terça-feira, 4 de novembro de 2025

Realismo na geopolítica


Na geopolítica só há interesses, a moral não é para aqui chamada. O equilíbrio da ordem mundial só aceita um no poder hegemónico. Nesta ótica, as nações não agem por valores, mas por interesses de poder e sobrevivência, e a moral é uma camada retórica aplicada a posteriori, para justificar ou tornar aceitável o que, na prática, é determinado pela necessidade estratégica. A ordem mundial tende sempre para um centro de gravidade, seja unipolar (como o mundo pós-Guerra Fria com os EUA), seja bipolar (como na Guerra Fria), seja multipolar (como parece emergir agora). Em cada caso, a estabilidade depende de um equilíbrio de forças, e esse equilíbrio raramente é mantido com “mãos limpas”.

O caso do Chile de Pinochet (1973) ilustra bem essa lógica de “realpolitik”. Para Washington, o risco de um Chile comunista sob Allende – aliado potencial de Moscovo e Havana – era inaceitável num continente que os EUA consideravam parte da sua “esfera natural de influência” desde a Doutrina Monroe. A alternativa “moralmente preferível” (manter Allende, respeitando o voto popular) cedia diante da lógica estratégica: o medo do contágio ideológico na América Latina. Assim, a CIA apoiou o golpe de Pinochet, com pleno conhecimento de que instauraria uma ditadura brutal. Mas do ponto de vista da racionalidade geopolítica americana, a operação foi um “sucesso”: o Chile não se tornou comunista, e a influência soviética foi contida. É o mesmo raciocínio que explica os apoios da URSS a regimes igualmente despóticos no Leste Europeu e em África. Tudo em nome do equilíbrio global.

Em suma, a moral individual não tem o mesmo estatuto na política internacional. Os Estados não têm amigos; têm interesses. O equilíbrio global é quase sempre assegurado por meios “sujos”, porque as potências agem sob a pressão de não poderem permitir que a outra parte vença. O que fica em aberto é talvez o ponto filosófico mais interessante. É saber se essa lógica é inevitável ou se apenas reflete o estado atual de consciência política da humanidade. Ou seja, será possível uma ordem mundial estável sem cinismo e sem violência estrutural, baseada numa racionalidade cooperativa?

Os EUA e a China seguem duas racionalidades civilizacionais diferentes. A chinesa é estratégica e paciente, moldada pelo confucionismo e pelo pensamento de Sun Tzu. A americana é mais emocional e moralizante, proveniente da influência liberal/democrática. De facto, Xi Jinping encarna algo que raramente se vê hoje no Ocidente: uma visão de longo prazo, com uma teleologia imperial clara, não messiânica, mas civilizacional. O seu poder não depende de ciclos eleitorais, de sondagens ou de sensibilidades mediáticas. Ele age num horizonte de décadas, e essa paciência é herdeira direta da sabedoria confucionista: o equilíbrio, a hierarquia, o autocontrolo, a espera do momento propício. O Ocidente, pelo contrário, mergulhou numa lógica que poderíamos chamar “damasiana” ou “golemaniana”, ou seja, guiada por uma inteligência emocional que valoriza a empatia, a inclusão, a expressão individual e os direitos sentimentais, muitas vezes à custa da frieza estratégica. Esta cultura emocional democrática, que é bela num plano humano, torna-se vulnerável no plano geopolítico: reage a choques momentâneos, moraliza tudo, e perde a coerência estrutural.

Xi, ao contrário, joga com o tempo e a coerência. A China cresce com calma e método, infiltrando-se nas cadeias de produção, nos portos, nas comunicações, nos minerais estratégicos e nas instituições multilaterais. É um poder de soft domination mascarado de cooperação, mas profundamente racional e paciente. E há, ainda, um paradoxo irónico: enquanto o Ocidente se torna emocionalmente hiperconsciente e eticamente fragmentado, a China toma estrategicamente o poder mundial. A questão de fundo é: será que o liberalismo ocidental, impregnado dessa inteligência emocional democrática, pode sobreviver como força hegemónica num mundo em que a racionalidade fria e impessoal da civilização confucionista começa a dominar o jogo global? Ou, dito de outra forma: o Ocidente não estará a perder precisamente porque humanizou demasiado a sua política, enquanto o Oriente a manteve como arte da sobrevivência e da paciência?

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Qual a melhor maneira de combater o populismo?


O presente ensaio não pretende falar do populismo como um fenómeno isolado. Nem reduzir o eleitorado do Chega a meros números estatísticos. O homem comum, no seu papel de eleitorado, votou no Chega como se quisesse arremessar às elites bem pensantes o seu ressentimento por ter sido abandonado. Traçou as razões do seu ressentimento para que as elites refletissem acerca dos seus erros conduzidos por utopias ideológicas cada vez mais distantes da realidade das suas vidas. O populismo apenas se serviu dessa classe ressentida com a traição das elites vistas como se vivessem num mundo privilegiado. Ventura aproveitou-se como um avatar desse corpo social raivoso. 

Uma coisa é científica: não se combate este fenómeno populista com qualquer tipo de censura. Não deixando de ser um grande desafio, tal propósito tem de passar por uma receita que consiga reabsorver, trazer de volta para o chão democrático de Abril as pessoas ressentidas pelo abandono. Não se vence o populismo com censura, arrogância ou pedagogia moral, mas com empatia social, coragem política e reforma institucional. Ou, dito de forma simbólica: o homem comum precisa de voltar a sentir que o Estado o ouve e protege, sem demagogias e muito menos humilhações.

O erro da elite política e mediática tem sido olhar para esse setor da sociedade com relativismo e desprezo, como se se tratassem dos “nossos deploráveis”, que por natureza são reacionários, xenófobos e analfabetos políticos. Isso reforça o ressentimento, porque confirma o sentimento de humilhação. O caminho é o contrário: reconhecer o sofrimento real, a perda de segurança e de estatuto, e criar discursos de pertença sem sobranceria nem moralismos. Em vez de perder tempo com o Chega, deve-se conversar diretamente com essas pessoas, ouvi-las e compreende-las. 
É devolvendo dignidade que se verga o populismo que promete às pessoas vingança. As pessoas não se interessam por estatísticas que não conseguem explicar os seus problemas reais. E muito menos compreendem o jargão asséptico do politicamente correto. O antídoto para o veneno populista não é o moralismo. É a política como projeto transformador e empático. Portugal precisa de um discurso reformista que una mérito e solidariedade, sem demonizações.

