. Isso gerou uma revolta espontânea em todo o país inspirada no movimento das mulheres curdas da Síria e do Iraque. Tornou-se um grito de libertação civil que englobou a luta contra toda a forma de repressão. Milhares de jovens saíram à rua. Os protestos ocorreram em mais de 80 cidades, inclusive em redutos conservadores. O regime reagiu com repressão brutal. Centenas de mortos (ONGs estimam mais de 500). Milhares de presos, incluindo crianças. Algumas execuções por “corrupção na Terra”, uma acusação ampla usada contra opositores. Mesmo sob brutalidade, o protesto deixou uma mensagem: "O medo está a ser vencido, e a ruptura entre povo e regime é profunda". 
O Irão é, hoje, um país onde um povo moderno vive sob um regime arcaico, e a tensão entre essas duas forças cresce a cada ano. Resta saber quanto tempo essa contradição poderá ser sustentada.



A morte de Mahsa Amini não foi só uma tragédia — foi um símbolo da opressão diária vivida pelas mulheres. Mulheres de todas as idades tiraram o véu nas ruas, queimaram hijabs, cortaram os cabelos. Foram gestos de desobediência civil com risco de prisão, tortura ou morte. Lideraram os protestos com coragem, mobilizando também homens e minorias étnicas. Mesmo sem uma revolução imediata, o movimento “Mulher, Vida, Liberdade” mudou o imaginário nacional. O véu deixou de ser apenas um tecido: tornou-se símbolo da dominação. O número de mulheres que se recusam a usá-lo é cada vez maior, mesmo com ameaças e punições. O regime não consegue mais conter a luta. O colapso pode não vir por um golpe, mas por um longo desgaste ético, simbólico e social.

A Guarda Revolucionária é um Estado dentro do Estado. Foi criada por Khomeini em 1979 para proteger a revolução islâmica, de forma independente das Forças Armadas regulares. Tornou-se uma força militar, ideológica e económica. Controla o programa de mísseis, a inteligência externa (Força Quds) e a repressão interna. Controla grandes conglomerados industriais, de construção, telecomunicações e o petróleo. Está por trás de Khatam al-Anbiya, maior empresa de engenharia do país (infraestrutura, gás, barragens, estradas). Fundos paramilitares e fundações islâmicas (bonyads), isentos de impostos, que drenam recursos estatais. Estes guardas ganham com o contrabando e o mercado negro, que cresce justamente devido às sanções. Interesse direto na manutenção do conflito com o Ocidente. Quanto mais o país é isolado, mais os "Guardas" lucram e reforçam a sua posição interna.

Por conseguinte, o regime aguenta-se com repressão sofisticada, que é brutal. A elite religiosa e militar se protege mutuamente. Não há instituições democráticas funcionais nem uma oposição estruturada. O povo resiste, mas está isolado, cansado e empobrecido. Ainda assim, o regime perdeu a legitimidade junto a boa parte da população, especialmente entre os jovens. Os protestos de 2022 foram mais profundos do que os anteriores. As mulheres estão na linha da frente, e isso mostra que a luta agora não é só política, é existencial e civilizacional.

Desde 1979, sob o regime dos aiatolás, as mulheres foram colocadas em posição legal inferior. São obrigadas a usar hijab (véu islâmico) em público, mesmo contra a sua vontade. Não podem cantar ou dançar em público. São discriminadas em tribunais. O testemunho de uma mulher vale metade do de um homem. Elas precisam de permissão do marido para viajar. Em heranças, recebem metade da parte dos homens. Mesmo com altos níveis de escolaridade, a mulher iraniana enfrenta barreiras legais e sociais para atuar livremente na sociedade.

Mas elas não se curvaram, e vão resistindo continuamente desde os anos 1980. O regime permitiu o acesso feminino à educação (por razões demográficas e técnicas), mas isso fortaleceu as mulheres. Hoje, mais de 60% dos estudantes universitários no Irão são mulheres. Elas se organizaram silenciosamente em áreas como literatura, medicina, direito e arte. Desde os anos 1990, muitas começaram a testar os limites, usando lenços mais leves, maquiagens discretas, roupas coloridas. Em 2017, surgiram as "Jovens da Revolução", jovens que tiraram o véu em público e postaram nas redes. Essa rebeldia quotidiana abriu caminho para movimentos maiores.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Parentalidade frágil


Vamos abordar a questão que começa agora a ser mais falada em certos fóruns de discussão sociológicos - a fragilidade da parentalidade contemporânea e a fraqueza de carácter que dela decorre ou com ela se cruza. 
Três problemas candentes: 1) O colapso da autoridade do professor; 2) O fetiche contemporâneo da autoestima infantil; 3) O papel disruptivo do smartphone no ambiente escolar. A autoridade do professor desautorizada por pais ansiosos num sistema permissivo. 

Nas últimas décadas temos assistido à erosão da figura do Professor enquanto autoridade legítima. Passou a ser um sucedâneo de uma espécie de “prestador de serviços” feito para agradar ao aluno e aos pais do aluno. A consequência direta disso foi a formatação de alunos sentindo o direito de contestar tudo, até mesmo a disciplina e os critérios de avaliação. E a intervenção dos pais na escola passou a ser agressiva para com o Professor. As Direções Escolares sentiram-se politicamente pressionadas ao ponto de muitas vezes terem sacrificado o professor para evitar mais conflitos. Resultado: o Professor perdeu o estatuto simbólico que detinha, o de ensinar a juventude a saírem da sua ignorância e adquirirem conhecimentos para a vida futura. Mas em vez disso produziram-se pessoas com grande sensibilidade emocional, mas com baixa robustez moral. E essa sensibilidade tem-se transformado em narcisismo ressentido.

O que se entende por "parentalidade frágil"? A parentalidade frágil refere-se a um estilo de educação dos filhos marcado pela insegurança, permissividade excessiva, falta de autoridade ou de consistência emocional por parte dos pais. Está associada a pais demasiado protetores, que tentam evitar qualquer sofrimento aos filhos, mesmo o necessário para um crescimento empoderado. Pais emocionalmente ausentes ou distraídos com a atual dependência digital. Pais que delegam a educação aos professores na escola, ou ao Estado, e depois quando algo corre mal exigem satisfações. Pais que não impõem limites claros, com medo de “traumatizar” a criança. Ou medo de serem vistos como autoritários. É uma parentalidade muitas vezes reativa, não proativa, que responde aos impulsos dos filhos, não os orientando com firmeza.

Então, como é que esta fragilidade parental contribui para a fraqueza de carácter? Uma infância sem limites consistentes, sem frustrações toleráveis, e sem modelos de autoridade respeitável, tende a produzir adultos emocionalmente imaturos, incapazes de esforço continuado, com baixa resiliência e grande egocentrismo emocional. Os efeitos podem incluir incapacidade de lidar com a crítica ou o fracasso. Dificuldade em assumir responsabilidades. Tendência para o narcisismo ou vitimização crónica. Rejeição de normas comuns em nome de uma “autenticidade” mal entendida. A consequência é uma erosão do carácter. Não se trata de rigidez moral na crítica que se lhes faz, é estrutura sólida que é preciso ter para ser firme, ter capacidade de escolha ética, e resistência à pressão do grupo.

Ora, isto está a ser uma dor de cabeça para os governantes ocidentais. Há vários planos onde isto se manifesta. Na Escola: Professores cada vez mais impotentes perante alunos e pais que não respeitam a cadeia hierárquica de autoridade. As escolas tornam-se espaços de gestão comportamental, não de aprendizagem. Na Opinião Publicada e Académica: Cultura de ressentimento e cancelamento que não tolera o contraditório. A liberdade de expressão sofre porque tudo é potencialmente “ofensivo”. No Trabalho: Dificuldade crescente em formar equipas com espírito de sacrifício, sentido de dever e capacidade de trabalhar sob pressão. O hedonismo emocional choca com o realismo das exigências profissionais. Democracia e cidadania: Cidadãos sem carácter forte facilmente manipuláveis nas redes sociais. A fragilidade afetiva cria populismos emocionais. Os cidadãos não querem ouvir verdades difíceis, apenas promessas reconfortantes. O tribalismo digital substituiu o debate cívico.

