sábado, 4 de outubro de 2025

Em nome de uma bandeira “humanitária”


Essa flotilha rumo a Gaza, tal como já aconteceu noutras ocasiões, não deixa de ser um gesto simbólico mais próximo da encenação política do que de uma ajuda efetiva. Muitas vezes estes movimentos apresentam-se como atos de solidariedade, mas, na prática, funcionam como propaganda. E ao desafiar diretamente forças militares numa zona de conflito, arriscam não só a vida dos próprios como também a instrumentalização da causa que dizem defender.

Além disso, há uma hipocrisia latente: quem apoia de forma acrítica esse tipo de ação esquece que, ao colocar-se automaticamente “do lado de Gaza”, acaba por fechar os olhos ao carácter autoritário, teocrático e violento do Hamas. Essa contradição – lutar contra opressões no Ocidente, mas tolerar ou até legitimar opressões noutros contextos – é um traço típico do dogmatismo político de certas franjas da esquerda radical. Ou seja, não é que a preocupação com a situação humanitária em Gaza não seja legítima, mas o modo como é usada como pretexto para gestos espetaculares e irresponsáveis reduz a seriedade da causa. No fundo é uma fantochada que só acirra divisões e não resolve nada.

Gestos de “ativismo simbólico” ou solidariedade internacional, feitos em nome de causas justas, acabaram por, na prática, favorecer regimes ou movimentos autoritários. Muitos intelectuais e militantes de esquerda na Europa e na América Latina viam Cuba como um farol de libertação contra o imperialismo. No entanto, fechavam os olhos para a repressão política, a censura e os expurgos internos promovidos por Fidel Castro. O romantismo revolucionário serviu como uma espécie de "escudo moral" que ajudou a legitimar o regime durante décadas. A Frente Sandinista derrubou a ditadura de Somoza, o que gerou grande simpatia internacional. Muitos movimentos de solidariedade, sobretudo na Europa, mobilizaram-se para apoiar a Nicarágua com campanhas de ajuda, brigadas de trabalho voluntário e propaganda política. Mas esse apoio raramente incluía uma crítica séria às tendências autoritárias do sandinismo, como a perseguição a opositores, a instrumentalização da imprensa e a repressão a comunidades indígenas.

As Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) reuniram voluntários de todo o mundo contra o fascismo, o que em si parecia nobre. Mas, por detrás do romantismo, estavam fortemente controladas por Moscovo e pelo Comintern, que as usavam para reforçar a agenda estalinista na Península. Isso resultou na perseguição e eliminação de anarquistas e trotskistas, em nome de uma “unidade antifascista” que, de facto, consolidava um modelo autoritário. Muitos intelectuais e organizações de esquerda apoiaram, de forma acrítica, movimentos palestinianos em nome do anti-imperialismo. Porém, ignoraram que, em várias fases, esses grupos tinham uma forte componente islamista, autoritária ou mesmo terrorista. Assim, em vez de apoiar uma solução equilibrada de autodeterminação e paz, acabaram por reforçar narrativas que justificam violência indiscriminada.

O padrão que se repete é este: o romantismo ativista foca-se na luta contra um inimigo “visível” (o imperialismo, o fascismo, o capitalismo, Israel, os EUA), mas fecha os olhos para os males do lado que apoia. Isso cria uma cegueira seletiva que, no fim, perpetua autoritarismos. Ao longo da história contemporânea, certas formas de ativismo político – muitas vezes oriundas da esquerda radical – revestiram-se de uma aura de nobreza e solidariedade internacional. Porém, quando analisadas em profundidade, revelam um paradoxo: em nome de causas justas, acabaram por legitimar ou reforçar regimes e movimentos autoritários. Exemplos como a Revolução Cubana e a Nicarágua sandinista mostraram como intelectuais e militantes do Ocidente, fascinados pelo ideal anti-imperialista, fecharam os olhos para práticas repressivas internas. O mito da “ilha da liberdade” ou da “revolução popular” tornou-se mais forte do que a realidade concreta de censura, perseguições e concentração de poder.

Desde os anos 70, vários movimentos pró-palestinos encarnaram a mesma contradição: denunciavam, com razão, a ocupação e a violência contra os palestinianos, mas abraçavam sem crítica grupos que recorriam ao terrorismo e ao autoritarismo religioso, como se esses males fossem secundários perante o “inimigo principal”. O denominador comum destes episódios é a cegueira seletiva: o ativismo dogmático identifica um inimigo absoluto (o capitalismo, o imperialismo, o fascismo, Israel, os EUA) e, nesse processo, absolve ou relativiza os erros do campo que apoia. A exigência ética e crítica é sempre unilateral.

O Caso Atual: Flotilhas e Gaza. As flotilhas que hoje se dirigem a Gaza com alegada ajuda humanitária ilustram esse padrão. Sob a bandeira da solidariedade, encenam gestos espetaculares que pouco contribuem para aliviar o sofrimento real da população. O resultado é duplo: alimentar narrativas radicais e oferecer legitimidade indireta ao Hamas, um movimento teocrático e violento. O ativismo político, quando guiado por dogmas, transforma-se numa fantochada perigosa: teatraliza a solidariedade, mas sacrifica a lucidez crítica. Em vez de contribuir para soluções equilibradas, reforça divisões e dá oxigénio a atores autoritários. A maturidade política consiste precisamente em resistir a esses encantos românticos e reconhecer que nem todo inimigo do nosso inimigo é nosso aliado.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Os netos e o património da herança dos fundadores


Muitas vezes, o padrão que se observa é este: Primeira geração (o fundador) – o homem (ou a mulher) que constrói o património, normalmente com esforço pessoal, sacrifício e uma mentalidade de risco e trabalho duro. Segunda geração (os filhos) – crescem já num ambiente de maior conforto. Podem herdar o negócio ou o património, mas muitas vezes não têm o mesmo impulso, porque não sentiram na pele a luta inicial. Há um risco de dispersão, má gestão ou até de afastamento do espírito empreendedor. Terceira geração (os netos) – por vezes, retomam o valor do legado, inspirados pela figura do avô. Eles podem olhar para trás com mais distância, ver o “mito fundador” e sentir orgulho, tentando reconstruir ou perpetuar o que foi deixado. Ou seja: os netos são, muitas vezes, mais determinantes que os filhos na continuidade ou na transformação do património.

Entre máximas e ditados, há este: “Pai rico, filho nobre, neto pobre” (ou variantes). A ideia é que a riqueza construída numa geração pode ser dissipada na seguinte, mas os netos, tendo perdido, voltam a valorizar a herança ou a história do avô. Claro que isto não é uma regra universal. Em muitas famílias, são os filhos que continuam com sucesso. Mas, estatisticamente, há vários estudos em sociologia e economia familiar que mostram essa tendência de erosão patrimonial ao longo de gerações. O que faz com que os netos muitas vezes assumam um papel de “reconstrução” ou de “restauração da memória”.

A famosa frase inglesa “Shirtsleeves to shirtsleeves in three generations” (das mangas de camisa para as mangas de camisa em três gerações) traduz exatamente isso: o fundador enriquece, os filhos desfrutam, e os netos podem acabar por perder. Nos EUA, famílias industriais do século XIX (como os Vanderbilt) viram parte da fortuna dissipar-se rapidamente nos filhos, mas alguns netos procuraram restaurar prestígio ou reinventar-se em áreas culturais e sociais. Muitos títulos nobiliárquicos tinham património que os filhos imediatos geriam mal, sobretudo quando viviam no luxo das cortes. Vários netos, ao herdarem ruínas financeiras, voltavam a casar estrategicamente ou a empreender para recompor a herança. No Japão existe o mesmo provérbio: “Rice paddies to rice paddies in three generations” (arrozal a arrozal em três gerações). Alguns netos, após dissipação pelos filhos, retomavam as terras ou reinventavam o negócio, honrando o avô.