Ou seja, o eleitor do Chega não é conquistado com sermões de uma moralidade utopista, mas com respeito, clareza e propósito. Essas pessoas votam no Ventura porque acreditam nele. Porque compreendem a sua linguagem. As pessoas que se voltam para o Chega acreditam que o sistema é corrupto, cúmplice e impune. Enquanto continuarem escândalos sem consequências, essas pessoas acreditam que os políticos do dito "sistema" vivem num mundo corrupto. E que os fautores desse mundo foram os partidos políticos de esquerda. E os resultados estão à vista. Pois se, em democracia o povo é quem mais ordena, foi o povo que colocou neste momento "as esquerdas" pelas ruas da amargura. E isso faz com que se sintam abandonados, esquecidos. 

O ressentimento que Ventura explora é legítimo na origem, mas falso na direção. Este retrato nu e cru é o retrato de um país que há demasiado tempo deixou de se reconhecer. O seu ressentimento nasce da humilhação de quem se sente invisível perante elites que falam em jargão, vivem numa bolha privilegiada e já não parecem partilhar o mesmo destino coletivo. André Ventura percebeu esse silêncio social e devolveu-lhe voz, ainda que distorcida, com grande gritaria. Transformou essa gritaria num programa político. O problema é que essa gritaria vai ao encontro das angústias dessas pessoas, que se sentem respeitadas por isso. Ora, o que Ventura promete não é algo que se possa oferecer, porque é apenas proclamação vingativa. Que não é mais do que uma catarse fácil que não cura e apenas inflama.

As elites erraram com o seu paternalismo moral. Foi a crença de que bastava educar melhor para que o povo acreditasse. Mas o que o homem comum pede não é pedagogia, é respeito. E só o reencontro entre respeito e esperança pode reconstruir o elo partido entre governantes e governados. Não se vence o populismo pela censura. Muito menos com escárnio à moda de Ricardo Araújo Pereira. Mas pela coragem de compreender o seu apelo. E partir da compreensão direcioná-la para um horizonte de esperança com dignidade. Quando a política voltar a falar com conhecimento de causa, com o conhecimento dessa "alma malvada", ou seja, o que essas pessoas pensam e julgam à margem de números estatísticos. Nada acontecerá de bom enquanto as elites mediáticas não se reconhecerem ao espelho = carne humana feita da mesma massa do macho lusitano.

O país, ao espelho, vê-se cansado, esquecido e humilhado. O país é o homem que trabalhou a vida inteira, pagou os seus impostos, criou os filhos com esforço, e hoje, sente que o Estado o deixou sozinho. Durante demasiado tempo, as elites políticas e mediáticas olharam para ele de cima. Ora, quando o respeito desaparece, aparece o ressentimento. André Ventura soube explorar esse vazio. Deu voz à revolta, mas transformou essa voz em gritos, em obscenidades. Mas é errado tentar calá-lo. 
O país já não acredita na justiça institucional que deixou de dar o exemplo. O mundo mudou depressa demais e sente que ficou para trás. Falta coragem política. Coragem para reformar um Estado que se cristalizou numa elite instalada nos seus interesses corporativos e sindicais, indiferentes aos "abandonados" que deixaram de ver reconhecido o mérito no fruto do seu trabalho. A verdadeira cobardia tem estado naqueles que se mediocrizaram nas utopias hostis à realidade do homem comum.

Durante décadas, acreditou-se que o progresso material do betão, das autoestradas, bastava. Que bastaria pôr as estradas no mapa para que a alma do país se encontrasse. Mas a alma não se constrói com betão. O homem comum ficou no caminho, vendo o poder transformar-se em técnica, e a política em soberba. É desse silêncio longo que nasce o ressentimento. André Ventura apenas o recolheu. E deu-lhe uma chama, que não aquece, mas queima. É o fogo breve da vingança, que ilumina apenas por um instante. As elites, confortadas com arrogância nas certezas ideológicas, olharam para esse incêndio com desdém. Não entenderam que o populismo é o eco do vazio que elas próprias criaram. E o vazio, quando não é preenchido com sentido de vida, dá lugar ao medo. O homem comum não pede muito: apenas que o vejam. Que a justiça não se dobre aos poderosos, que o trabalho com mérito seja valorizado com respeito. Que as elites não falem como se fossem só Lisboa, mas com sentido de pertença a um chão, que não seja só comum na retórica das palavras, chamado Portugal.

Nos últimos anos, Portugal tem assistido a um fenómeno singular: a emergência de vozes que, vindo da periferia social e simbólica, conseguem traduzir o ressentimento acumulado de amplas camadas da população. André Ventura e o Chega não inventaram este descontentamento, mas souberam dar-lhe visibilidade e barulho, ainda que de modo áspero e incendiário.

domingo, 2 de novembro de 2025

O homem ressentido



André Ventura constrói-se – e é percebido – como uma espécie de avatar do “homem comum” português, mas não de um “português genérico”: trata-se, sobretudo, do homem ressentido, de classe média-baixa ou média insegura, que sente ter perdido lugar num mundo em mutação, tanto económica como culturalmente. Ventura dá voz àquela figura que se sente preterida por um sistema que favorece elites urbanas, tecnocráticas e cosmopolitas – elites que, de facto, vivem uma realidade muito diferente.

O “homem comum” sente-se invisível e desrespeitado. E Ventura aparece como aquele que o reconhece e o vinga simbolicamente, desafiando os códigos do politicamente correto, falando “sem filtros”, e atacando precisamente os que esse eleitor vê como cúmplices do seu declínio.

O seu discurso e o seu imaginário são profundamente masculinos, baseados em códigos de honra, força, confronto e estatuto. A mulher aparece, em geral, num papel mais secundário ou moralmente simbólico (a mãe, a vítima, a protetora da família), mas raramente como sujeito político central. Ventura é o espelho invertido do homem português médio: rude, direto, conservador, cansado da moral das elites e, por isso mesmo, perigoso para elas. Ele traduz o grito de uma masculinidade ferida e de uma classe desprovida de prestígio, que as elites intelectuais muitas vezes olham com ironia ou paternalismo.