Quais são as raízes deste fenómeno? Não há uma só causa, mas algumas linhas podem ser apontadas: declínio da autoridade tradicional sem substituto funcional; excesso de foco na autoestima infantil, sem correlação com o mérito real; hedonismo pós-moderno que evita o sofrimento como imperativo ético; pais que fazem questão de dizer que tratam os filhos como "amigos", por trauma do passado de uma infância demasiado rígida; individualismo extremo, em que os deveres, perante o coletivo, são vistos como opressão.

Praticamente esta cultura começou a instalar-se no ocidente a partir de meados de 1960. A educação evitou expor as crianças à frustração, supondo que isso podia ser traumatizante. Mas a neurociência moderna tem mostrado que a capacidade de lidar com a frustração é crucial para o desenvolvimento de um cérebro saudável. O córtex pré-frontal, que é responsável pelo autocontrolo, planeamento e empatia, passa por um processo de maturação que se desenvolve desde o início da adolescência até à sua plenitude numa idade que varia entre os 20 e os 25 anos. A exposição progressiva a limites e frustrações, desde a infância, é essencial para essa maturação. Crianças que não aprendem a tolerar o "não", ou a saber esperar, tendem a desenvolver maior impulsividade, ansiedade e baixa tolerância ao stress.

A dopamina está ligada à motivação e à recompensa. Quando tudo é dado de imediato o sistema dopaminérgico habitua-se a picos fáceis. Isso prejudica a capacidade de projetar objetivos de longo prazo e de perseverar, ou seja, de ter força de carácter ou como se costuma dizer "força de vontade". A chamada "gratificação adiada" está ligada a maior sucesso escolar, e mais tarde maior sucesso profissional. 

Allan Bloom, em "The Closing of the American Mind" (1987), já denunciava que a juventude ocidental não procurava a verdade, mas apenas autenticidade emocional. Alguns departamentos das ditas humanidades das universidades, sobretudo americanas e francesas, tornaram-se coniventes. Transmitindo o sentido da tolerância, mas não das virtudes exigentes (coragem, temperança, justiça). Daí ter dado origem a uma geração "aberta" no discurso, mas fechada em relação ao transcendente pragmatismo do esforço intelectual para a vida real nua e crua.

Christopher Lasch, em "The Culture of Narcissism" (1979) -- viu antes do tempo o que hoje chamamos de “adultos frágeis”. Centrados em si mesmos, em busca constante de validação externa, sem estruturas internas sólidas para lidar com o fracasso e com a crítica. Assim, a parentalidade tornou-se emocionalmente difusa e funcionalmente ineficaz para a estabilidade familiar. 

Hannah Arendt, em "Entre o Passado e o Futuro" e "A Crise na Educação" -- argumenta que educar não é libertar a criança do sacrifício, mas assumir que o sacrifício é uma espécie de eufemismo do sentido de responsabilidade por deixar aos descendentes um mundo melhor do que aquele que foi recebido: “O facto de as crianças serem novas no mundo é razão suficiente para que precisem de adultos dispostos a introduzi-las no mundo tal como ele é, e não tal como gostariam que fosse.” Segundo Arendt, educar é conservar e transmitir uma herança que a criança, por si, não pode criar nem julgar. A recusa em exercer autoridade sobre os filhos é uma fuga à responsabilidade, não uma prova de respeito. A crise educativa do Ocidente é uma crise da coragem adulta, em que estão a ser formados cidadãos frágeis, consumidores compulsivos de dopamina, tanto ao nível das drogas químicas como da droga digital. Isso minou a cultura democrática, fortaleceu a lógica tribal das trincheiras ideológicas. 

segunda-feira, 21 de julho de 2025

A deriva populista e as relações de causa e efeito - passado ~> presente


A narrativa - que imputa aos protagonistas políticos atuais todo o mal que está a acontecer agora nas nossas cidades, com a ascensão da extrema direita - é falsa. Como se não houvesse uma continuidade entre passado e presente. E esse passado foi um longo período em que todo o ocidente andou anestesiado com as narrativas populistas de esquerda eufemisticamente apelidado de esplendor wokista. Portanto, a esquerda, que agora está em perda a favor da extrema-direita, comporta-se como se fosse agnóstica em relação aos mecanismos de causa e efeito. Como se cada momento partisse do zero, e a lástima ética que estamos a viver não tivesse nada a ver com as incompetências políticas que a precederam. 

A tendência de alguns setores progressistas é para interpretarem a ascensão da extrema-direita, e do autoritarismo contemporâneo, como um “fenómeno ex nihilo”. Como se estivesse desligado das dinâmicas políticas e culturais que o antecederam, dominadas por uma hegemonia cultural e política progressista, muitas vezes expressa por meio de narrativas populistas de esquerda, e especialmente marcada pela ascensão do "wokismo". O avanço da extrema-direita e do autoritarismo é mais uma reação do que uma irrupção espontânea. Reação a uma hegemonia anterior, frequentemente marcada por discursos que muitos sentiram como moralistas, condescendentes, ou descolados da realidade material de grande parte da população. O campo progressista -- ao dominar o discurso cultural das duas primeiras décadas deste novo milénio, especialmente nas universidades, nos média não apenas do entretenimento das audiências, mas também da opinião informada -- gerou um ressentimento em certos segmentos da sociedade. Ao assumirem uma postura muitas vezes intransigente em temas identitários e culturais, acabaram afastando setores populares, que antes eram a sua base, e abriram espaço para que discursos mais autoritários ou nacionalistas aparecessem.

Ignorar essa relação de causa e efeito é uma forma de negar responsabilidade histórica. E essa negação pode, paradoxalmente, fortalecer ainda mais a narrativa da direita radical, que se apresenta como resposta legítima a décadas de imposições culturais e políticas por elites progressistas da moral certa. Claro que isso não exime a extrema-direita de suas próprias patologias e perigos. Mas ajuda a compreender o fenómeno de forma mais completa, recusando a ideia simplista de que estamos diante de um “mal absoluto” que surgiu do nada, ou que a história começou com Donald Trump, Giorgia Meloni ou André Ventura.

A História Não Começou Ontem: a extrema-direita é uma reação/resposta à hegemonia cultural da esquerda. Durante décadas, assistimos à consolidação de uma hegemonia cultural e ideológica de esquerda, especialmente nas universidades, nos meios de comunicação, na indústria do entretenimento e até nos tribunais da moral pública de uma certa bolha mediática. Esse domínio consolidou-se através de um discurso que, embora partisse de motivações justas, como a defesa das minorias, o combate ao racismo, o feminismo ou a inclusão LGBTQIA+, degenerou frequentemente num moralismo punitivo, numa ortodoxia ideológica, e num afastamento progressivo da realidade vivida pela maioria das pessoas. Foi o que se veio a chamar de “wokismo”. Não foi apenas uma luta contra injustiças históricas; foi também, muitas vezes, uma tentativa de impor uma nova gramática moral sem debate, rotulando discordantes como atrasados, opressores, ou inimigos da humanidade. Não se tratava mais de convencer, mas de corrigir, silenciar, envergonhar. A linguagem do ressentimento começou, paradoxalmente, a brotar não entre os oprimidos, mas entre os acusados. Mas o alvo acabou por se deslocar para as camadas populares mais desfavorecidas, tradicionalmente uma base significativa da esquerda, agora convertidas em alvos de desprezo cultural. Por conseguinte, trata-se de uma narrativa falsamente humanista, porque hipócrita e deslocada da realidade da vida nua e crua dessas pessoas.