Estudos económicos mostram que 70% das fortunas familiares desaparecem na segunda geração e 90% até à terceira. Fonte: pesquisas de consultoras como Williams Group Wealth Consultancy e UBS. Os filhos tendem a estar “demasiado próximos” do esforço do pai para valorizarem ou sentirem a necessidade de replicar. Já os netos, que olham o avô como herói fundador, muitas vezes sentem-se compelidos a “honrar o legado”. No Douro, os séculos XVIII e XIX viram o nascimento dos principais fundadores do negócio do Vinho do Porto tendo criado boas fortunas. Mas, alguns filhos a seguir, dissiparam parte dos ganhos. Foi sobretudo já no século XX que vários netos reestruturaram as casas vinícolas e transformaram-nas em marcas globais de prestígio. Hoje, muitos descendentes já não vivem só da herança, mas de negócios reconstruídos pelos netos e bisnetos.

Soares dos Reis, Borges & Irmão (ourivesaria e banca) – os filhos muitas vezes não tinham o mesmo talento do fundador, mas os netos tentavam reerguer negócios ou consolidar propriedades rurais. Famílias agrícolas do Alentejo – durante o século XIX e início do XX, muitos grandes proprietários fundaram casas agrícolas prósperas. Os filhos, vivendo mais de rendas, pouco inovaram. Foram os netos, já em pleno século XX, que, perante crises agrícolas, buscaram novas estratégias (como turismo rural ou diversificação de culturas). Ramos Pinto – fundada em 1880. Após o esplendor inicial, foram sobretudo os descendentes das gerações seguintes (netos incluídos) que internacionalizaram a marca e preservaram o prestígio.

D. Antónia Ferreira (“Ferreirinha”), no século XIX, consolidou uma fortuna imensa no Douro. Os filhos usufruíram, mas parte da gestão tornou-se complicada. Foram os netos e bisnetos que reorganizaram os negócios e deram continuidade, transformando a marca num ícone até à sua aquisição por grupos maiores (hoje é da Sogrape).
O Fundador (1ª geração): D. Antónia Adelaide Ferreira (1811–1896) herdou vinhas no Douro e transformou-se na maior empresária do Vinho do Porto do século XIX. Resistiu à filoxera (praga que devastou vinhas), modernizou práticas agrícolas, apoiou viticultores endividados e construiu um verdadeiro império vinícola. Os Filhos (2ª geração): Herdaram o património, mas não tinham a visão empreendedora da mãe. A gestão fragmentou-se e parte da energia criativa perdeu-se. Alguns viviam mais de rendas do que da inovação. Os Netos (3ª geração): Já em pleno século XX, os descendentes reorganizaram os negócios. Criaram sociedades modernas e abriram o vinho Ferreira ao mercado internacional. Mantiveram o prestígio da marca até ela ser integrada na Sogrape (1987).
Espírito SantoRicardo Espírito Santo fundou a Casa Bancária em 1869. Os filhos continuaram, mas foi sobretudo a geração dos netos que expandiu o banco no século XX. A história terminou com a queda do BES em 2014, mas é um bom exemplo de como os netos podem tanto reforçar como arruinar um legado.
O Fundador (1ª geração): José Maria do Espírito Santo e Silva (1835–1915) abriu em Lisboa a Casa Bancária Espírito Santo Silva. Em pouco tempo tornou-se um dos mais importantes banqueiros do país. Legado: solidez bancária + prestígio burguês. Os Filhos (2ª geração): Deram continuidade ao banco, mas sobretudo consolidaram o que o pai já tinha feito. Não foram tão visionários quanto ele. O banco cresceu, mas ainda num modelo clássico e relativamente conservador. Os Netos (3ª geração): Aqui houve expansão brutal: Criaram o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (1920). Tornaram-se o maior grupo financeiro privado de Portugal. Nos anos 70 já tinham ramificações em seguros, imobiliário e internacionalização. Curiosamente, no século XXI, foi também uma geração de descendentes (Ricardo Salgado, bisneto do fundador) que acabou envolvida na derrocada do BES em 2014. → Mostra como os netos podem tanto reerguer como arruinar um legado.

sábado, 27 de setembro de 2025

Ser e estar


"Ser" vem do latim esse (“existir, ser”), que por sua vez vem da raiz indo-europeia es-, presente também no grego antigo eimí (“sou, estou”) e no sânscrito asmi. "Estar" vem do latim stare (“estar de pé, permanecer, ficar”), ligado à raiz indo-europeia sta- (“ficar de pé, permanecer”), que acontece também em palavras como stabilis → “estável”. “Ser” está ligado ao núcleo ontológico da existência; “estar” denota a postura no espaço, depois metaforicamente estendida ao estado ou condição. "Ser" tende a indicar algo essencial, permanente ou identitário. "Estar" indica algo circunstancial, transitório ou posicional. Daí a diferença que o português (e o espanhol) conseguiram preservar de modo mais nítido que o latim clássico, onde esse cobria ambos os domínios, e o latim vulgar começou a reforçar stare para distinguir a ideia de estado circunstancial.

Leonor está na adolescência → a ênfase recai na fase circunstancial da vida, que passará. Leonor é adolescente → põe a tónica na identidade atual dela (definição social ou biológica). Ambas as formas são possíveis, mas com nuances diferentes. Paulo Rangel é ministro → enuncia o cargo, como identidade institucional. Paulo Rangel está ministro → menos usual no português europeu moderno, mas existe como recurso estilístico para destacar o caráter temporário, circunstancial da função. É uma forma expressiva, que até sugere crítica (por exemplo, insinuando que o cargo não o define essencialmente). Essa distinção entre “ser” e “estar” é um luxo linguístico raro. Em inglês, to be cobre os dois, mas perde-se a nuance (daí se dizer que traduzir português ou espanhol para inglês é “aplainar” uma subtileza ontológica).

Encontrei alguns bons exemplos jornalísticos portugueses recentes em artigos de opinião. “Estar ministro” ou expressões próximas, suscitaram provocação mas com sentido pedagógico, mostrando diferenças semânticas. No jornal ECO, artigo de 29 de agosto de 2025: “Miranda Sarmento, o académico que está ministro para reformar as Finanças Públicas”. Aqui “está ministro” contrasta com “é ministro”, implicando que embora tenha o cargo, é algo provisório ou especial, um "estar" para reformar. No Jornal de Negócios, na seção de opinião: “Ninguém é ministro, mas está ministro. E esta diferença fundamental, que a língua portuguesa exprime tão bem, nunca se deve perder de vista …” Este é quase explicitamente reflexivo: afirma que “estar ministro” reflete algo diferente de simplesmente “ser ministro”. Sublinha-se que “esta diferença … nunca se deve perder de vista”, sugerindo consciência de nuances semânticas ou discursivas.