Pierre Bourdieu falava da “miséria simbólica” das classes populares e médias-baixas – ou seja, do sentimento de invisibilidade social, de falta de reconhecimento e prestígio. Quando a economia, a cultura e o discurso público se tornam dominados pelas elites cosmopolitas, altamente escolarizadas e urbanas, o homem das periferias, do campo, ou do subúrbio, sente-se despossuído do seu capital simbólico: já não é o chefe da família, o provedor, o trabalhador respeitado. O que surge, então, é o fenómeno da virilidade dominada – o homem que ainda acredita em valores tradicionais (força, honra, lealdade, autoridade), mas vive num mundo que já não os legitima. Ventura canaliza esse mal-estar: ele reabilita a virilidade humilhada, o orgulho masculino ferido, transformando-o em revolta política. O seu discurso “sem papas na língua” funciona como vingança simbólica contra um sistema que esse homem sente que o censura, ridiculariza e exclui. Neste sentido, Ventura encarna a inversão do estigma: aquilo que antes era considerado “atraso” (ser rude, autoritário, desconfiar do politicamente correto) torna-se, na sua retórica, autenticidade e coragem. O homem que se sentia invisível passa a sentir-se representado e até glorificado.

Ventura encarna o arquétipo do “guerreiro ferido” ou “guerreiro ressentido” = uma forma sombria do herói masculino que luta contra um mundo que considera corrompido e injusto. Este arquétipo surge sempre em tempos de crise civilizacional, quando as antigas certezas (autoridade, religião, trabalho, pátria) perdem o seu poder de coesão. O “guerreiro” sente-se traído pelas elites e despojado de um propósito coletivo. No caso português, isso é amplificado por um fundo cultural: o homem português foi educado num imaginário de estoicismo, sacrifício e obediência à ordem (do Império à ditadura salazarista). A democracia trouxe liberdade, mas também incerteza, fragmentação e perda de um papel social claro para o masculino. Ventura reaparece como aquele que restabelece a ordem simbólica — que promete devolver ao homem comum a sensação de ser novamente o centro da história, o sujeito ativo, e não o objeto passivo das decisões “lá de cima”. Ventura ativa a “sombra coletiva” – os impulsos reprimidos da sociedade, o ressentimento, o medo, a raiva – e dá-lhes forma discursiva e política. O problema é que essa sombra, quando não é integrada, tende a transformar-se em destrutividade ou intolerância.

Assim, Ventura é simultaneamente espelho e sintoma: espelho do homem comum que perdeu o seu lugar e quer reconhecimento; sintoma de uma sociedade que não soube integrar a crise do masculino nem criar novos modos de dignidade para quem não pertence às elites simbólicas. Ele não é a causa do mal-estar – é o canalizador de uma energia social latente. E enquanto as elites continuarem a tratar esse “homem comum” com condescendência ou ironia, Ventura continuará a prosperar como o seu avatar político e emocional. É precisamente aí, na ausência simbólica do feminino, que o fenómeno Ventura ganha a sua densidade mais profunda, porque o “homem comum” que ele encarna e mobiliza só se compreende plenamente através da relação truncada com o feminino, tanto na esfera individual como na social.

Analisando esta “persona” pelo lado do nível psicológico/arquetípico – todo o homem traz dentro de si um princípio feminino interior – a Anima – que representa a sensibilidade, a empatia, a intuição e a capacidade de relação. Ora, quando esse princípio é reprimido, o resultado é uma masculinidade defensiva, ressentida, que tenta afirmar-se por oposição ao que considera “fraco”, “mole” ou “sentimental”. É exatamente esse padrão que Ventura ativa: o homem que teme o feminino, porque o identifica com vulnerabilidade, submissão ou desordem. A sua linguagem agressiva, a teatralidade do confronto, a exibição constante de força e autoridade. Tudo isso é, de facto, uma máscara (persona) construída para esconder a fragilidade de uma identidade em crise.

Num plano social, o que está em jogo é a redistribuição simbólica de poder nas últimas décadas. As sociedades democráticas e liberais deslocaram do centro da vida pública a autoridade patriarcal. O discurso dominante passou a valorizar a empatia, a inclusão e o diálogo, traços tradicionalmente associados ao feminino. O “homem comum” sente-se, assim, destronado. Não apenas economicamente, mas simbolicamente. Ventura fala para esse sentimento: ele reintroduz, na linguagem política, uma forma de masculinidade hierárquica, em que o “mando”, o “castigo” e a “lei” recuperam o protagonismo. É por isso que neste imaginário a mulher ideal é simbólica, não política: é a mãe, a mártir, a protetora dos filhos, nunca a dirigente, intelectual, ou a legisladora.

Portugal tem um longo lastro de masculinidade moralista e clerical, herdada tanto do catolicismo tradicional quanto do salazarismo. O pai representava a autoridade, e a mãe, a devoção. Com o declínio dessas estruturas, o homem comum perdeu o espelho do “pai” – e ficou órfão de um modelo viril legítimo. Ventura surge como uma figura paternal substituta, que promete restaurar a autoridade perdida e proteger a “família” ameaçada. No fundo, ele não é apenas o avatar do homem comum; é também o fantasma do pai que regressa, para disciplinar o caos e restaurar a hierarquia. Mas – e aqui está o paradoxo – esse pai regressa sem mãe. O seu poder é estéril, porque carece de mediação, compaixão e equilíbrio. É o retorno da Lei, mas sem Amor. E, portanto, condenado a gerar medo e não comunhão. Enquanto o imaginário coletivo português não integrar o feminino como princípio de sabedoria e não apenas como função biológica ou moral, figuras como Ventura continuarão a servir de válvula de escape a um inconsciente social que se sente castrado e abandonado.

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Biblioteca

 


Biblioteca - Maria Helena Vieira da Silva
Centro Georges Pompidou - Paris


Maria Helena Vieira da Silva, ao regressar do Brasil, onde ela e o marido, o pintor húngaro Arpad Szenes, se tinham refugiado durante a guerra, pintou Biblioteca. Não participa nos debates da cena parisiense sobre abstração e figuração, tendo-se dedicado à elaboração do seu mundo pictórico interior, continuando a sua investigação sobre a composição através de um novo tipo de conceção espacial. O tema da biblioteca, perseguido entre 1949 e 1984, em paralelo com os do estúdio, da floresta, da água e, sobretudo, da cidade, permite-lhe imaginar um espaço instável, labiríntico, um universo borgesiano que recorda também as visões delirantes das prisões de Piranesi. Um jogo de diagonais dividindo o espaço e criando uma sensação de descontinuidade e vertigem, reforçado pela repetição de uma simples unidade colorida. A biblioteca evoca não só o "sentido do labirinto" (René Char), tão particular da artista, mas também a conivência entre perspetiva e perceção. Biblioteca, em 1949, foi o início de um novo tipo de concepção espacial, recriando a perspectiva clássica numa multiplicação de pontos de fuga.