É neste contexto que a extrema-direita avança. Não como um projeto coerente, mas como reação instintiva, muitas vezes caótica, ao que foi percebido como uma imposição moralista e autoritária da esquerda cultural elitista. Quando as classes médias e populares se sentem humilhadas, não apenas exploradas, o terreno fica lavrado para a sementeira de demagogos que prometem restaurar a "ordem natural", resgatar valores tradicionais e atacar as "elites progressistas". Ignorar essa cadeia de causa e efeito é um erro analítico e uma falta de honestidade política. A história não começou com Trump, Le Pen, Meloni ou Ventura. Eles são o sintoma, não a origem. Se a esquerda não for capaz de refletir criticamente sobre os excessos da sua hegemonia cultural do passado, continuará presa a uma narrativa autoindulgente e incompleta, incapaz de compreender o fenómeno. E sem essa compreensão não será capaz de enfrentar estes anos que se nos apresentam pela frente de um mundo muito perigoso, mas do qual a esquerda também não se pode eximir da quota de responsabilidades dos fatores que estiveram na base do "como se chegou aqui".

domingo, 20 de julho de 2025

A Califórnia progressista


O que se passa na Califórnia mostra que as boas intenções não bastam. A teoria desfasada da realidade gera o caos. A compaixão em abstrato paralisa a justiça. E a moral progressista, quando convertida em estrutura de poder em nome de minorias, acaba por transferir para as pessoas comuns, a dita classe média dos serviços públicos e comerciais, o sentimento de excluídos. É neste contexto que a extrema-direita ganha terreno pelo fracasso da esquerda. Quando a ordem desaparece, porque voltam a chegar às nossas vizinhanças os bairros de lata, o que se pede é que a autoridade atue. Quando a realidade contradiz a retórica do comentário na bolha televisiva, o povo troca os que só dão o verbo pelos que dão o corpo ao manifesto. Há um limite para a utopia quando esta ignora a realidade social. Este ciclo ascensor, que historicamente se repete, não se trava com as habituais denúncias histéricas. Para começar, e se ainda for a tempo de travar, as esquerdas têm de fazer uma autocrítica madura. E identificar quais foram os erros que trouxeram as maiores dificuldades que se vivem hoje.



Na Califórnia, um laboratório de progressismo durante décadas, as cidades de São Francisco e Los Angeles foram símbolos desse progressismo. Leis protetoras para todas as minorias imagináveis, descriminalização de drogas leves, sanções contra a polícia, políticas de habitação tolerantes (ou negligentes), e acolhimento institucional a movimentos: Defund the Police; wokismo universitário e corporativo.

São Francisco, em particular, foi o santuário daquilo que Donald Trump abomina: o liberalismo cultural radical, a permissividade moral, a legalização de comportamentos marginais, e a celebração da diversidade em moldes ideológicos. No entanto, esse modelo está a colapsar sob o peso das suas próprias contradições. Cenas de crise urbana extrema, com sem abrigo nas ruas, explosão da criminalidade, saques em plena luz do dia, uso aberto de drogas pesadas e êxodo de empresas e cidadãos estão a transformar antigos bastiões democratas em palcos de desencanto popular. Los Angeles, com um perfil semelhante, começa a viver um movimento parecido. O eleitorado está a exigir "ordem", "decência", "autoridade". São palavras que há poucos anos soariam como tabu político nesses ambientes. O que vemos, na prática, é uma guinada para a direita, ainda que parcial, mesmo em zonas historicamente dominadas pela esquerda progressista.

Estes dois exemplos mostram quão paradoxais são as ideologias. O paradoxo aqui é revelador: a Califórnia encarna a utopia progressista que, ao tornar-se realidade institucional, ultrapassou limites sociais, económicos e humanos. A criminalidade, a desordem urbana e a insegurança não afetam os milionários do Vale do Silício, mas as camadas médias e populares. Justamente aquelas que começam a virar as costas ao modelo político dominante. E aparentemente a classe média baixa dá uma guinada conservadora, não por a direita conservadora ser virtuosa, mas por parecer realista. As pessoas não votam tanto por ideias abstratas, mas pela percepção concreta de ordem, segurança e sobrevivência. Estamos, de facto, a viver hoje, na América e na Europa, um momento de viragem política marcado pela ascensão da extrema-direita, do autoritarismo e do discurso reacionário. Em muitos círculos progressistas, este fenómeno é tratado como um mal súbito - uma irrupção de irracionalidade ou fanatismo que teria irrompido, sem mais nem menos, diretamente da cabeça dos populistas e demagogos de direita. Mas essa leitura, ainda que conveniente, é falsa porque ignora que toda a reação é, por definição, resposta a algo. E o que estamos a ver é uma reação à hegemonia cultural e política da esquerda que marcou as últimas décadas.

Durante muito tempo, o campo progressista - sobretudo nos Estados Unidos - impôs-se como a voz moral dominante. Em universidades, tribunais, redações e estúdios de cinema, consolidou-se uma ortodoxia que promovia inclusão, diversidade e reparações históricas. A luta por justiça social transformou-se em doutrina cultural, e esta, por sua vez, foi aplicada com crescente rigidez: cancelar, silenciar, rotular passaram a ser formas legítimas de impor novos valores. Assim, a guinada à direita - nos EUA como na Europa - não pode ser compreendida sem entender os fracassos percebidos (ou reais) de políticas progressistas quando colocadas à prova. Los Angeles e São Francisco são hoje, de certo modo, exemplos vivos do esgotamento de uma hegemonia cultural que, por muito tempo, se considerou moralmente inatacável.

O que começou como combate a injustiças históricas acabou por degenerar num moralismo autoritário e excludente. O discurso progressista - em vez de conquistar os moderados, os remediados, os "vive e deixa viver" - passou a demonizar quem fosse conservador de direita. Como se o conservador de direita não tivesse a mesma legitimidade, e o mesmo direito de um lugar na cidade como o progressista de esquerda. E assim se promoveu o ressentimento a apregoar as virtudes morais de esquerda. Em nome da justiça social, instalou-se uma nova censura; em nome da diversidade, impôs-se uma uniformidade ideológica. Nenhum lugar simboliza melhor este processo do que a Califórnia — e, em particular, as cidades de São Francisco e Los Angeles.

À medida que esse modelo se cristalizou, as suas contradições vieram à tona. A crise dos sem abrigo, a proliferação de acampamentos urbanos, o aumento da criminalidade, a tolerância com pequenos delitos que se tornaram rotina, e um sentimento generalizado de insegurança e abandono corroeram a legitimidade do projeto progressista. As consequências são visíveis: empresas estão a abandonar São Francisco, lojas fecham por medo de saques, e mesmo os residentes liberais começam a exigir mais policiamento, medidas de repressão, leis de ordem pública. Em Los Angeles, as eleições mais recentes demonstram esse movimento de cansaço: o eleitorado, embora ainda maioritariamente democrata, elegeu autoridades com discurso mais firme contra o crime, e crescem os apelos por políticas "realistas", antes demonizadas como "de direita".

sábado, 19 de julho de 2025

Transições de fase na sociedade. A ascensão do Chega


Transições de fase
-- é um conceito da Física. Uma transição de fase ocorre quando um sistema passa de um estado para outro. É o caso da água: quando passa do estado líquido para gasoso; do estado líquido para sólido; ou sólido para líquido; e assim sucessivamente. Tem a ver com alterações qualitativas no comportamento coletivo dos seus constituintes. Pomos água a ferver, e há um momento em que vemos o vapor de água surgir e a seguir o líquido borbulhar. É a 
transição de fase líquida para gasosa. O mesmo acontece com a magnetização de materiais. Acima de certa temperatura (ponto de Curie), os átomos deixam de estar alinhados. É a supercondutividade ou superfluidez, onde surgem propriedades emergentes com quebra espontânea de simetria. Esses comportamentos coletivos são muitas vezes descritos por modelos estatísticos. É o caso do Modelo de Ising.

Como é que isto se aplica à Sociedade? Os modelos físicos estatísticos hoje também são usados para simular e compreender fenómenos sociais. Aplicam-se sobretudo ao estudo dos comportamentos coletivos: revoltas; modas; bolhas económicas; polarização em política. Alguns conceitos chave: agentes sociais são o equivalente das partículas. Os agentes interatuam entre si, tal como as forças locais, seja como amigos, grupos tribais, etc. E então os Estados podem passar de umas fases para outras: umas vezes dá-se por consenso; outras vezes dá-se por conflito.