Esses usos mostram que “estar ministro” funciona como marca discursiva: não é só informar que alguém ocupa o cargo, mas situar esse alguém no cenário de mandato, expectativa, preparação ou mudança. Pode passar uma sensação de algo em curso, inacabado, ou de performance, em vez de simplesmente um estado institucional estável.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O meio académico ocidental que enquadra um conjunto de correntes críticas


Estudos pós-coloniais, e teoria crítica da raça, nas últimas décadas, ganharam força em certos departamentos universitários, sobretudo nas ciências sociais e humanidades. Há alguns pontos chave que ajudam a entender o que se passa na cabeça dessas pessoas. Muitos académicos, com a teoria crítica da raça,  partem da premissa de que o colonialismo europeu e a supremacia branca moldaram profundamente as estruturas económicas, políticas e culturais do mundo moderno. A narrativa que daí resulta tende a ver “o homem branco” como beneficiário de séculos de opressão, com uma responsabilidade histórica contínua. Figuras como Churchill são reavaliadas não pelo seu papel em momentos decisivos (como na Segunda Guerra Mundial), mas pelo seu pensamento e ações em contextos coloniais, onde as expressões conotadas com visões racistas não são contextualizadas com a sua época. Hoje, em alguns meios académicos, o critério moral (ligado à igualdade racial, de género ou à luta contra a opressão) é visto como mais importante do que qualquer outro contributo. 

Parte dos académicos, imbuídos de uma polarização identitária e militância intelectual, não vê o seu papel apenas como o de analisar, mas também como o de corrigir injustiças históricas. Daí que os ativistas por estas causas têm levado a efeito um processo de apagamento de representações icónicas da época passada derrubando estátuas, ou reescrevendo a História. A Universidade, no seu campus, transformou-se num campo de ativismo político. 
A categoria “homem branco” é usada como símbolo do poder histórico hegemónico. Por isso argumentam que o ataque a essa categoria é entendido como um ataque a esse sistema de poder, e não necessariamente às pessoas individualmente. 

No entanto, na prática, esse discurso reificado tende a cair no mesmo tipo de generalizações que criticam, acabando por ser recebido como um ataque ad hominem. Muitos destes académicos analisam apenas o imperialismo europeu, ignorando ou relativizando outros impérios e formas de escravatura (árabe, asiática, africana pré-colonial, etc.), criando uma visão parcial da História. Essa seletividade, não é inocente, faz parte de uma narrativa política de trincheira destinada a concentrar a culpa histórica num grupo específico. Não é que todos esses académicos se levem a sério nessa do "homem branco". O “homem branco europeu” é um símbolo que se tornou, para o ativismo político, o avatar histórico de um sistema global de opressão. Como é mais fácil atacar símbolos do que sistemas complexos, a retórica acaba por se tornar simplista e, para muitos observadores, injusta ou até hipócrita.

A força dessa visão no próprio Ocidente – e não tanto nos países que viveram o colonialismo europeu de forma mais direta – tem a ver com um conjunto de fatores que se juntaram desde os anos 60 e 70 e que ainda ecoam a revolução cultural de 1968 e o pós-guerra. Depois da Segunda Guerra Mundial, o Ocidente (especialmente EUA e Europa Ocidental) entrou num período de autocrítica intensa: o nazismo mostrou ao mundo até onde o racismo institucional podia ir. Movimentos de direitos civis nos EUA pelo fim do colonialismo, e as lutas contra a Guerra do Vietname, criaram um clima em que criticar o poder estabelecido era moralmente prestigiante.

Estas correntes pós-coloniais e feministas, que veem o “homem branco europeu” como sinónimo do poder histórico, e que é preciso combater, são herdeiras do marxismo. Paradoxalmente, este discurso só foi possível no Ocidente, pelo menos até ao segundo mandato de Trump, porque era mais fácil ter este discurso num contexto seguro, com liberdade de expressão e poucos riscos pessoais. Académicos no Ocidente podiam atacar a sua própria civilização sem medo de perseguição estatal, o que não aconteceria em países como a China, ou a Rússia, só para exemplificar os maiores. Mas agora com Trump também está a ser possível. O baixo custo político de atacar o “homem branco” no Ocidente acabou. Até agora, antes pelo contrário, era-se recompensado academicamente.

Ao longo de décadas, certos departamentos universitários foram dominados por linhas ideológicas homogéneas de esquerda abrangendo tudo e um par de botas – desde estudos de género, pós-coloniais, teoria crítica da raça. Quem quisesse fazer carreira, trabalhar essas áreas no alinhamento era como ter uma mina para a excelência curricular. Dando loas à narrativa dominante tinha garantida todas as portas abertas para o sucesso. Ao passo que questionar o "wokismo" era correr o risco de ser empurrado para a porta da rua. E o desemprego por muitos e maus anos. Isto criou um efeito de câmara de eco, onde as ideias se foram reforçando sem oposição séria.

Muito do vocabulário e da estrutura do pensamento contra o homem branco vem de debates americanos sobre escravatura. Coisas de Jim Crow, segregação, e racismo policial. A academia europeia importou esse enquadramento, mesmo quando ele não encaixa perfeitamente na história local. Por exemplo, aplicar a lógica de relações raciais dos EUA a Portugal ou à Noruega, até parece uma piada. Em sociedades democráticas e liberais, atacar o grupo dominante é visto como mais corajoso e ético, do que criticar minorias. Todas as minorias são sagradas. Ora, isso acabou por dar azo a todo o tipo de abusos. Essa assimetria moral criou o espaço para discursos muito agressivos contra o “homem branco”, que são inaceitáveis independentemente do grupo a que é dirigido.

No fundo, isto faz parte do eterno paradoxo ocidental. Quanto mais livre, mais autocrítico e seguro é o ambiente. Mais ele permite, e até incentiva narrativas que demonizam o seu património histórico. E como essa maioria hoje tem menos coesão identitária e menos vontade de se defender como grupo, o campo fica aberto para a retórica da autoagressão. E é aqui que entra a ironia da História, com o regresso de Donald Trump. Muitas destas correntes académicas estão agora a começar a provar do próprio veneno que andou a ser lançado pelo menos nos últimos trinta anos.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A propósito da megalomania de Trump



No seu discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, ontem, o presidente norte-americano não poupou nas críticas à ONU. Donald Trump acusou a ONU de não o ter ajudado nos seus vários esforços de paz: 
«As duas coisas que recebi das Nações Unidas foram umas escadas rolantes com defeito e um teleponto com defeito", ironizou o presidente dos EUA em Nova Iorque, referindo-se aos problemas técnicos em torno do seu discurso na sede da ONU, uma instituição que, segundo ele, "está muito longe de atingir o seu potencial. A melhor economia de sempre no mundo.»
Trump passou a detalhar aquelas que diz serem as suas conquistas, declarando ter acabado com sete guerras “intermináveis” em sete meses. 
«Nenhum outro presidente jamais fez algo parecido» Acusou a ONU de não o ter ajudado nos seus vários esforços de paz. Pena ter de fazer eu estas coisas e não a ONU. Qual é o propósito das Nações Unidas? Não chega nem perto de atingir o seu potencial. A única coisa que parece fazer é declarações veementes, mas depois nunca concretiza nada. São palavras vazias, e palavras vazias não resolvem guerras. Não só as Nações Unidas não estão a resolver os problemas, como estão a criar problemas, como por exemplo com a imigração descontrolada. A ONU está a financiar um ataque aos países ocidentais e às suas fronteiras. A ONU apoia as pessoas que entram ilegalmente nos Estados Unidos.»
Reconhecer o Estado palestiniano é uma "recompensa" para o Hamas. Passando para o conflito no Médio Oriente, Donald Trump disse que o reconhecimento unilateral do Estado da Palestina por vários países, concretizado no domingo e na segunda-feira, é uma “recompensa às ações terroristas” do movimento islamita palestiniano Hamas, incluindo os ataques de 7 de outubro de 2023, que desencadearam o conflito na Faixa de Gaza. “Reconhecer o Estado palestiniano seria uma recompensa demasiado grande para os terroristas do Hamas”, disse, acusando o movimento islamita de estar a rejeitar “ofertas razoáveis para a paz”.