Biblioteca em Fogo

A Biblioteca em Fogo é uma pintura a óleo sobre tela criada em 1974 pela pintora portuguesa da moderna escola de Paris Helena Vieira da Silva (1908-1992) e que pertence à coleção do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

A obra integra-se na temática das bibliotecas que Vieira da Silva periodicamente tratou, mas sem uma preocupação de série, antes desenvolvendo ou reelaborando as obras em várias direcções. Noutra pesquisa da definição do espaço e numa fase mais matura do percurso da Artista, A Biblioteca em fogo (La Bibliothèque en feu) constitui outro exemplo notável de estruturação do espaço, tendendo a grelha a suplantar a perspectiva.





quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A cortesia e o processo civilizacional


O termo cortesia, no âmbito do comportamento humano, refere-se a qualidade de uma pessoa que é cortês. Pode significar uma maneira delicada e civilizada de agir, cumprimentar ou mesmo um gesto de doação ou favor para outra pessoa. A cortesia também dá importância à maneira de expressão, ação e gestos. A cortesia espera o momento oportuno para expor e defender as suas convicções, concordando ou discordando gentilmente. A expressão popular "fazer cortesia com o chapéu do outro" é utilizada pejorativamente quando alguém consegue admiração usurpando um ato que foi de outro.

De civilitate morum puerilium ("Sobre a civilidade nas crianças") é um manual escrito por Erasmo de Roterdão, e é considerado o primeiro tratado na Europa Ocidental sobre a educação moral e prática das crianças. Publicado pela primeira vez em 1530 foi endereçado a Henrique de Borgonha, de onze anos, filho de Adolfo, Príncipe de Veere, e dá instruções, em latim simples, sobre como um menino se deve comportar na companhia de adultos. O livro alcançou sucesso imediato e foi traduzido para vários idiomas. O livro é dividido em 17 secções, cada uma tratando de um aspecto do comportamento.

Norbert Elias refere-se a este livro em sua obra mais influente, O Processo Civilizacional, afirmando que o facto de Erasmo ter usado o termo francês - "civilité" - foi a palavra chave para a reformulação do processo em curso do Renascimento a caminho do que se passou a designar no Ocidente por civilização. No processo de transformação e renovação, que caracterizou o Renascimento, houve uma modificação nos comportamentos humanistas em relação ao que era considerado conveniente ou inconveniente. Mas não se tratou verdadeiramente de um corte como a Corte, uma vez que a palavra "cortesia" remetia para as exigências já estabelecidas pelas elites nobres da Idade Média. Civilitas era a pedra de toque da boa conduta em sociedade. Prosseguia, portanto, em muitos aspetos, com a tradição da courtoisie. A tendência mais acentuada dos humanos para observarem o Si e o Outro, era um dos indícios de como toda a questão do comportamento tomava doravante outra forma. Os humanistas proclamavam que os humanos passariam a mudar as suas maneiras na relação de uns com os outros.

A partir do Renascimento, devido aos humanistas, de que Erasmo é paradigma, passou-se a ser diferente no trato e nos costumes. Passou-se a exercer uma exigência mais enérgica no campo das boas maneiras. Erasmo reuniu, numa obra em prosa, regras de comportamento que anteriormente eram ditas principalmente em verso, como se fossem mantras ou mnemónicas. Depois, lentamente, aqui mais cedo ali mais tarde, e quase por todo o lado, verificou-se, durante o século XVI, e princípios do século XVII, o restabelecimento de uma hierarquia social mais rígida, que levou ao aparecimento de uma nova camada social a que hoje chamamos elites. Era, por assim dizer, uma nova aristocracia composta de elementos de diferentes origens da sociedade. É exatamente isso que dá nova acuidade à questão da uniformidade da boa conduta, tanto mais que a modificação da estrutura por uma nova camada no nível superior expôs cada um dos seus membros à pressão dos outros, com um controlo social num grau sem precedentes. Neste contexto se inserem os livros de maneiras de Erasmo, de Castiglione e de outros.

Compelidas a viver de uma nova forma as pessoas tornam-se mais sensíveis aos estímulos das outras. Torna-se mais apurada a sensibilidade para o que se deve fazer ou não fazer, a fim de não ferir nem chocar os outros. E, de acordo com as novas relações de domínio, o preceito social de não ofender, em relação à fase precedente, Tornou-se mais vinculativo. As regras da cortesia também prescrevem: "não digas nada que possa provocar desavença, que possa irritar outras pessoas"; "está atento meu filho às boas maneiras quando estiveres à mesa em qualquer sociedade" seja o teu tanto tão social tão sociável que Toda A Gente te ache digno de louvor pois consoante o teu comportamento assim as pessoas censuram ou te darão elogios”

É difícil distinguir o radicalismo da oposição entre civilização e natureza. É algo mais do que uma manifestação da opressão das próprias psiques civilizadas, ou seja, um desequilíbrio específico no psiquismo surgido na fase mais recente da civilização ocidental. Seja qual for o psiquismo humano desde os primórdios, não é menos marcado pela História, ainda que se desconheça  sua própria história. 
Na evolução humana não existe o ponto zero da sociabilidade. Seja entre os povos primitivos como entre os civilizados, a sociedade é que dá forma às interdições. Ou seja, aos medos ao prazer e ao desprazer, à repugnância e ao encantamento. É, portanto, no mínimo pouco claro, o que se pretende significar quando se opõe o padrão dos chamados primitivos considerados naturais aos civilizados. Tratando-se das funções psíquicas, os processos da natureza e os processos históricos concorrem de maneira indissociável.

Norbert Elias, no segundo volume - Formação do Estado e Civilização -, olha para as causas desses processos e encontra-os no Estado Moderno cada vez mais centralizado e na rede cada vez mais diferenciada e interconectada da sociedade. Quando o trabalho de Elias encontrou uma audiência maior na década de 1960, num primeiro momento a análise do processo foi mal interpretada: como uma extensão do desacreditado "darwinismo social". A ideia de "progresso" ascendente foi descartada ao lê-lo como história consecutiva em vez de uma metáfora para um processo social. Logo ficou óbvio que Elias não defendia uma "superioridade moral". Em vez disso, ele descreve a crescente estruturação e restrição do comportamento humano na história europeia, um processo denominado como "civilização" por seus próprios protagonistas. Elias tinha apenas a intenção de analisar este conceito, e o processo apelidado de civilização.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

O corpo moral das deepfakes. Semiologia da pureza e da culpa no ativismo mediático


O médico clínico, que exercita o seu "olho clínico", tem mais facilidade de distinguir o original de uma deepfake. Olho clínico é uma antiga expressão aplicada aos médicos que tinham a capacidade de identificar, rapidamente, uma doença, mesmo sem dispor de bons recursos para se chegar a um diagnóstico. Constitui-se em complexo processo cognitivo em busca do diagnóstico, de forma consciente ou inconsciente, rápido, capaz de identificar indícios e encontrar pistas para tirar as melhores conclusões tanto com relação à doença como ao paciente. Não é adivinhação ou intuição e, se a tomada de decisão for correta, pode-se dizer que o médico tem "olho clínico". Este artigo é uma breve nota que faz a transposição da semiologia clínica para a semiologia simbólica num campo mais alargado conhecido por semiótica.