Tipifica as transições abruptas: uma pequena mudança nas condições legais, ou um escândalo político, pode provocar uma mudança súbita e drástica no comportamento coletivo. O modelo de Schelling, precursor neste campo, mostra como a segregação urbana pode emergir mesmo que cada agente só tenha uma moderada relação com a vizinhança. O sistema evolui para uma fase de segregação sem que seja essa a intenção de cada pessoa a título individual.

O Prémio Nobel da Física de 2016 foi atribuído a David Thouless, Duncan Haldane e Michael Kosterlitz. Eles receberam o prémio pelas suas descobertas sobre transições de fase topológicas e fases exóticas da matéria, como: Supercondutores de filmes finos (2D), Isoladores topológicos, Estados quânticos de Hall fracionário. O Nobel de 2016 não foi atribuído pela aplicação à sociologia, mas sim por descobertas fundamentais na física da matéria condensada com técnicas matemáticas que depois inspiraram outras áreas, incluindo sociologia, ciência das redes, economia, e inteligência artificial.

A Primavera Árabe foi analisada como uma transição de fase social -- uma acumulação de tensão até um ponto crítico. O mesmo acontece com as bolhas financeiras, que são tratadas como transições de fase com flutuações crescentes perto do "ponto crítico". A grande contribuição dessas ideias foi a possibilidade de hoje se poderem modelar os comportamentos coletivos: como é o caso dos adeptos de futebol nos estádios. Volto à frase muito repetida: o todo não é a simples soma das partes. Assim como na Física, são as tais propriedades emergentes das coisas complexas. Os modelos físicos da Ciência da Complexidade tem a ver com o reconhecimento de padrões, limiares críticos, e os riscos do colapso sistémico.

Vamos, então, aplicar o modelo de transição de fase social à ascensão do Chega em Portugal. Recorremos à lógica do modelo de Ising adaptado ao comportamento político. É para tentar compreender a ascensão rápida, aparentemente súbita, do Chega. É assim uma mudança de fase política, com base num modelo físico simples. Fazendo uma analogia básica do modelo, em que ao elemento na Física (Ising) – corresponde a interpretação sociopolítica, temos: 1) Spin Si=±1S_i = \pm 1 »» opinião do indivíduo; 2) Interação JJ »» Pressão social: influência dos pares (família, amigos, media local); 3) Temperatura TT »» Grau de tolerância social / pluralismo / liberdade individual; 4) Campo externo HH »» Propaganda mediática ou indignação coletiva (corrupção, insegurança).

Portanto, entre 2000 e 2010 havia uma alta temperatura social – o discurso dominante era o do centro moderado. Apesar da crise de 2008–2012, o sistema partidário resistia relativamente bem; os indivíduos tinham diversidade de opiniões, mas sem rutura macroscópica; Não havia ainda campo externo forte a favor do Chega (i.e., sem "H" visível). Portanto, o sistema encontrava-se em fase desordenada estável: pluralismo com predominância moderada. Mas entre 2015 – 2019 há uma acumulação de tensão social com vários fatores acumulando "energia" no sistema: Escândalos de corrupção (BES, PT, Sócrates); Crise da habitação e sensação de desigualdade; Percepção de impunidade das elites; Questões identitárias (imigração, segurança, “ideologia de género”). Tudo isso começa a baixar a temperatura social TT → menor tolerância à diferença → mais polarização. O Sistema aproxima-se do ponto crítico. Pequenas perturbações passam a ter grande efeito coletivo.

A entrada do Chega na Assembleia (2019) foi um evento germinal, que funcionou como "núcleo de condensação"; O discurso de Ventura alinhou-se com frustrações latentes → campo HH externo forte; A presença mediática ampliou o efeito magnético: "vizinho vota Chega → eu também posso votar"; Baixo T + campo H elevado + J alto (pressão de grupo) leva à formação de uma maioria emergente nos subgrupos (zonas suburbanas, operariado, classes médias ressentidas). Transição de fase: de pluralismo disperso para um bloco organizado de oposição radical. Agora o Chega já não é marginal: tornou-se uma fase social cristalizada, com zonas de alta concentração (Alentejo, zonas rurais, periferias urbanas). A sua força depende agora de dois fatores: Manutenção de H (indignação, discurso populista); Baixo T (sentimento de medo, insegurança, falta de alternativas). Se T aumentar (confiança institucional, bons resultados económicos, justiça eficaz), o sistema pode reverter. Mas se H crescer (novo escândalo, crime mediático), o sistema pode alastrar, que é o domínio da fase “Chega”.

Assim, a ascensão do Chega pode ser vista como uma transição de fase sociopolítica, em que a combinação de frustração acumulada, percepção de desordem e falta de mediação eficaz criou as condições para um salto súbito de comportamento coletivo. O modelo ajuda a perceber que não há necessidade de maioria de convencidos, basta uma massa crítica organizada e uma rede de contágio emocional. A reversão não será gradual. O que tem de acontecer é uma nova transição de fase. Exigirá mudança nas condições globais do sistema, não só no discurso.

Recapitulando -- Cada pessoa tende a alinhar-se com os vizinhos (efeito social) mas pode também resistir por convicção individual (ruído térmico). Cada agente observa os seus vizinhos e atualiza a sua opinião conforme a maioria, com probabilidade dependente de TT (ruído social): Se o vizinho médio for favorável, maior chance de mudar para +1+1; Mas quanto maior o “T” (temperatura social), mais livre é o indivíduo para divergir em sociedades pluralistas. Se T→0T \to 0, todos copiam o vizinho → conformismo total. Se T→∞T \to \infty, cada um faz o que quer → caos social / desordem.

Com o tempo, duas possíveis fases sociais: Fase ordenada: a maioria pensa igual → consenso ou hegemonia cultural. Condições ideais para o apoio das massas à revolução; ou o apoio a um líder carismático (um caudilho, um ditador). Fase desordenada: opiniões divididas, sem padrão → pluralismo, polarização, o que em democracias maduras estabelece a incerteza eleitoralO sistema pode mudar de fase se T (ruído social) ou H (influência externa) forem ajustados além de certo ponto crítico. Neste cenário pequenas mudanças levam a mudanças macroscópicas (é o exemplo da água que, a 100 °C, subitamente vira vapor.

Numa população com opiniões equilibradas, mas com muita pressão social (baixo T), pode surgir consenso forçado (fase ordenada). Mas se se introduzir um canal mediático pluralista ou liberdade de expressão (subida de T), pode surgir diversidade. Um pequeno escândalo político (mudança de H) pode reverter rapidamente a opinião de uma maioria → transição súbitaEste tipo de modelo ajuda-nos a perceber como sociedades complexas podem ser instáveis mesmo quando aparentemente estáveis. Tal como nos materiais físicos, há sempre uma tensão entre ordem e liberdade. É o que se está a passar agora nos EUA com Donald Trump e o Wall Street Journal - ao divulgar uma carta alegadamente enviada por Donald Trump a Jeffrey Epstein, um gestor de fortunas norte-americano, e que foi acusado de abuso sexual, acabando por morrer na prisão ainda em circunstâncias mal esclarecidas.


quarta-feira, 16 de julho de 2025

BRICS - Sul Global - e as críticas às democracias ocidentais


Entre os BRICS, a maioria coincidente com o denominado "Sul global". E quantos desses países são democracias efetivas? Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul - O grupo foi recentemente ampliado (2024–2025) para incluir mais países (BRICS+), mas focando na formação original -- e considerando a coincidência com o chamado Sul Global -- a sua composição em termos de democracias efetivas deixa muito a desejar segundo a Avaliação da Qualidade Democrática dos BRICS Originais (com base em índices internacionais como o EIU Democracy Index de 2024).