Em seguida, mudou de assunto para falar sobre a guerra na Ucrânia. Trump admitiu que pensou que este seria o conflito mais fácil de resolver devido à sua boa relação com o presidente russo, Vladimir Putin, mas acrescentou: "Na guerra, nunca sabemos o que vai acontecer”. Trump instou a Europa a “intensificar os esforços” e a acabar com a compra de produtos energéticos russos. E 
também apontou o dedo à China e à Índia, acusando-os de serem “os principais financiadores” da máquina de guerra russa. "A China e a Índia são os principais financiadores da guerra em curso porque continuam a comprar petróleo russo. Nem os países da NATO reduziram suficientemente a energia russa. Trump encerrou o seu discurso, que durou aproximadamente uma hora, com uma mensagem sobre migração e energia renovável.
«Para encerrar, quero apenas repetir que a imigração e o alto custo da chamada energia verde renovável estão a destruir grande parte do mundo livre e grande parte do nosso planeta. Países que prezam a liberdade estão a desaparecer rapidamente por causa das suas políticas sobre estes dois assuntos. Vocês precisam de fronteiras fortes e fontes de energia tradicionais se quiserem ser grandes novamente».
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Originalmente, “megalomania” era usada em psiquiatria para descrever uma obsessão com poder e grandeza. Hoje, o termo caiu em desuso técnico e é mais comum em linguagem popular, para designar vaidade desmedida, desejo de poder ou autoimagem insuflada. É o nível mais brando da psicopatologia que pode ser visto como traço de personalidade (frequente em líderes autoritários, figuras públicas e até em certos empresários). Quando se utiliza o termo “delírio de grandeza” – aqui entramos num quadro mais clínico. “Delírio” já implica uma crença falsa, fixa e inabalável, que não cede à evidência. Exemplo: acreditar ser escolhido por Deus, ou ter uma missão messiânica inquestionável. Não é apenas arrogância: é convicção delirante. Pode aparecer em perturbações como a esquizofrenia, perturbações delirantes ou fases maníacas do transtorno bipolar.

Mas quando se utiliza o termo “psicose” – é um estado mental global em que a pessoa perde contacto com a realidade: pode incluir delírios, alucinações, pensamento desorganizado. Nesse nível, a megalomania/delírios de grandeza são apenas um dos sintomas, mas não explicam tudo. Já é doença mental grave, com impacto funcional profundo. A progressão faz sentido como um continuum de gravidade. Traço de personalidade narcisista ou megalomaníaco → Delírio de grandeza persistente → Quadro psicótico pleno. No entanto, clinicamente nem sempre é uma progressão inevitável. Muitas pessoas com traços megalomaníacos nunca desenvolvem delírios, e nem todos os delírios levam à psicose generalizada.

Aplicada essa grelha a líderes como Trump, a maior parte dos especialistas diria que ele se enquadra mais em traços narcisistas/megalomaníacos (primeiro nível), talvez roçando os delírios de grandeza, mas sem sinais de psicose verdadeira.


Em 2024, mais de 200 profissionais de saúde mental assinaram uma carta aberta (um anúncio de página inteira no New York Times) afirmando que Donald Trump apresenta “malignant narcissism”, uma perturbação severa de personalidade que mistura várias características como narcisismo, manipulação e falta de empatia.

Especialistas como Bandy Lee (psiquiatra) também têm falado de “perturbações da personalidade” no discurso público de Trump, mencionando grandiosidade, impulsividade, reatividade. Grande parte dos psiquiatras usa o Goldwater Rule, regra ética da Associação Americana de Psiquiatria, que desencoraja ou proíbe que psiquiatras façam diagnósticos de figuras públicas sem uma avaliação direta. Alguns argumentam que, dada a gravidade do comportamento observável com implicações de perigo para todo o mundo, há justificação para levantar preocupações mesmo sem um exame clínico pessoal. No The Independent, Lance Dodes, por exemplo, disse que Trump exibe sinais de algo “próximo da psicose”, especialmente sob stress. Ele falou de “ideias delirantes” que aparecem quando Trump está sob pressão, sugerindo que ele perde o contacto com a realidade nesses momentos. Outra alegação é de que Trump, em discursos ou ações, rejeita evidências factuais que contradizem as suas crenças ou afirmações, ou se mantém em crenças que muitos verificam ser falsificáveis. Esse tipo de comportamento enquadra-se nitidamente nos “delírios de grandeza”.

Allen Frances, que foi um dos autores do DSM para transtornos de personalidade, escreveu que diagnosticar Trump (ou qualquer figura pública) como se ele tivesse um transtorno mental é “bullshit” se for feito de forma leviana ou sem base clínica sólida. Ele alerta para o risco de confundir “mau comportamento”, vaidade ou má retórica, com transtorno mental grave. Muitos apontam que mesmo que Trump exiba traços de personalidade narcisista ou de grandiosidade, isso não significa automaticamente que ele está em psicose. Psicose implica um nível fora da realidade que normalmente exige diagnóstico clínico claro, como alucinações, delírios fixos persistentes, desorganização extrema do pensamento.

A percepção pública tem sido avaliada através de sondagens que mostram que uma parte dos eleitores nos EUA acha que Trump não tem a saúde cognitiva ou mental adequada para continuar como presidente. Em contraste, há também quem acredite exatamente o oposto, reforçando a sua robustez ou capacidade de liderança, mesmo reconhecendo falhas ou comportamentos polémicos.


O Livro: The Dangerous Case of Donald Trump (vários psiquiatras, editado por Bandy Lee) é um conjunto de ensaios de psiquiatras que analisam comportamentos públicos, argumentando que há risco para a democracia e que muitos sinais são clínicos. Porque é relevante, mesmo citando limitações éticas, os psiquiatras decidiram publicar avaliações clínicas públicas. O Goldwater Rule é uma regra da American Psychiatric Association que recomenda não diagnosticar figuras públicas sem avaliação direta. Isso é central para interpretar qualquer diagnóstico público sobre Trump. Alguns profissionais reivindicam dever cívico para comentar; outros dizem que isso viola ética clínica. Allen Frances alerta contra diagnósticos públicos levianos; defende que Trump não preenche os critérios formais dessa grelha psiquiátrica, sendo mais um comportamento estratégico da política.

The Guardian, AP, The Lancet, Finantial Times – dão cobertura à polémica, mostrando como a comunidade psiquiátrica se dividiu, como o público reagiu e os riscos de rotular politicamente. Contextualiza o debate entre opinião clínica, ética e política. Nenhuma publicação clínica revista por pares confirmou de forma consensual que Trump tem psicose. Diagnósticos formais (DSM) em contexto clínico requerem avaliação direta; por isso há sempre uma lacuna entre análises públicas e diagnósticos formais.