Deepfakes (uma junção de 'deep learning' e 'fake') -- são imagens, vídeos ou áudio que foram editados ou gerados usando inteligência artificial, ferramentas baseadas em IA ou software de edição de áudio e vídeo. Eles podem retratar pessoas reais ou fictícias e são considerados uma forma de construção sintética mediática, ou seja, criação por parte sistemas de inteligência artificial, combinando vários elementos de artefacto mediático.


Embora o ato de criar conteúdo falso não seja novo, os deepfakes aproveitam exclusivamente as técnicas de aprendizagem de máquina e inteligência artificial, incluindo algoritmos de reconhecimento facial e redes neurais artificiais, como autocodificadores variacionais (VAEs) e redes adversárias generativas (GANs). Por sua vez, o campo da análise forense de imagens tem trabalhado para desenvolver técnicas para detectar imagens manipuladas. Os deepfakes atraíram ampla atenção por seu uso potencial na criação de material de abuso sexual infantil, vídeos pornográficos de celebridades, pornografia de vingança, notícias falsas, boatos, bullying e fraude financeira.

Do entretenimento tradicional aos jogos, a tecnologia deepfake evoluiu para ser cada vez mais convincente e disponível ao público, permitindo a interrupção das indústrias de entretenimento e média. Em resposta, a indústria de tecnologia da informação e os governos propuseram recomendações e métodos para detectar e mitigar o seu uso. A pesquisa académica também se aprofundou nos fatores que impulsionam o engajamento de deepfake online, bem como possíveis contramedidas à aplicação maliciosa de deepfakes.

No ativismo contemporâneo que circula nas redes sociais, o gesto substituiu o argumento. E o corpo, como liturgia, tornou-se o principal veículo da moralidade pública. O novo espaço público mediático favorece a performance em detrimento da reflexão. Estamos perante a semiologia de um mundo moralmente exausto, saturado de emoções. Nas atuais sociedades contemporâneas as emoções tornaram-se ruído. A confusão entre compaixão e complacência transformou o sentido de responsabilidade em “moral do espetáculo”.

Medicina e fotografia ensinam uma coisa em comum: a atenção ao real. O olhar clínico e o olho fotográfico têm ambos a sensibilidade à autenticidade da presença. Aquela imperceptível vibração que a IA ainda não domina completamente. Os vídeos gerados por IA já estão a ultrapassar a fase do “quase”. Já falta pouco para que seja impossível distinguir o real do sintético a olho nu. O movimento do olhar, a luz da íris, o timbre da voz e até as imperfeições espontâneas do corpo já estão a ser modeladas por redes generativas multimodais com precisão quase biológica. O que distinguirá o verdadeiro do falso não será o olhar, mas a confiança nas fontes e nos protocolos de verificação. Uma espécie de “ética digital da autenticidade”. Paradoxalmente, a verdade deixará de estar visível e passará a ser certificada (talvez com selos de origem digital, rastreabilidade criptográfica, etc.).

Algo que a IA não terá: a intuição empática do humano real, aquela capacidade de perceber que, por trás de um rosto, há ou não há alma? A prosódia (ou intonation, como dizem os ingleses) é uma das fronteiras mais delicadas da detecção de deepfakes e vídeos gerados por IA. A prosódia inclui: ritmo da fala; ênfases e acentuações; modulação tonal e variação da frequência da voz. Pausas naturais e respirações. Esses elementos transmitem emoção, intenção, tensão e autenticidade. Mesmo que um vídeo pareça perfeito visualmente, o padrão de entonação humano é extremamente difícil de replicar de forma convincente, especialmente em discursos longos ou improvisados.

Modelos generativos de voz (como TTS avançado) conseguem produzir voz convincente em frases curtas ou roteirizadas. Mas manter consistência emocional, variação natural da respiração e micropausas de um humano real durante minutos ainda é complicado. Além disso, a prosódia humana tem microflutuações imprevisíveis que refletem cognição e emoção simultâneas. Algo que os algoritmos tendem a suavizar ou padronizar, criando um efeito “um pouco artificial” quando analisado cuidadosamente. Pesquisadores usam técnicas como: análise espectral da voz para ver padrões de frequência que não ocorrem naturalmente. Marcas de sincronização labial vs. som produzido (microdesalinhamentos são comuns em deepfakes). Ritmo e pausas comparados com padrões humanos normais. Entropia da fala: humanos têm pequenas variações imprevisíveis, IA tende a ser mais regular Combinando esses sinais com análise facial, microexpressões e gestual, torna-se possível detectar deepfakes mesmo quando visualmente perfeitos. A IA vai melhorar muito na prosódia, conseguindo simular emoção com maior naturalidade. Mas a leitura combinada -- facial, gestual, prosódica, respiratória -- ainda fornece pistas subtis que humanos treinados conseguem perceber melhor do que qualquer detector automático atual.

Uma pessoa que disfarça o seu sotaque da sua origem rural, desmascara-se com o stress ou estado emocional? Isto é uma observação que tem forte respaldo na linguística e na psicologia da fala. Um sotaque regional ou rural é um hábito motor de fala profundamente enraizado. Ao longo da vida, muitas pessoas aprendem a “neutralizar” ou disfarçar o sotaque, especialmente em contextos urbanos ou formais. Esse esforço consciente envolve controlo da articulação, ritmo, entonação e escolha lexical. Sob stress, emoção intensa ou fadiga cognitiva, o cérebro reduz a capacidade de manter a compensação consciente. Isso faz com que microflutuações do sotaque original reapareçam: vogais alongadas ou encurtadas típicas da região, ritmo da frase mais característico, entonação e cadência típicas da fala rural. Em termos clínicos, é como se o sotaque fosse um “traço motor automático emocionalmente carregado”. Aparece quando a atenção consciente diminui.