O Brasil é uma democracia - mas uma democracia imperfeita (flawed democracy) - Eleições livres e regulares, Judiciário independente, imprensa relativamente livre. Problemas com polarização, corrupção e fragilidades institucionais. Considerado, portanto, uma democracia efetiva, embora imperfeita. Ao passo que o regime na Rússia é autoritário. Eleições sem competição real, repressão da oposição, e a comunicação social é estatal. Não é uma democracia efetiva. E a Índia é uma democracia imperfeita (com tendências iliberais crescentes). Apesar de manter eleições regulares, há críticas crescentes à liberdade de imprensa, perseguição a minorias e enfraquecimento de instituições. Tecnicamente ainda uma democracia, mas com sinais de erosão democrática. África do Sul - Democracia imperfeita, mas funcional. Eleições livres, sistema multipartidário, Judiciário independente. Democracia efetiva, com problemas estruturais (corrupção, desigualdade). Mas a China não oferece dúvidas. É um regime autoritário de partido único. Sem eleições livres, controlo total dos média, repressão à dissidência. Não é uma democracia. Conclusão: Entre os 5 países fundadores dos BRICS, apenas dois são democracias efetivas, ainda que imperfeitas.

Vamos então analisar os países recentemente incorporados ao grupo BRICS+ (2024–2025), conforme o convite oficial que ampliou o grupo. Os países convidados e/ou aceites são: Argentina (convidada, mas recusou adesão sob Milei); Egito; Etiópia; Irão; Arábia Saudita; Emirados Árabes Unidos. Ora, o que tem ganhado cada vez mais eco em círculos intelectuais académicos de esquerda? É uma retórica, que domina as academias progressistas, e que trata de forma assimétrica quem não respeita valores universais como democracia, direitos humanos, liberdade de expressão e igualdade de género. Quando regimes autoritários ou misóginos são ocidentais ou "brancos", o discurso é feroz, militante e inflexível. Quando esses regimes são não ocidentais, há uma tendência a relativizar os abusos, apelando a argumentos culturais, históricos ou anticoloniais. Críticas duríssimas a símbolos ocidentais de opressão patriarcal, mas silêncio ensurdecedor sobre o casamento forçado de meninas, lapidação de mulheres ou leis anti-LGBTQ+ em países como Irão ou Arábia Saudita - agora membros dos BRICS+.

Muitos ativistas contemporâneos - especialmente em setores mais ideológicos das ciências sociais - parecem operar sob uma régua moral baseada em identidade: o que é feito por "opressores históricos" (brancos, europeus, cristãos) é intrinsecamente mau; o que é feito por "oprimidos históricos" é relativizado ou ignorado. E é assim quem reivindica para si o monopólio da indignação seletiva. Se um homem branco critica costumes autoritários ou misóginos de culturas não ocidentais, pode ser chamado de racista, islamofóbico ou colonialista cultural - mesmo que esteja defendendo direitos humanos universais. O feminismo radical ocidental, que tanto se esforça por combater o machismo em suas sociedades, muitas vezes ignora ou minimiza o sofrimento de milhões de mulheres em culturas onde a desigualdade de género é institucionalizada. É um feminismo seletivo. Pouca ou nenhuma denúncia efetiva: à tutela masculina na Arábia Saudita; à criminalização do adultério feminino em muitos países muçulmanos; à mutilação genital feminina na África subsaariana e em algumas comunidades muçulmanas da Ásia; à prisão ou execução de mulheres por não cobrirem o cabelo (como no Irão).

Onde chegamos? Chegamos, talvez, a um ponto onde o discurso crítico ocidental -- muitas vezes legítimo no passado -- se perdeu num labirinto de contradições morais e dogmatismos ideológicos. A crítica ao “homem branco” tornou-se fetiche ideológico, e não análise estrutural. A luta por justiça social deixou de ser universal e tornou-se identitária e tribal. Perdeu-se a capacidade de autocrítica e de reconhecer que nem tudo o que vem do Ocidente é opressor, nem tudo o que vem do Sul Global é legítimo só porque é "não branco". Se o "Sul Global" é uma categoria geopolítica útil, mas não é acompanhada por um compromisso genuíno com direitos humanos universais, e democracia real - é eticamente vazio. Se o BRICS+ se transforma em um clube de autocracias apenas por antagonismo ao Ocidente, ele não representa nenhum progresso civilizacional - apenas uma inversão de hegemonias, com os mesmos vícios.

Nas últimas décadas o anticolonialismo académico e militante deixou de ser um projeto construtivo e passou a ser uma retórica antiocidental identitária, muitas vezes ressentida e marcada por binarismos simplistas: "Branco = opressor"; "Não branco = vítima eterna". Essa lógica anula a responsabilidade histórica dos próprios países “descolonizados” por seus fracassos democráticos ou sociais. Torna impossível criticar ditaduras ou opressões internas ao Sul Global, sob o pretexto de “respeitar a cultura” ou “evitar imperialismo moral”. Sob o manto do anticolonialismo contemporâneo, aceitam-se ou relativizam-se práticas que ferem princípios universais de dignidade humana. Criticar a opressão das mulheres sob leis da sharia em alguns países pode ser visto como "islamofobia", não como defesa de direitos humanos. Essa inversão é moralmente grave. A cultura não pode ser escudo para a barbárie.

É assim lamentável que haja uma passividade indulgente com regimes brutais, desde que estes sejam “antiocidentais”. E o abandono do universalismo é mais um sintoma do declínio da autoridade moral das academias ocidentais que trabalham em "humanidades", uma maneira de designar aquelas disciplinas do secundário do meu tempo a que chamávamos de Letras, o contraponto das outras disciplinas a que chamávamos de Ciências. As universidades ocidentais, herdeiras do Iluminismo e do humanismo europeu, já foram centros de pensamento racional, crítico e ético, mesmo com todas as contradições históricas. Porém, hoje, muitos departamentos de "humanidades" adotaram teorias identitárias radicais, onde o critério de verdade e justiça não é mais universal, mas vinculado à origem étnica, género ou "lugar de fala".

O “branco europeu”, por exemplo, é desqualificado a priori para falar sobre temas como África, Islão, racismo, mesmo que o faça com base em dados, empatia e compromisso ético. Essa lógica destrói o diálogo plural. Fere a ideia de humanidade comum. E sacrifica a razão crítica em nome da ideologia tribal. A academia ocidental, com medo de ofender, institucionalizou a autocensura. É o que alguns apelidam de tirania do politicamente correto. Professores evitam temas sensíveis. Alunos são incentivados a se sentirem “violados” por ideias desconfortáveis. Palavras como “civilização ocidental”, “valores universais”, “verdade objetiva” são vistas com suspeita -- como se fossem expressões de dominação colonial. Isso é irónico porque as universidades onde isso ocorre são as mesmas que garantem liberdade de expressão e pensamento crítico, que muitos dos países do BRICS+ nunca tolerariam. Ao relativizar ditaduras e injustiças fora do Ocidente, os intelectuais anticoloniais traem os princípios pelos quais dizem lutar (liberdade, igualdade, justiça). E isso é um preço que se está a pagar caro, alimentando movimentos populistas de direita que exploram essa hipocrisia para desacreditar toda a forma de crítica social. Ou seja, o excesso de dogmatismo à esquerda acaba fortalecendo os extremos à direita. A crítica ao colonialismo histórico é válida, necessária e inescapável. Mas o que se vê hoje, muitas vezes, é um anticolonialismo estéril, marcado por inversões morais e um relativismo perigoso.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

A Casa de Saxe-Coburgo-Gota




A Casa de Saxe-Coburgo-Gota é uma casa real de origem alemã. Os seus membros governaram em várias monarquias europeias durante os séculos XIX/XX = Bélgica, Portugal, Reino Unido, Bulgária.

Ernesto I = Ernesto António Carlos Luís [Coburgo, 2 de janeiro de 1784 - Gota, 29 de janeiro de 1844] --  É o primeiro Duque de Saxe-Coburgo-Gota (como Ernesto I -1826-1844) o último Duque de Saxe-Coburgo-Saalfeld (como Ernesto III -1806-1826. Era o filho mais velho de Francisco - Duque de Saxe-Coburgo-Saalfeld [1750-1806] e Augusta de Reuss-Ebersdorf.