No livro The Dangerous Case of Donald Trump, há capítulos em que autores falam de crenças fixas de Trump (por exemplo, negação de resultados eleitorais, insistência em teorias de conspiração) como possivelmente características de delírio, ou no mínimo de crenças resistentes a evidência. Na carta dos mais de 200 profissionais afirma-se que Trump “cumpre” critérios observáveis do DSM para narcisismo, transtorno de personalidade antissocial, e paranoia. Isso é usado como argumento de “malignant narcissism”. Embora não seja um artigo académico formal, é uma forma de discussão pública de critérios comportamentais.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A húbris trumpista no tempo das novas redes sociais



No Egito, Moisés, começou por liderar uma rede social que comunicava de porta em porta. Isto é só para dizer que as redes sociais remontam ao tempo da passagem das trevas para a luz. A questão que me traz é que poucos foram aqueles que souberam reverter as redes da luz para as trevas como fizeram os nazis na década de 1930. Os nazis não só criaram a sua própria rede propagandística (rádio, imprensa, organizações juvenis, rituais públicos), como neutralizaram redes rivais (sindicatos, partidos, imprensa livre, movimentos religiosos independentes) de forma sistemática e total. Esse “golpe” não foi apenas repressivo, mas substitutivo. E agora? O que se está a passar na América com Donald Trump a Presidente?

No presente, Trump segue a lógica de concentração da narrativa e deslegitimação das redes concorrentes. Controla a imprensa, restringe influenciadores não alinhados, e modela todo o ecossistema mediático para reforçar a narrativa oficial. É claro que Putin já faz o mesmo há mais tempo. Manipula redes mediáticas, reprime ONGs e assassina opositores, mantém um “cinturão” de desinformação interna e externa.  No entanto, Trump quer fazer passar a ideia de que não controla as redes como num regime autoritário. Tenta criar um ecossistema mediático paralelo (Fox News, Truth Social, podcasts, influenciadores) e minar a confiança no sistema informativo tradicional. Apesar de tudo não tem o monopólio absoluto sobre os canais como teve Hitler. Trump opera em contextos onde a multiplicidade de canais ainda persiste e teima sobreviver.

Trump opera num país que não perdeu hegemonia, mas sim parte do consenso interno. Hitler criou um sistema totalitário: um partido único que controlava sindicatos, associações de juventude, imprensa, cultura, educação, religião (na medida possível). Rede centralizada e exclusiva. Por outro lado, o Partido Comunista Chinês funciona como rede única, todos os canais (digitais, impressos, televisivos e educacionais) são vigiados e controlados. O espaço para redes independentes é quase nulo. E Putin mistura controlo estatal e tolerância seletiva a redes “neutras” ou alinhadas. A oposição independente é marginalizada, ou eliminada. Ainda assim espera-se que Trump esteja mais distante de Hitler, porque depende de liberdade de imprensa para existir, embora a ataque constantemente. Propaganda e mito são as fundações dos ditadores. Narrativa de pureza racial e destino histórico; uso de espetáculo visual e ritual político como cimento da rede.  “Make America Great Again” [MAGA] é o "slogan-mito": Apelo emocional a um passado idealizado.

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No tempo de Hitler, um dos alvos de ataque foi a rede bancária dos judeus, uma rede poderosa que já vinha do tempo dos Templários. Os seus condicionalismos de comerciantes ambulantes, para além da seleção de um certo tipo de inteligência, deram-lhes uma sabedoria como ninguém. E isso foi-lhes fatal na mente paranoica de Hitler e seus quejandos nazis. Mas a rede bancária europeia tem raízes medievais antes dos Templários, mas os Templários foram, de facto, um marco. Criaram um sistema de letras de câmbio que permitia a um peregrino depositar dinheiro num Castelo Templário em Paris e levantá-lo em Jerusalém. Essa prática, ao reduzir o risco de assaltos, criou uma confiança transnacional, algo muito raro no período medieval.

Quando a Ordem dos Templários foi destruída no século XIV, parte desse know-how financeiro espalhou-se para outras redes. Foi o caso das Casas Bancárias de famílias italianas como os Médici, os Bardi e os Peruzzi. Mas as famílias judaicas não desapareceram. Atuavam secretamente como banqueiros, por razões óbvias. Com mobilidade forçada, devido às perseguições, famílias judaicas atuavam em rotas comerciais longas. Daí a importância do fomento da literacia no seu seio, com ênfase na alfabetização e nos números para a contabilidade e os contratos. O problema é que, no imaginário antissemita europeu, isso foi distorcido numa narrativa de “rede secreta de controlo financeiro”. Hitler absorveu essa fantasia alimentada por falsos documentos. Os Protocolos dos Sábios de Sião deram muito que falar. Foi forjada uma retórica onde o “judeu internacional” era o inimigo invisível que supostamente manipulava governos, mercados e imprensa.

Antes dos Templários (séculos IX–XI) a função de emprestar dinheiro e financiar comércio já existia em feiras medievais com as rotas árabes que circulavam pela Lombardia. Alguns mercadores judeus atuavam como intermediários financeiros por estarem em contacto com várias regiões e línguas. Por isso, a ideia de que “os judeus inventaram os bancos” é um mito que ignora o papel dos árabes e das Casas da Lombardia. Os Templários criaram um sistema bancário transnacional seguro para peregrinos e cruzados com depósitos, créditos e transporte de ouro e prata. Tinham sedes e fortalezas em toda a Europa e no Médio Oriente. Praticavam algo muito próximo da letra de câmbio, antecipando a lógica bancária moderna. Riqueza e influência geram lendas de “tesouros secretos” e “sociedades ocultas”. Foi o que aconteceu depois da dissolução da Ordem dos Templários  que supostamente sobreviveram à dissolução por decreto de Filipe, o Belo, ou Filipe IV de França [1268-1314].

Com o fim da Ordem dos Templários, em 1312, parte das práticas e conexões foi absorvida pelas casas bancárias dos Médici, Bardi, Peruzzi, Fugger. Judeus continuaram ativos como banqueiros em contextos onde cristãos não podiam legalmente cobrar juros, mas o seu papel era muito desigual de país para país. Em muitos casos, serviam apenas como prestamistas locais, não como grandes banqueiros internacionais. Daí que se tenha fixado a ideia do “judeu agiota” como arquétipo negativo, reforçada em literatura e legislação discriminatória.

Em finais do século XVIII a Europa assiste à ascensão dos Rothschild. Família judaica alemã que criou um sistema bancário multinacional com sucursais em cinco capitais europeias (Frankfurt, Londres, Paris, Viena, Nápoles). Financiou governos e grandes projetos, ganhando prestígio e influência. Estratégia empresarial. Casamentos endogámicos para proteger o sigilo foi sistemático. Tornaram-se símbolo do “banqueiro judeu global”, alvo de panfletos antissemitas, mesmo que outras famílias cristãs fossem igualmente poderosas (Baring, Lazard, Morgan).

Os “Protocolos dos Sábios de Sião”, que apareceram em 1903, eram um falso documento criado pela polícia secreta russa, descrevendo um suposto plano judaico para dominar o mundo. Hitler incorporou essa mentira no Mein Kampf e na propaganda nazi. Aproveitou as crises económicas para culpar “o judeu internacional” pela miséria alemã. O regime apresentava todos os banqueiros judeus (e, por extensão, todos os judeus) como parte de uma rede única e malévola, ignorando que muitos judeus eram pobres e que havia banqueiros cristãos igualmente influentes.