Psicólogos e linguistas chamam isso de leakage emocional linguístico (linguistic leakage). Para alguém treinado no olhar clínico e na percepção semiótica, essas microvariações são sinais de: estado emocional (stress, ansiedade, excitação) identidade de origem ou social (aquela “voz interior” que o indivíduo tenta esconder). É por isso que atores experientes, políticos e apresentadores de TV às vezes “delatam” a sua origem ou emoções em momentos de pressão. Mesmo em vídeos manipulados por IA, reproduzir essas microvariações sob stress ou emoção prolongada é extremamente difícil. Por isso, ouvindo alguém falar de forma natural e espontânea, o ouvido treinado consegue perceber pequenos “desvios” que indicam autenticidade ou tensão emocional real.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Neve, de Orhan Pamuk



É talvez o romance que melhor condensa o conflito interior da Turquia moderna: um país suspenso entre o Islão e o secularismo, entre o desejo de pertença à Europa e a nostalgia do seu próprio passado otomano. Pamuk transforma Kars, a cidade fronteiriça coberta de neve onde decorre a ação, num microcosmo da alma turca – isolada, melancólica, dividida.

Ka, o protagonista, é um poeta exilado na Alemanha que regressa à Turquia para cobrir uma série de suicídios de jovens muçulmanas impedidas de usar o véu nas escolas –símbolo supremo do choque entre a laicidade republicana e a fé islâmica. Mas a viagem de Ka é também interior: ele reencontra o país que já não compreende e o amor que nunca soube viver. A neve, omnipresente, é metáfora da pureza impossível, do silêncio e da suspensão do tempo. Uma espécie de parêntese onde tudo se torna visível, mas nada se resolve.

Pamuk mostra que a laicidade turca, imposta de cima por Atatürk, é uma construção tensa e artificial – uma “modernidade melancólica”, feita de desejo europeu e ressentimento oriental. O tom elegíaco de Neve revela a consciência de que o projeto secular não conseguiu substituir o papel espiritual da religião, mas também que o retorno ao fanatismo é uma forma de desespero. Ka, dividido entre a razão e o sentimento, acaba por encarnar a própria Turquia: um homem sem chão, condenado a olhar para o Ocidente com inveja e para o Oriente com saudade.

O espelho é inquietante. A Europa secular, que já foi modelo para a Turquia de Kemal Atatürk, vive agora a sua própria melancolia: perdeu a fé na sua vocação moral e universalista, e vê crescer, nas suas margens e dentro de si, a mesma tensão entre laicidade e identidade. O vazio espiritual que atravessa Neve ecoa hoje nas sociedades europeias. Não mais entre o Islão e o cristianismo, mas entre o racionalismo técnico e a necessidade de sentido. Pamuk pressente, com trágica lucidez, que o problema não é a religião nem o secularismo, mas a solidão metafísica do homem moderno, privado de transcendência. A neve de Kars cai, branca e silenciosa, sobre a Turquia. Mas também, metaforicamente, sobre a Europa inteira.

Em Neve, Orhan Pamuk transforma a cidade de Kars – isolada pela tempestade, branca e muda – num espelho da alma turca, dividida entre o legado otomano e a promessa europeia. O romance é, à primeira vista, uma narrativa política sobre o conflito entre laicidade e fé, mas, em profundidade, é um retrato metafísico da melancolia de um país que já não acredita plenamente em nada. Ka, o poeta exilado na Alemanha que regressa à Turquia, parte como observador racional: vai investigar os suicídios de jovens muçulmanas proibidas de usar o véu nas escolas. Contudo, à medida que a neve o envolve, a objetividade do repórter dissolve-se. O frio e o silêncio tornam-se metáforas do desencanto espiritual de um homem que, como a própria Turquia, perdeu a fé na modernidade e não consegue regressar ao consolo da tradição.

Pamuk revela com subtileza o paradoxo da laicidade turca. Kemal quis criar um Estado europeu no corpo de uma nação asiática, substituindo o sagrado pela Razão e o Imã pelo Cientista. Mas essa modernidade imposta de cima deixou um vazio: quando a religião é afastada à força, o espaço que ela ocupava na alma não desaparece – apenas se converte em melancolia. Kars, na ficção de Pamuk, é o retrato desse impasse: uma cidade coberta pela pureza aparente da neve, mas onde se acumulam o medo, o desejo e o ressentimento. A “melancolia turca” de Neve é, no fundo, o pressentimento de uma crise que já é europeia. Hoje, a Europa vive a mesma fadiga espiritual que a Turquia ensaiou sob a neve. Laica, racional e tecnocrática, já não acredita nas grandes narrativas que a fundaram – nem cristãs, nem iluministas –, e observa com desconforto o regresso das identidades religiosas e nacionais que julgava ultrapassadas. Em Pamuk, a fé e a descrença não são inimigas, mas irmãs tristes: ambas procuram um sentido que se esvaiu. O islão, que regressa como refúgio, e a laicidade, que sobrevive como hábito, partilham o mesmo destino de orfandade. Assim também a Europa, que quis ser universal, descobre-se provinciana e exausta.

A neve que cai sobre Kars, branca e imaculada, simboliza essa suspensão do tempo em que nem o Oriente nem o Ocidente conseguem avançar. É o instante em que o homem moderno reconhece que o secularismo não cura a sede de transcendência, e que o retorno ao sagrado não basta para restaurar o sentido. Pamuk não oferece soluções; oferece o frio. No seu mundo, a neve é a forma visível do silêncio de Deus. Um silêncio que cobre igualmente Istambul e Berlim, Kars e Paris. É nesse silêncio que a modernidade se escuta a si mesma, tentando ainda acreditar que, debaixo da neve, algo pulsa.

Essa mesma pulsação subterrânea pode ser ouvida noutros escritores europeus da melancolia moderna. Em W. G. Sebald, o tempo congela sob o peso da memória e da culpa histórica; em Michel Houellebecq, a descrença torna-se tédio e pornografia emocional; em Peter Handke, o homem contempla o mundo com uma nostalgia que já não tem objeto. Pamuk partilha com eles a consciência de que o secularismo ocidental, ao libertar o homem de Deus, o deixou só diante do nada. Entre a neve de Kars e as paisagens desoladas de Sebald ou Houellebecq corre o mesmo fio: a modernidade como inverno espiritual. E talvez seja esse o grande mérito de Neve: mostrar que, sob diferentes geometrias culturais, turcos e europeus habitam o mesmo crepúsculo.