Ernesto I casou com Luísa de Saxe-AltemburgoE tiveram dois filhos: Ernesto II, Duque de Saxe-Coburgo-Gota; Alberto de Saxe Coburgo-Gota. Alberto de Saxe Coburgo-Gota [1819-1861] casou com Vitória do Reino Unido (Rainha Vitória). Tiveram 9 filhos -- entre os quais Alberto Eduardo que viria a ser Eduardo VII, que veio a reinar de 1901 a 1910.

Francisco - Duque de Saxe-Coburgo-Saalfeld [1750-1806] foi o grande progenitor de 9 filhos, entre os quais: Leopoldo I - Rei dos Belgas [1790–1865]; Vitória - mãe da Rainha Vitória do Reino Unido; Fernando - pai de Fernando II, o segundo marido da rainha D. Maria II de Portugal e Príncipe Consorte de Portugal de 1836 a 1837, altura em que se tornou Rei de Portugal e Algarves.



Na Bélgica - Leopoldo I foi o Primeiro Rei dos Belgas entre 1831 e 1865. Sucedeu-lhe Leopoldo II entre 1865 e 1909, tendo sido o criador do Estado Livre do Congo. Na Rússia Alexandra Feodorovna, neta de Vitória, casou com Nicolau II. Em Espanha, Vitória Eugénia, também neta de Vitória, casou com Afonso XIII. Na Bulgária, o rei Fernando, era neto de Fernando de Portugal. E no México, Carlota - filha de Leopoldo I e casada com Maximiliano de Habsburgo, foi imperatriz consorte.

Continuando a análise deste entrelaçamento de casamento entre as casas reais, verifica-se que Leopoldo I era tio da Rainha Vitória. E casado com a princesa Carlota de Orleães (filha de Luís Filipe de França). Pai de Leopoldo II (explorador brutal do Congo) e de Carlota, imperatriz do México (casada com Maximiliano de Habsburgo). Fernando de Portugal, que era primo da Rainha Vitória, casou com a Rainha Maria II de Portugal e tornou-se rei-consorte de Portugal como D. Fernando II. Fundador da Casa de Bragança-Saxe-Coburgo e Gota, que reinou em Portugal até 1910. Pai de D. Pedro V e D. Luís I (avô de D. Carlos e bisavô de D. Manuel II).

Para todos os efeitos a Rainha Vitória era uma espécie de um nó em toda esta rede. Casou com o seu primo príncipe Alberto de Saxe-Coburgo-Gota (filho de Ernesto I, irmão de Leopoldo I). A sua descendência espalhou-se por toda a Europa, sendo chamada de "a avó da Europa". Dos nove filhos:
  • Eduardo VII → Pai de Jorge V do Reino Unido.
  • Alice → Mãe da czarina Alexandra Feodorovna, esposa de Nicolau II da Rússia.
  • Alfredo → Duque de Edimburgo e de Saxe-Coburgo-Gota.
  • Helena → Casada com o príncipe Cristiano de Schleswig-Holstein.
  • Luísa → Casada com o marquês de Lorne, Canadá.
  • Artur → Duque de Connaught, governador-geral do Canadá.
  • Leopoldo → Duque de Albany.
  • Beatriz → Mãe de Vitória Eugénia, rainha de Espanha (casada com Afonso XIII).
Daqui se podem fazer várias conexões geográficas:
  • Lisboa: Com D. Fernando II, pai da linhagem real portuguesa final.
  • Londres: O centro da expansão com Vitória e Alberto.
  • Bruxelas: Leopoldo I e depois Leopoldo II, influenciando o colonialismo.
  • Madrid: Com Vitória Eugénia, esposa de Afonso XIII (e neta de Vitória).
  • Berlim: Vários casamentos entre Coburgos e Hohenzollern.
  • São Petersburgo: Alexandra Feodorovna, czarina russa, neta de Vitória.
A maior concentração de poder familiar ocorre entre 1830 e 1910, quando a mesma família governa diretamente ou por afinidade as casas reais de Portugal, Bélgica, Reino Unido, Rússia, Bulgária, Espanha e México. Os anos de1917e1918 marcam o colapso de muitos desses impérios: abdicação do czar na Rússia, fim do Império Austro-Húngaro, queda da monarquia em Portugal (1910), e abdicação de Fernando I da Bulgária (1918). Em 1917, Jorge V do Reino Unido, preocupado com a imagem germânica da Casa de Saxe-Coburgo-Gota, muda oficialmente o nome da dinastia para Casa de Windsor.


Há um contraste entre a longevidade da influência britânica e belga - e o encurtamento progressivo dos reinados portugueses até à república (1910). A presença pontual mas significativa na Rússia, Espanha, Bulgária e México. Como os ramos colapsam todos praticamente entre 1910 e 1945, marcam o fim do ciclo da monarquia europeia tradicional que inclui outras casas rivais, como os Habsburgo, Hohenzollern, Romanov ou Orleães. Para entender o peso da Casa de Saxe-Coburgo-Gota, é fundamental contrastá-la com as outras grandes casas reais europeias do século XIX e início do século XX, que formavam uma espécie de concerto dinástico das potências imperiais. Aqui está uma síntese clara das principais casas rivais, suas características e os tronos que ocuparam.

A Casa de Habsburgo-Lorena [Áustria, Hungria, Boémia, partes da Itália, México (temporariamente)] estende-se entre os séculos XIII–XX. É uma das casas mais antigas e dominantes da Europa Desde o Sacro Império Romano-Germânico (até 1806) até ao Império Austro-Húngaro (1867–1918).
O ramo Habsburgo-Lorena formou-se com o casamento de Maria Teresa da Áustria e Francisco de Lorena. Tiveram um papel central na diplomacia europeia e foram rivais tanto dos Bourbon como dos Hohenzollern. Figuras centrais: Francisco José I (1848–1916): imperador austro-húngaro por quase 70 anos. Maximiliano do México: irmão de Francisco José, casado com Carlota (de Saxe-Coburgo).

A Casa de Hohenzollern [Prússia, Alemanha (Império Alemão)] -- Séculos XV–XX. Surgida como eleitores da Brandemburgo, tornaram-se reis da Prússia e, depois, imperadores da Alemanha.
Protagonistas da unificação alemã sob Bismarck e da rivalidade com os Habsburgos. Militarismo, nacionalismo e protestantismo foram marcas identitárias. Figuras centrais: Guilherme I (imperador de 1871 a 1888); Guilherme II (último imperador alemão, 1888–1918), neto da rainha Vitória.

A Casa de Romanov [Rússia] 1613–1917 -- Reinaram desde a saída dos Rurik até à Revolução Russa.
Promoveram um império vastíssimo e centralizado. Casaram-se com princesas de origem germânica, como a neta de Vitória (Alexandra). Figuras centrais: Alexandre II (libertador dos servos); Nicolau II, o último czar, executado com toda a sua família em 1918.

A Casa de Bourbon [França, Espanha, Nápoles-Sicília, Parma] Séculos XVI–XX -- Um dos ramos dos Capetos, esteve no trono de França até a Revolução. Em Espanha, voltou ao poder após a queda de Napoleão e continua até hoje. Em Nápoles e Parma, o ramo secundário Bourbon / Duas Sicílias perdeu espaço com a unificação italiana. Figuras centrais: Luís XVI (executado em 1793); Carlos IV, Fernando VII de Espanha; Afonso XIII (espanhol, casado com Vitória Eugénia).

A Casa de Orleães [França (Monarquia de Julho)] 1830–1848 -- Ramo liberal dos Bourbon que reinou com Luís Filipe I. Expulsos pela revolução de 1848. Estreitamente ligados à casa de Saxe-Coburgo pela aliança de Carlota com Leopoldo I da Bélgica.