Hoje estamos outra vez neste ambiente de teorias da conspiração a coberto do velho chavão da “Nova Ordem Mundial” cm a ideia de que ela é um monopólio judeu secreto. Não passa de uma ficção construída sobre pedaços de verdade, inflacionados e distorcidos. Portanto, é uma narrativa herdada de séculos de preconceito e paranoia. E tudo isto se cruza com o que continuamos a ver nos posicionamentos de trincheira em relação ao que se passa na Palestina. De um lado os remorsos do Holocausto. Do outro lado o antissemitismo exacerbado na forma de anti-sionismo. Ao antissemitismo clássico [Europa, séculos XIX-XX: demonização do judeu como manipulador económico e inimigo interno] junta-se o anti-sionismo contemporâneo que se traduz em hostilidade política ao Estado de Israel. 

Israel conseguiu, em menos de 80 anos, transformar um território pequeno, árido e hostil num polo agrícola, tecnológico e militar de alta performance. Do ponto de vista de quem vive em pobreza crónica (como grande parte da população palestiniana sob bloqueio ou em campos de refugiados), esse contraste é brutal alimentando narrativas simplistas: “Se eles têm tanto e nós tão pouco, só pode ser porque nos roubaram.” Esse tipo de raciocínio é ancestral, porque é mais fácil atribuir o sucesso alheio ao roubo ou a conspirações. Israel beneficiou de redes pré-existentes da diáspora judaica (capital, know-how, contactos internacionais). Isso permitiu acesso rápido a tecnologia, mercados e diplomacia que outros países da região não tinham. Para o palestiniano médio, esta rede é invisível como realidade histórica e visível apenas como mito. E a inveja social como combustível político acaba por se impor. A inveja social (“porque eles têm e nós não”) torna-se mais inflamável quando se conjuga com a questão da identidade dos povos ligada ao binarismo de opressores e oprimidos. Líderes políticos e grupos militantes exploram esse ressentimento para reforçar coesão interna. A desigualdade de resultados entre Israel e Palestina é estrutural e não vai desaparecer a curto prazo. Enquanto isso, qualquer sucesso israelita será lido, por muitos palestinos (e não só), como prova de injustiça. Esse ciclo é alimentado tanto pela realidade das condições de vida como pelo mito conspirativo herdado de outras épocas.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A luta social em que a sua ideologia não se cumpre totalmente na herança



As lutas sociais deixaram marcas profundas. Hoje ninguém questiona direitos como férias pagas, limites de horário de trabalho, sindicatos, ensino público, saúde universal em muitos países. Esses avanços nasceram em grande parte da pressão de movimentos operários. Mas o comunismo, enquanto projeto total, falhou em quase todos os países. A imposição de uma visão rígida da sociedade, sem respeitar a diversidade das aspirações humanas, não podia ser suportada por muito tempo. Mas mesmo nas sociedades capitalistas, e de liberalismo democrático, apesar de o marxismo não ter vingado, ainda assim alguma coisa foi absorvida pelo centro-esquerda e extrema-esquerda, tendo esta um aroma mais trotskista do que estalinista com pendor feminista. É claro que nem nas social-democracias ou regimes liberais e do socialismo democrático seria admissível algum recuo nas conquistas feministas que se iniciaram nos finais do século XIX -- as mulheres poderem votar, estudar e trabalhar independentemente da vontade dos homens.

O comunismo foi uma utopia. Como todas as utopias, almejava a perfeição. Ora, o que caracteriza o mundo humano é a imperfeição. O comunismo prometia a sociedade sem classes, sem exploração. Na prática, ao tentar impor essa perfeição, gerou ditaduras e miséria. Da mesma forma, equacionado como utopia, o feminismo ainda tem um problema para resolver: a violência doméstica. Prometendo a igualdade plena, acaba por forçar um modelo “ideal” de mulher: independente, empoderada, sem contradições. Ora, isso gerou frustração nas mulheres feministas, porque a realidade é sempre mais complexa do que a ideologia. E o risco que se corre tem sido sempre o mesmo:  a transformação numa doutrina moral, em que quem não se encaixa no modelo é misógino.

O comunismo começou como luta contra condições degradantes do trabalho. Mas, quando se extremou no “tudo ou nada”, afastou muita gente. O feminismo, por sua vez, nasceu da luta justa por direitos básicos (voto, educação, liberdade). Hoje, algumas correntes tentam impor uma leitura total da vida social em modo feminista, e isso causa rejeição com a consequente perda de simpatia da maioria, ficando fechado em bolhas ideológicas. O comunismo deixou um rasto de conquistas laborais que ninguém quer perder na eterna luta contra o Capital. E o feminismo, mesmo que lhe aconteça o mesmo e perca força como movimento organizado, as suas conquistas dificilmente terão retrocesso porque a sociedade já mudou estruturalmente. Muitas das suas tensões vêm de dentro: diferentes feminismos, críticas entre mulheres, divergências sobre maternidade, carreira e sexualidade. O comunismo falhou porque quis ser um sistema totalitário. O feminismo corre o mesmo risco. Mas, tal como o comunismo, o feminismo também já deixou conquistas irreversíveis.

Como qualquer ideologia, o feminismo é radical. De qualquer modo, a igualdade de direitos, a autonomia e a liberdade de escolha vão ficar como conquistas sociais permanentes. A bandeira deixa de ser feminista e passará a ser cidadã de direitos. Provavelmente veremos mulheres menos preocupadas em “encaixar no ideal feminista” e mais em viver como quiserem: umas vão querer carreira, outras vão querer constituir família, muitas vão conciliar, e tudo mais naturalizado, mais na ordem natural da biologia. A pressão ideológica diminuirá, a liberdade individual crescerá. A nostalgia de papéis tradicionais já se vê nas correntes mais conservadoras da Europa e dos EUA. Mas essa nostalgia dificilmente vai apagar as conquistas. A igualdade será vista como natural e não como uma  bandeira, com as tensões a dissolverem-se na normalidade.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A experiência de morte iminente


A experiência de morte iminente é um campo que já foi bastante estudado com a designação de "Experiência Quase Morte" [EQM]. Mas continua envolto em debates científicos, filosóficos e culturais. O cerne da questão está na variabilidade da experiência que depende de fatores individuais, culturais e biológicos. O que aparece com frequência são "relatos". Mas nem todas as pessoas que passaram pelas mesmas circunstâncias o referem: "sensação de paz, ausência de dor, dissociação do corpo (a chamada experiência fora do corpo); passagem por um túnel ou movimento em direção a uma luz; encontros com pessoas falecidas ou entidades religiosas; revisão panorâmica de toda a vida já vivida; sensação de ponto de não retorno. 

Apenas algumas pessoas que passaram pela experiência de morte iminente relatam isso. A maior parte não tem memória de experiência alguma, ou só lembram fragmentos confusos. Aspectos hoje revelados pela neurociência apontam para o papel dos fatores individuais que têm a ver não apenas com os traços psicológicos da pessoa, mas também com a influência da sua cultura ligada à religião. As pessoas em diferentes contextos tendem a interpretar a experiência de morte iminente segundo o seu reportório simbólico. Crenças, expectativas e até traços de personalidade influenciam o conteúdo. E experiências anteriores -- passadas nos sonhos durante o sono; ou com aqueles estados alterados de consciência; ou com o consumo de psicotrópicos como o LSD -- podem moldar o que se recorda.

Não há consenso absoluto, mas algumas hipóteses da neurociência são fortes. Atividade anómala do cérebro em hipóxia pode gerar as tais visões do túnel de luz e a sensação de flutuar. Assim como as descargas elétricas da epilepsia no lobo temporal e parietal, que são as áreas cerebrais ligadas à percepção do “eu” e do espaço. E é pela libertação de neurotransmissores e endorfinas que se explica a ausência de dor e de medo, apesar de se estar numa situação limite entre a vida e a morte. Nos casos de paragem cardíaca transitória, há no registo do eletroencefalograma um pico breve de atividade gama. Esta atividade está na base dos estados alterados de consciência.