Lei sobre a ocultação do rosto em espaços públicos


O Parlamento de Portugal acaba de aprovar um projecto-lei para banir a ocultação do rosto em espaços públicos. A iniciativa está ainda sujeita a aprovação e possivelmente a verificação do Tribunal Constitucional. Exceções previstas: aviões, dependências diplomáticas, locais de culto, razões de saúde, segurança, condições climáticas. De imediato se relacionou essa iniciativa com o uso da burca ou nicabe e com o facto de a iniciativa ter partido do partido CHEGA. Mas logo no artigo 2º é dito, de forma clara, o que se pretende – é proibida a utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto. E diz mais, é proibido forçar alguém a ocultar a face por motivos de género ou religião. Assim, não estão abrangidas as formas de expressão islâmicas que se revelam através do Chador, da Al-Amira, do Hiyab ou da Shayla, todos eles resultantes, aparentemente, das imposições islâmicas. O diploma inova no que se refere à previsão penal. Assim, a ameaça, a violência, o constrangimento, o abuso de autoridade ou o abuso de poder, por causa do seu sexo, promovidas por alguém que force uma ou mais pessoas a esconder o rosto, são punidos nos termos da lei penal e por inobservância dos artigos 26º e 27º da Constituição. Uma das questões que os jornalistas e comentadores mais têm colocado prende-se com os direitos humanos. Estará este escrito em conformidade com a Declaração Universal? Olhando para o texto discutido pelos deputados portugueses e comparando-o com a legislação em vigor em França, o primeiro país europeu a aprovar diplomas sobre a matéria, sempre se poderá dizer que a lei francesa é muito mais abrangente e com mais proibições.

A iniciativa permitirá, a partir de agora, deter e cadastrar todos os manifestantes das extremas direitas que se passeiam em grupo com as caras tapadas e dará condições, às polícias, para “levarem pela orelha” os integrantes de claques de futebol, promotores do terror nas margens das cidades, que se apresentam de balaclava. Se o efeito da lei poderá ser pouco quanto às burcas e nicabes, porque em Portugal haverá pouquíssimas mulheres que circulam em espaços públicos com a cara tapada, autorizará aos agentes da autoridade o trabalho que importa no âmbito do banditismo. As esquerdas cometem o erro preconceituoso de se oporem à lei simplesmente por ter sido da iniciativa de um parido conotado com a direita radical. Tal posição resulta de um flagrante empobrecimento do pensamento sobre a essência das coisas.


Há uma realidade social e religiosa, em muitos estados muçulmanos, que obriga as mulheres a taparem todo o corpo. Vários países islamitas caminharam no sentido de proibir essas imposições porque o entendimento do chamado Hijab tem duvidosa sustentação teológica. Em muitos territórios islâmicos e em comunidades espalhadas pelo mundo, criaram graves problemas de segurança. Em muitos países europeus existem proibições (totais ou parciais) ao uso do véu integral, como burca ou nicabe. Ou seja, véus que cobrem todo o rosto ou praticamente tudo. Por exemplo, França foi o primeiro país da União Europeia a aprovar, em 2010, uma lei que proíbe o véu islâmico no espaço público. O que inclui burca/nicabe. Outros países que também impuseram restrições ou proibições incluem: Bélgica, Áustria, Dinamarca, Países Baixos.

Os defensores das leis de proibição frequentemente argumentam que cobrir o rosto impede identificação (motivo de segurança ou de coesão social) e pode ser interpretado como símbolo de opressão da mulher. Por outro lado, críticos dizem que tais leis podem discriminar mulheres muçulmanas, limitar a liberdade de religião/expressão, e criar alienação ou estigmatização de comunidades. O equilíbrio entre liberdade religiosa e outros valores (secularismo, igualdade, segurança) é sujeito de intenso debate. A questão da neutralidade do Estado/instituições públicas é relevante: por exemplo, escolas ou funcionários públicos podem ter regras que visam “símbolos religiosos visíveis” (mais amplo que apenas véus) com base em ambiente neutro.

A tendência na Europa parece ser de maior regulação do uso de véus que cobrem o rosto, em especial sob o argumento de integração, segurança, identificação, coesão social. Ao mesmo tempo, existe ainda uma forte divisão — entre países que adotam leis mais restritivas e outros que mantêm maior liberdade. Mesmo dentro de países, o contexto importa (estado/região, instituições, público vs privado). O véu torna-se símbolo da visibilidade ou invisibilidade de uma identidade religiosa/minoritária. O Estado, ou a sociedade, por maioria, responde com leis ou debates sobre “o que é aceitável no espaço público”. Ou seja, “quanto da identidade privada/religiosa se pode transpor para o espaço público?”. É a tensão entre liberdade individual e a integração em coesão social.


quarta-feira, 22 de outubro de 2025

François Rabelais


François Rabelais - de pintor desconhecido

François Rabelais (também conhecido por dois anagramas de seu nome: Alcofribas Nasier ou Serafin Calobarsy - humanista francês do Renascimento - nasceu em La Devinière in Seuilly, perto de Chinon (na antiga província de Touraine), em 1483 ou em 1494, dependendo das fontes; morreu em Paris em 9 de abril de 1553. Eclesiástico cristão, mas anticlerical, é considerado por alguns um livre-pensador com imagem de um bon vivant. As muitas facetas da sua personalidade, incluindo o seu estatuto de médico, não deixam ninguém indiferente, com todas as contradições e polémicas que se lhe possam apontar. Foi apanhado nas grandes turbulências, não apenas políticas, mas também religiosas. Como um humanista da Renascença e da Reforma, Rabelais foi sensível e crítico das grandes questões de seu tempo. Posteriormente, as visões sobre sua vida e obra evoluíram de acordo com os tempos e correntes de pensamento.

Admirador de Erasmo, também um grande mestre da paródia e da sátira, Rabelais lutou pela tolerância, pela paz, pela fé evangélica e pelo retorno ao conhecimento da antiguidade greco-romana, para além das "trevas góticas" que ele acreditava caracterizar a Idade Média. Foi um grande apologista dos clássicos gregos, retomando as teses de Platão para combater os excessos do aristotelismo. Ele atacou os abusos de príncipes e homens da Igreja, e se opôs a eles. Foi, por conseguinte, um intelectual erudito, e ao mesmo tempo evangélico da cultura popular, não abdicando de exprimir o seu lado obsceno, irónico, satírico e humorista. Um verdadeiro "dionisíaco" (no sentido de Baco) marcado pelo gosto do vinho, pelo gosto dos jogos lúbricos, manifestando assim uma fé cristã humilde e aberta, longe de qualquer peso eclesiástico.