A Casa de Savóia [Sardenha, depois Itália unificada] Até 1946. Foram reis do Piemonte / Sardenha e lideraram a unificação italiana. Tornaram-se reis de Itália em 1861. Figuras centrais: Vítor Emanuel II (primeiro rei da Itália unificada). Umberto I e Vítor Emanuel III.

domingo, 13 de julho de 2025

A Ucrânia e os amigos da Rússia


A crítica a certos setores da esquerda radical -- incluindo o Partido Comunista Português (PCP) e outros partidos semelhantes -- pela sua postura em relação à guerra na Ucrânia, é avassaladora. Numa tentativa de desculpar a invasão da Ucrânia pela Rússia, respaldada por argumentos que Putin engendrou despudoradamente, insistem no slogan hipócrita de "serem pela paz", e não deixando de acrescentar aquela caracterização que o Kremlin usa à exaustão: de limpar a Ucrânia de um regime "nazi".

Muitos militantes do PCP ainda operam com uma grelha conceptual herdada da Guerra Fria. Nessa lógica, a Rússia (herdeira da URSS, mesmo que apenas simbolicamente) continua a ser vista como um baluarte anti-imperialista contra os Estados Unidos e a NATO. Assim, qualquer país em conflito com o "Ocidente" é automaticamente "progressista" ou "resistente", e os adversários desse país são imediatamente associados a um suposto "fascismo". A acusação de “nazismo” contra a Ucrânia deriva, em parte, da existência real de grupos de extrema-direita no país, como o Batalhão Azov. No entanto, tratar um governo democraticamente eleito, com um presidente judeu (Volodymyr Zelensky), como um “regime nazi” é, no mínimo, uma distorção grosseira. Essa leitura ignora por completo a pluralidade política e a resistência legítima do povo ucraniano à agressão russa.

Esta postura é o que podíamos classificar de má-fé com traços de teoria da conspiração. Aqui entra a paranoia conspirativa. Segundo esta visão, os media estão todos manipulados pelo “imperialismo ocidental”, a Ucrânia é apenas um peão da NATO, e a Rússia está a combater uma guerra “defensiva”. A desinformação russa é muitas vezes acolhida com pouca crítica. O que pode revelar má-fé deliberada, ou pelo menos uma vontade ideológica de aderir a narrativas que justifiquem a sua posição prévia. Neste caso, o PCP parece muitas vezes mais preocupado em manter a coerência com a sua visão tradicional do mundo do que em confrontar os factos. É uma espécie de realpolitik invertida: se a realidade não bate certo com o dogma, pior para a realidade.

Esse tipo de discurso, além de politicamente irresponsável, acaba por marginalizar ainda mais o PCP no contexto português e europeu. Ele descredibiliza-se de uma forma intelectualmente to absurda que não tem outra explicação que desonestidade intelectual, ao alinhar-se, de forma quase acrítica, com um regime autoritário como o de Putin, que reprime opositores, manipula eleições e usa o exército para anexar território estrangeiro.

O PCP tem afirmado repetidamente que a guerra não é apenas uma questão de invasão russa, mas resulta de um contexto mais amplo. Culpa os EUA, a NATO e a UE por fomentar tensões através do seu alargamento junto às fronteiras da Rússia. Manipulam os acontecimentos políticos na Ucrânia desde 2014. Ainda num comunicado de fevereiro de 2025, reafirma que “o agravamento da situação é indissociável da … estratégia de tensão e confrontação” e apela a negociar também com a Rússia. O PCP coloca consistentemente a ênfase na paz, desarmamento e diplomacia: Apelo à “urgente desescalada do conflito, à instauração de um cessar-fogo e à abertura de uma via negocial”, com referência aos princípios da Carta das Nações Unidas e da Atos de. O PCP rejeita o envio de armamento pesado ou sanções que alimentem o conflito, acusando esses caminhos de prolongarem a guerra e alimentar o “colossal processo de aumento de despesas militares”. Em fevereiro de 2022, no Parlamento, recusam-se a condenar especificamente a Rússia, argumentando que “este conflito é muito mais profundo” e apontando os EUA como os que estão “verdadeiramente interessados numa nova guerra na Europa”. A 1 de março de 2022, os eurodeputados do PCP votam contra uma resolução que condenava a invasão, justificando que se iria “alimentar a escalada” e reforçar militarização na Europa. O PCP também boicotou a sessão solene com o Presidente Zelensky no parlamento, alegando que representava “um palco para a escalada da guerra” e se recusando a legitimar o “poder xenófobo e belicista” que, segundo o partido, o representaria. Em 2022, o PCP escreveu que houve um “golpe de Estado” em 2014 em Kiev, apoiado pelas potências ocidentais e pelas elites ucranianas, com envolvimento de “forças de extrema-direita, neonazis e xenófobas”. Em março de 2024, o partido condena “atos criminosos… cometidos… pelas forças armadas ucranianas… incluindo por grupos fascistas em Odessa” em 2014, defendendo investigações rigorosas e independentes antes de qualquer julgamento ou acusação.

A posição do PCP revela uma forte aderência a uma interpretação estrutural do conflito (como um choque entre “impérios” e guerrilha ideológica anti-Sistema), em vez de uma análise centrada na violação da soberania nacional da Ucrânia. A insistência em narrativas sobre “grupo neonazi” e “golpe de Estado” reforça perceções externas de distorção e alinhamento com teorias conspirativas ou anti-Ocidente. Esta postura aproxima o PCP de certos segmentos da esquerda radical europeia, e também tem sido alvo de duras críticas por parte de analistas políticos, media internacionais e até associações de refugiados ucranianos em Portugal.

Segundo o último Comunicado do Comité Central (29 de junho de 2025): O PCP continua a denunciar a escalada militar impulsionada pelo imperialismo, com ênfase nos EUA, NATO e UE, apontando para pressões económicas e apoio ao aumento das despesas militares (incluindo a cimeira da NATO em Haia com metas de 5% do PIB). Reforça o apelo pela dissolução da NATO, pela não militarização da UE e por um sistema de segurança coletiva para assegurar paz e justiça na Europa. O PCP rejeita participação ou apoio às políticas belicistas europeias, criticando duramente o alinhamento do governo português com essas estratégias. A associação de refugiados ucranianos (UAPT) tem reagido com preocupação à postura do PCP. O presidente, Maksym Tarkivskyy, expressou desagrado com o apoio do partido à guerra.

Quando o crime tiver tratamento - volta Michel Foucault

Quando o crime tiver tratamento médico -- com a inteligência artificial a atuar como mediadora imparcial nos processos de avaliação de risco e no planeamento de tratamentos -- teremos um mundo melhor.
No modelo foucaultiano não se castiga, trata-se. Não se isola por vingança ou dissuasão, protege-se a sociedade enquanto se tenta reabilitar o indivíduo. As "prisões" seriam mais parecidas com instituições clínicas ou centros de reabilitação neurocomportamental. Seria a forma mais humanista de proteger os outros, não de punir os perigosos, que são doentes. Esta visão compatível com o pensamento de Michel Foucault (que estudou os dispositivos de poder nas prisões) também estou certo que seria subscrito por Peter Singer, o decano dos filósofos da Ética & Bioética. A ética da consideração imparcial de todos os seres conscientes.

Pelos conhecimentos que hoje temos não devemos estar longe de afirmar que em última instância haverá sempre uma razão biológica plausível subjacente a qualquer prática de um crime. E por isso, em vez das prisões haverá um qualquer tratamento como hoje a medicina trata as doenças. A forma mais humanista de proteger os outros cidadãos do perigo. Isto pressupõem uma mudança civilizacional profunda — uma substituição do paradigma penal pelo paradigma médico. E, de facto, os avanços nas neurociências, na genética comportamental e na psicopatologia sugerem cada vez mais que os comportamentos ditos “criminosos” não surgem do nada, nem apenas da escolha racional ou da influência social, mas de um entrelaçado complexo de predisposições biológicas, traumas, falhas cognitivas e desequilíbrios neuroquímicos.

Os dados das investigações neurológicas e genéticas reforçam a ideia de que, em última instância, há fatores biológicos plausíveis que tornam um indivíduo mais propenso a comportamentos socialmente danosos. Esta ideia remete diretamente à lógica medicinal em vez da penal: se a criminalidade é uma expressão de disfunções biológicas, então deve ser tratada como uma patologia, e não como uma falha moral.