Quando estas pessoas, que passaram por tal experiência, tentam fazer a recordação do sucedido através de um relato que seja coerente, sabe-se que estes exercícios de memória não são mais do que uma reconstrução em que as lacunas têm de ser preenchidas com passagens extraídas de outros relatos guardados na memória. Portanto, o mistério está no facto de nem todas as pessoas passarem por isso. Alguns relatam experiências “transcendentes” muito consistentes, que os transformam psicologicamente de maneira duradoura a partir desse acontecimento. Há casos de pessoas cegas de nascença que descrevem imagens visuais, algo que ainda é pouco compreendido. Em suma: os relatos dessa experiência, que são de um modo geral muito padronizados, corresponde apenas a uma pequena fatia das pessoas que sobreviveram a uma experiência de morte iminente, geralmente depois de terem sofrido uma paragem cardiorrespiratória, e terem sido reanimados. Contudo, as
 famosas imagens - túnel, luz, revisitação da vida - são padrões frequentes, mas não obrigatórios. Parece haver uma dependência de certo tipo de predisposição cerebral na forma como processa a memória, bem como do estado físico no momento da crise e também do tipo de influência cultural. 

Há uma convergência interessante com as experiências induzidas por substâncias psicodélicas como o LSD, DMT e Ketamina. Estudos recentes mostram que doses de DMT (dimetiltriptamina) produzem experiências muito semelhantes: sensação de separação do corpo e encontros com divindades. Isso sugere que o cérebro tem vias neuroquímicas próprias que, sob certas condições (trauma, hipóxia, drogas), produzem narrativas transcendentes. A Ketamina é usada em anestesia e também em contexto recreativo. Pode gerar a tal sensação de se estar a flutuar fora do corpo e a vê-lo lá fora. Isso está relacionado com o envolvimento de receptores do glutamato  NMDA. Quando se estimulam as áreas temporal e parietal, alguns pacientes relatam sensação de presença mística, de sair do corpo ou rever de forma intensa certo tipo de memórias marcantes da vida da pessoa. São exemplos a sensação de fusão com o universo ou as tais revelações religiosas das tradições ditas do Livro.

Mesmo que seja “apenas o cérebro em colapso”, 
padrões neuroquímicos e elétricos conhecidos, o efeito subjetivo é tão profundo que se torna real na biografia da pessoa. Mesmo que explicável pelo cérebro, ela marca a pessoa como se fosse uma revelação. Culturalmente é moldada pelas crenças de fundo, mas transcende-as ao tocar num medo universal que é a morte. A morte é o fim absoluto, mas o espiritualismo, ao sugerir que a "consciência" não morre, é uma necessidade para dar sentido e esperança. E há um facto inegável: quem passa por isso geralmente nunca mais encara a vida e a morte da mesma forma. Em sociedades ocidentais, a luz e o túnel são frequentes; em sociedades hindus, relatos incluem “funcionários do além” ou divindades locais. Isso sugere que o cérebro preenche o vazio com símbolos culturais.

Mas nem todos relatam as chamadas "experiências de quase morte"Muitas pessoas que passaram por paragem cardíaca não tiveram nenhuma experiência. Se fosse algo “da alma a sair”, seria universal. Agora, isso não significa que as pessoas que relatam essa experiência estejam a inventar ou a mentir. O que acontece ´r que as pessoas procuram traduzir o fenómeno para a linguagem de uma certa maneira.  Apesar das diferenças culturais, os padrões centrais (paz, luz, separação do corpo, revisão da vida) aparecem repetidamente, sugerindo que há algo mais do que pura invenção individual. A questão está no facto de até a ciência ter as suas limitações para explicar todos os fenómenos não só do nosso cérebro como de toda a natureza do Universo físico. Por exemplo, a ciência explica grande parte dos fenómenos como produtos do cérebro, embora alguns casos limite (cegos, consciência sem EEG, perceções verificáveis) permanecem misteriosos. A maior parte desses fenómenos pode ser entendida como fenómeno cerebral, apesar de haver ainda uma minoria de relatos que desafia a neurociência atual, mantendo aberta a questão filosófica e espiritual.


O caso de Pam Reynolds (1991) – o “clássico da neurociência”: ela passou por uma cirurgia de remoção de aneurisma cerebral que envolveu hipotermia profunda, paragem cardíaca e EEG praticamente plano. Ou seja, seu cérebro não deveria estar ativo. O que aconteceu foi que durante o procedimento, ela relatou sair do corpo, descreveu com precisão detalhes da sala cirúrgica, os instrumentos usados e conversas entre médicos. Também descreveu formas geométricas e movimentos que só puderam ser observados de cima, o que parecia impossível de alcançar apenas com visão normal. Após a cirurgia, contou ainda ter visto “luz brilhante e figuras familiares”, típico deste fenómeno. Este caso é citado porque combina consciência verificável com ausência de atividade cerebral detectável, algo que desafia a explicação puramente neurobiológica.


O caso de Anita Moorjani (2006) – ela estava em estado crítico de um linfoma terminal, à beira da morte. Ela entrou em coma e, segundo os médicos, o seu corpo estava falhando completamente. O que aconteceu foi que ela relatou sentir-se totalmente livre da dor e medo, experienciar compreensão profunda da sua vida e das conexões com os outros, e perceber porque estava doente. Apesar do acompanhamento médico não milagroso, o linfoma regrediu rapidamente após a experiência, algo que os médicos não sabem explicar. Este caso é usado como exemplo de transformação física e psicológica duradoura após uma experiência de quase morte, mostrando que a experiência teve efeito real sobre o seu corpo e a sua percepção de vida.

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Transumanismo


Transumanismo (abreviado por h+) é um movimento filosófico, ou intelectual, que visa transformar a condição humana com o uso de tecnologias emergentes alcançando as máximas potencialidades em termos de evolução humana, que na sua evolução mais radical, ou seja, pós-humanista, prevê que seja possível transcender o patamar biológico da espécie humana, 
aumentando consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas. Em suma, transcender o envelhecimento e a morte.

Influenciada pelos trabalhos seminais da ficção científica, é a visão de uma humanidade futura transformada. Tem atraído muitos adeptos. Mas também críticos e detratores, sobretudo das religiões e filósofos conservadores de direita. Um transumano é um humano que sofreu transformações visando o tal objetivo da eterna juventude e vida eterna. Eles dividem-se entre os “grinders”, que desenvolvem implantes cibernéticos para aprimorar suas capacidades, e os "biólogos" que fazem experiências genéticos em laboratórios caseiros.


A busca por um elixir da vida e eterna juventude já é tão velha como os primeiros épicos de Gilgamesh escritos em tabuinhas de argila fresca na Mesopotâmia pelos Sumérios. Julian Huxley, neto de T. H. Huxley, um biólogo, foi um dos primeiros a cunhar o termo ‘transumanismo’. E em 1923 o geneticista britânico, J.B.S. Haldane, pega nisso no seu ensaio Daedalus: Science and Future. Grandes benefícios viriam de aplicações das ciências avançadas para a saúde humana biológica e que cada um desses avanços daria início a algo que pareceria algo como o blasfemo ou perverso "indecente e não natural". Em particular, ele estava interessado no desenvolvimento da ciência da eugenia, ectogénese (criação e sustentação de vida num ambiente artificial) e as aplicações da genética para melhorar características humanas, como a saúde e inteligência.

Na década de 1960, é o cientista da computação Marvin Minsky que se debruça sobre as relações entre o ser humano e a inteligência artificial. Ao longo das décadas seguintes, este campo continuou a gerar pensadores influentes, como Hans Moravec e Raymond Kurzweil, que oscilava entre a área técnica e especulações futuristas de estilos transumanistas.

Os primeiros autodenominados transumanistas reuniram-se formalmente no início de 1980, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que se tornou o principal centro do pensamento transumanista. Em 1986, Eric Drexler publicou Engines of Creation: The Coming Era of Nanotechnology, que discutiu as perspetivas para a nanotecnologia e montadoras moleculares, e fundou o Foresight Institute, a primeira organização sem fins lucrativos para tal investigação. No sul da Califórnia a Alcor Life Extension Foundation torna-se um centro para os futuristas. Em 1988, a primeira edição da Extropy Magazine foi publicada por Max More e Tom Morrow. Em 1990, em outra estratégia filosófica, criou a sua própria doutrina particular transumanista, que assumiu a forma dos Princípios do Extropy, lançando os alicerces do transumanismo moderno com uma nova definição. Anders Sandberg, um proeminente académico e transumanista, compilou várias definições. O termo “transumanismo” usado como sinónimo de “aprimoramento humano”. O transumanismo às vezes é confundido erroneamente com “pós-humanismo”.

Uma característica comum do transumanismo e o pós-humanismo filosófico é a visão de uma nova espécie inteligente para onde a humanidade vai evoluir e, eventualmente substituir. O transumanismo, interiorizando a perspetiva evolucionista darwinista, inclui a criação de uma espécie animal altamente inteligente por meio de melhoria cognitiva (ou seja, elevação biológica), numa deriva pós-humana.


quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O exemplo de Roger Scruton – e a falta de gratidão nas pessoas que criticam o Ocidente


Nos últimos meses de vida Roger Scruton foi alvo de vários ataques significativos que lhe causaram tais dissabores que um cancro do pulmão lhe foi fatal seis meses após o diagnóstico. Em julho de 2019 foi-lhe diagnosticado cancro do pulmão, depois de em abril desse ano ter sido demitido do cargo de presidente da Building Better, Building Beautiful Commission, um organismo ligado ao governo britânico, meramente devido a calúnias. Isso ocorreu após a publicação de uma entrevista ao jornal New Statesman, a partir da qual, e em interpretações mal fundamentadas, lhe foram atribuídas afirmações controversas sobre a China e a Hungria, incluindo referências a um “império Soros”. Posteriormente, o jornal veio a retratar-se e a pedir desculpa, corrigindo as perversas e deturpadas interpretações das suas palavras. Precisamente em julho de 2019 o Organismo Públivo reintegrou-o, mas todo o mal já estava feito. Roger Scruton morreu pacificamente em 12 de janeiro de 2020, aos 75 anos, na companhia da família, em Londres. A família divulgou agradecimentos pelo apoio que recebeu nesse período turbulento, ressaltando que esse impulso positivo o ajudou a retomar o trabalho, apesar da doença. No Spectator, em dezembro de 2019, Scruton escreveu uma poderosa reflexão sobre o ano difícil que enfrentara. Escreveu que a aproximação da morte o levou a compreender o valor da vida e a sentir gratidão.

Após cerca de seis meses de luta contra o cancro, Sajid Javid (Chanceler do Tesouro), destacou o trabalho intelectual, que Scruton levou a cabo em prol da liberdade de um conservadoe, que impactou no apoio aos opositores do regime soviético. Timothy Garton Ash (historiador da Universidade de Oxford) descreveu-o como “um homem de extraordinário intelecto, erudição e humor, um grande apoiante dos dissidentes da Europa Central, e o tipo de pensador conservador provocador – por vezes escandaloso – que uma sociedade realmente liberal deveria alegrar-se por ter para desafiá-la.”. Douglas Murray, disse que Scruton era uma das pessoas mais gentis, encorajadoras, ponderadas e generosas que se podia conhecer. Anne Applebaum (historiadora e jornalista) recordou como Scruton, nos anos 1980, a ajudou a organizar o envio de livros para dissidentes da Europa de Leste: “Fui uma das estudantes-correio que os transportou secretamente através da Cortina de Ferro.”


O jornal Diário de Notícias de Portugal publicou uma notícia no dia 12 de janeiro de 2020, referindo que Scruton foi um "filósofo, escritor, professor universitário e conselheiro governamental" que faleceu devido a um cancro após seis meses de combate à doença. Destacou ainda a controvérsia política recente que o envolveu, mencionando sua demissão do cargo governamental por declarações consideradas controversas, que posteriormente foram retratadas, embora ele não tenha reassumido a posição. O Observador publicou, além de uma homenagem filosófica profunda ao seu legado intelectual e estético, um tributo (In Memoriam) que sublinha sua defesa apaixonada dos valores do conservadorismo e beleza, concebidos como elementos essenciais da civilização ocidental.
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Eu fico banzado com a falta de proporção e contexto histórico em certos discursos académicos sobre império, colonialismo e escravatura. É a conhecida seleção parcial do objeto de crítica. Alguns autores concentram-se quase exclusivamente no Ocidente, ignorando ou minimizando que impérios, colonialismos e escravidão existiram de forma sistemática noutras civilizações (Império Otomano, Mongol, Persa, Chinês, etc.), muitas vezes com níveis de violência semelhantes ou até superiores. Focam-se num aspeto do comportamento ocidental. Tiram-no do contexto; põem de parte quaisquer paralelos não ocidentais. E depois exageram o que o Ocidente realmente fez.

É tudo analisado e extraído do contexto histórico. Analisam eventos do passado com critérios morais de hoje, sem considerar que no período histórico em causa, a escravatura ou a expansão imperial eram práticas comuns globalmente e não exclusivas do Ocidente. Mesmo quando as críticas são justificadas, por vezes o discurso é construído como se o Ocidente fosse o único culpado universal, apagando a pluralidade de agentes históricos. Raramente se destaca que o próprio Ocidente, com todas as suas culpas, também foi o berço dos movimentos abolicionistas e das ideias de direitos humanos que depois se tornaram universais. Alguns académicos tratam o imperialismo como uma invenção ou um traço quase exclusivo da Europa moderna, ignorando que a construção de impérios é um fenómeno transversal a praticamente toda a história humana.

Exemplos omitidos: Colonização árabe (séc. VII-XIX) -- expansão pelo Norte de África, Península Ibérica, Médio Oriente e até partes da Ásia e da África Oriental, com forte imposição cultural e religiosa. Colonização japonesa (séc. XIX-XX) -- ocupação da Coreia, Taiwan, Manchúria e grande parte do Sudeste Asiático durante a Segunda Guerra Mundial. Colonização interna russa -- expansão para a Sibéria, Cáucaso e Ásia Central, com deslocamentos forçados. Tráfico de escravos pelos árabes -- escravizaram africanos durante mais de mil anos, com estimativas de milhões de vítimas, incluindo as castrações dos eunucos com elevada mortalidade. Escravatura no Império Mongol e na China imperial -- servidão em grande escala dos povos conquistados. Escravatura indígena na América antes de Colombo -- no continente americano, antes da chegada dos europeus, temos que recordar pelo menos os impérios: Inca e Asteca.