Apesar da força da ideia, há entraves políticos e limites científicos. Nem todos os crimes se devem a fatores neurológicos identificáveis. A linha entre “má índole” e “disfunção cerebral” continua difusa. E há questões éticas: Quem decide o que é “tratável”? E se alguém recusa tratamento? Risco de autoritarismo médico: Um regime que trata criminosos como “doentes” pode acabar patologizando a dissidência. Justiça simbólica: A vítima e a sociedade esperam, ainda hoje, alguma forma de compensação moral. A abolição completa da punição exigiria uma transformação cultural profunda.

Seja como for, com os conhecimentos que temos hoje, o crime, cada vez mais, será visto como uma expressão de causas que a biologia (e a medicina comportamental) pode compreender. A lógica retributiva poderá ceder, gradualmente, à lógica terapêutica. Essa transição — embora utópica nis dias de hoje, a acontecer, provavelmente demoraria décadas ou séculos. Mas não deixaria de representar um salto ético da civilização em direção a uma sociedade menos vingativa, mais preventiva, mais científica, e mais humana.

Uma verdadeira revolução antropológica e civilizacional. Não se trata apenas de mudar o modo como tratamos os criminosos, mas de reestruturar o conceito de justiça, responsabilidade, punição e até de liberdade. As implicações políticas seriam abismais. A justiça penal deixaria de ser um pilar do poder de Estado. Não haveria “Ministérios da Justiça” com prisões e tribunais convencionais. No seu lugar haveria Ministérios de Risco Comportamental e Proteção Cívica.

A sociedade abandona o castigo como resposta moral ao mal. Em vez disso, desenvolve uma nova ética da vulnerabilidade universal: todos somos potenciais doentes; todos devemos cuidar uns dos outros. A ideia de “livre-arbítrio absoluto” é reformulada. Fala-se agora em graus de autonomia neurocomportamental, sempre contextualizados. As penas perpétuas e a pena de morte tornam-se impensáveis -- equivalem a abandonar um ser humano à sua doença. O sofrimento intencional de um criminoso passa a ser visto como barbárie -- da mesma forma que hoje se veria torturar um esquizofrénico.

A Biomedicina e a tecnologia passam a ser a base do novo sistema. A medicina comportamental integra ferramentas como a terapia genética personalizada para regular disfunções associadas à agressividade ou psicopatia. Estimulação cerebral não invasiva para modular centros de empatia, autorregulação e culpa. Interfaces cérebro/máquina que monitorizam e ajustam a impulsividade em tempo real com consentimento e supervisão ética. Terapias virtuais de reencenação empática, que expõem o paciente à experiência sensorial da sua vítima.

Esta previsão antecipa um salto de paradigma histórico: do castigo à cura, da exclusão à reintegração, da culpa à compreensão. A ciência de ponta da inteligência artificial já existe. Faltam mudanças éticas profundas, uma nova concepção de humanidade, e uma educação que prepare as futuras gerações para verem no criminoso não um inimigo, mas um humano em falha, como todos nós -- apenas mais evidente, mais urgente, mais extremo.

Esta será a refutação definitiva da tese do livre-arbítrio que durante milénios consumiu o pensamento de filósofos como Santo Agostinho. Depois vieram as prisões como resposta legítima contra o crime que tinha de ser punido com isolamento. Alimentámos uma ilusão moral: a de que o ser humano escolhe livremente ferir, matar e abusar. Uma vocação para o mal que é de nascença. Mas a ciência desfez essa ilusão. O cérebro humano não é uma fortaleza de liberdade absoluta. É uma estrutura plástica, programável, e vulnerável a ser danificada. Os atos que nos chocam, nos ferem e nos dividem: homicídios; violações; corrupção predatória - não brotam do vazio. São a flor venenosa de raízes invisíveis: infância desfeita; traumas precoces; disfunções neuronais; desregulações emocionais; genética de risco; falhas educativas; abandono afetivo . . .

sábado, 12 de julho de 2025

A matriz foucaultiana do feminismo atual



Foucault via a medicina, a psiquiatria, a sexualidade e o sistema penal como formas de poder sobre o corpo. Para ele, o conhecimento médico não é neutro: é um instrumento de disciplina e controlo. Isso foi absorvido por setores feministas que passaram a ver a obstetrícia como uma extensão do patriarcado, onde o corpo da mulher é "violentado" por normas masculinas disfarçadas de ciência. Tudo é descrito como violência sistémica, porque o corpo da mulher foi "invadido" por uma autoridade "masculina", mesmo que fosse uma obstetra mulher!

O risco desta lógica na prática é a destruição da confiança clínica num sistema onde o clínico é visto como suspeito de opressão à partida. O discurso da paciente é sempre verdade e o da equipa médica precisa justificar-se a todo o custo. A pressão pública e mediática é alimentada por ativismo propagado nas redes sociais. E assim se criou um clima de hostilidade e desconfiança, onde os médicos começam a evitar situações de risco, e as mais prejudicadas são precisamente as mulheres que precisam de cuidados complexos.


Margaret A. McLaren (2016, p. 29) afirma, a propósito de Foucault, que “nenhum filósofo do século masculino, desde Marx, chamou tanta atenção das feministas”. Assim como as diferentes possibilidades de leitura do feminismo, as ideias de Foucault desafiam elementos centrais da filosofia tradicional, como a noção de sujeito, o lugar do saber, o exercício do poder. A potência de seu pensamento e seus desdobramentos são questionados ainda pelas teorias feministas quando o acusam de silenciar sobre a diferença sexual, além de não estabelecer distinções entre o corpo masculino e feminino em sua História da sexualidade. Destacam, além disso, a desconfiança foucaultiana em relação aos ideais iluministas, como o de emancipação, posição que parece invalidar as lutas das mulheres pela igualdade de condições e oportunidades.

As análises de Foucault não buscam integrar correntes de pensamento, mas sim problematizar diferentes práticas sociais. Elas evidenciam que o poder opera de distintas formas no conjunto do tecido social, sendo que as lutas acerca da eliminação da desigualdade económica estão entrelaçadas às lutas contra todas as formas de discriminação, como as de género. As relações de poder, evidenciadas como jogo de forças entre géneros, produzem sujeitos nas diferentes classes sociais e, até mesmo, para além delas. Assim, uma mulher pode sofrer discriminação de género, ainda que pertença economicamente à classe dominante.

Esta posição de Foucault está muito próxima dos feminismos atuais quando estes desconfiam dos projetos neutros relacionados ao género. Sempre que projetos universais pretendem ser neutros e objetivos, têm como modelo o paradigma masculino. Por isso, as intervenções políticas e sociais precisariam prestar atenção às situações específicas que se desdobram das experiências próprias das mulheres. Não das mulheres como uma categoria uniforme determinada pela condição biológica, como se a portadora do sexo feminino já carregasse em si mesma a potencialidade de uma experiência política feminina.


Não se combate uma injustiça com outra. A obstetrícia, como qualquer área da medicina, teve excessos e erros. E as mulheres devem, sim, ter voz, respeito, autonomia e dignidade no parto. Mas isso não justifica uma inversão radical onde o médico é culpado até prova em contrário, e onde a ideologia suplanta a evidência clínica.

Tem de se preservar a autoridade técnica do médico para decidir, em segundos, o que salva uma vida. Porque, no fim das contas, um parto não é um comício. É um momento clínico que exige sangue-frio, experiência e responsabilidade. E isso, infelizmente, não cabe num slogan.

Há, de facto, más práticas, negligência e desrespeito que devem ser combatidos com firmeza. Mas confundir atos clínicos bem fundamentados com “violência sistémica” é não apenas um erro conceptual, como uma injustiça grave. É condenar profissionais que, muitas vezes, em segundos, tomam decisões para salvar vidas. É instalar o medo, a judicialização e a desconfiança — tudo aquilo que mina a relação médico-paciente e, paradoxalmente, torna os partos mais arriscados. A boa medicina exige empatia, escuta e respeito, sim. Mas também exige ciência, discernimento e responsabilidade. Sem isso, estaremos a sacrificar a segurança do parto em nome de uma cruzada ideológica.