Sua acusação aos teólogos da Sorbonne,  e as suas expressões grosseiras, às vezes obscenas, trouxeram-lhe a ira da censura das autoridades religiosas, especialmente após a publicação do Terceiro Livro. Ele compartilhou com o protestantismo a crítica da escolástica e do monaquismo, mas o reformador religioso, João Calvino, também o atacou em 1550. As suas principais obras: Pantagruel (1532) e Gargântua (1534). São um conjunto de crónicas, contos com personagens de gigantes, paródias heróico-cómicas, e romances épicos de cavalaria prefigurando o romance realista, satírico e filosófico. São consideradas as primeiras formas do romance moderno.

Aqui fica um excerto do Gargântua com o título: A invenção dos limpa-cus
Abrilhantado com figuras satíricas desenhadas, que fazem parte do livro - História do Feio - sob direção de Umberto Eco:


«Inventei» – respondeu Gargântua –, «com longas e diligentes experiências, um meio para limpar o cu, o mais nobiliárquico, o mais excelente jamais visto.» «E qual?» - perguntou Grangola. «Isto que vos contarei imediatamente» - respondeu Gargântua. «Tentei limpar-me uma vez com a mascarilha de veludo de uma donzela e verifiquei que andava bem, porque a suavidade da seda me provocava realmente um grande prazer ao assento; outra vez, com um capuz da mesma e com o mesmo resultado; outra vez com uma écharpe de pescoço. Curei-me daquele mal, limpando-me com o barrete de um pajem com uma bela pluma em cima, à tirolesa. Depois, cagando atrás de uma sebe, onde encontrei um gato marçalino, experimentei limpar-me com ele, mas as suas garras ulceraram-me todo o perineu. Disso guareci na manhã seguinte, limpando-me com as luvas da minha mãe, bem perfumadas com benjoim. Depois limpei-me com a sálvia, o funcho, o anis, a manjerona, as rosas, as folhas de abóbora, de beterraba, de couve, de videira, de malva, de verbena (que é como o bâton do cu), de alface e com as folhas de espinafres – tudo coisa que me fizeram um grande bem aos calos! – e, depois, com a erva mercurial, a erva pessegueira, as urtigas e a consolda; mas veio-me a caganeira dos Lombardos, de que me curei limpado-me com a braguilha. «Bem» - disse Grangola «mas que limpa cus te pareceu melhor?

«Em conclusão, afirmo que sustento que não há melhor limpa-cus que uma papoula bem plumada, desde que se tenha o cuidado de manter a sua cabeça no meio das pernas. E podeis crer, dou-vos a minha palavra! Porque sentireis no buraco do cu uma voluptuosidade maravilhosa, tanto pela suavidade das suas plúmulas com pelo temperado calor natural da papoula que facilmente se comunica à tripa cegueira, e, depois, aos outros intestinos, subindo até à região do coração e do cérebro. Gostaria que acreditasses que a beatitude dos heróis e semideuses que moram nos Campos Elíseos, não já o asfódelo ou na ambrósia ou no néctar como contam as velhinhas; mas, parece-me, em limparem sempre o cu com uma papoula, o que também é opinião do nosso João Escoto.»

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

As mundividências na arte: apolínea e dionisíaca


Segundo a mitologia, Zeus teria atribuído uma medida apropriada e um limite certo a cada ser. E essa medida teria de ser contemplada pelos que governam o mundo sob os auspícios das quatro frases escritas nas paredes do Templo de Apolo em Delfos: o mais justo é o mais belo; observa os limites; odeia a hybris; nada em excesso. É nestas regras que os gregos observavam o belo. E era este o senso comum grego da Ordem, em oposição ao Caos. sob os auspícios de Dioniso, com quem os gregos observavam o feio. Em Delfos celebrava-se o belo sob a proteção de Apolo. No frontão ocidental do Templo de Delfos figurava Apolo entre as musas.



Ruinas do Templo de Apolo: o centro do Oráculo de Delfos e Pítia com vista para o vale da Fócida



Ilustração especulativa de Delfos em seu apogeu pelo arquiteto francês Albert Tournaire

Mas neste mesmo templo (que remonta ao século IV a.C.) Dioniso é representado no lado oposto, no frontão oriental, infringindo as regras. Nietzsche viu bem isso no Nascimento da Tragédia. É esta a antítese: a apolínea, do domínio do visual; e a dionisíaca que é do domínio da música. Esta, é apanágio da desordem, o lado escuro, uma espécie de provocação ao lado luminoso, belo, que é apanágio do domínio do visual. Por conseguinte, a música, recai na esfera de ação de Dioniso. Esta diferença é compreensível, se pensarmos que uma estátua devia representar uma ideia no sentido platónico, enquanto a música era entendida como algo que suscita paixões.
Em outubro de 2024, os Museus do Vaticano reinauguraram o famoso Apolo de Belvedere, escultura emblemática do século II. Após quase cinco anos de trabalho com tecnologia de ponta, uma barra de carbono e aço inserida em sua base e fragmentos de gesso que datam dos séculos V e VI a.C. considerada a quintessência da beleza e da arte que voltou a estar disponível ao público. A peça de mármore de 2,24 metros representa o deus Apolo caminhando com o braço esquerdo estendido após disparar uma flecha com o seu arco. Havia sido descoberta em Roma em 1489 entre as ruínas de uma antiga domus e levada ao Vaticano pelo Papa Júlio II (1503-1513). Os trabalhos de restauração da obra custaram cerca de 150 mil euros, além dos 100 mil euros do projeto de renovação, e foram parcialmente financiados pelos Patronos da Arte dos Museus do Vaticano. A revitalização da estátua foi iniciada após “graves danos estruturais” terem sido detectados em 2019.


Vaso Pronomos, cerâmica ática, 410 a.C., representando uma companhia de teatro completa - com atores, um coro de sátiros, músicos, ménades e um poeta - junto com Dionísio e Ariadne, está em exposição no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles

E em São Petersburgo, no Museu Hermitage, pode ver-se um vaso com figuras vermelhas, datado de 500 a.C., que segundo diz a legenda representa Apolo e as musas. 

Chegados ao século XIV, a beleza é concebida segundo uma dupla orientação que parece contraditória, agora, mas na altura parecia coerente. A beleza passava a ser a imitação da natureza segundo regras cientificamente estabelecidas, quer como contemplação de um grau de perfeição sobrenatural, não perceptível pela visão. Vivia-se o clímax do misticismo neoplatónico gótico. Dão então entrada as artes liberais com novas técnicas pictóricas na Flandres, e a visualização tridimensional italiana. A beleza é mágica. É tempo de entrar em cena Leonardo da Vinci simultaneamente criador, inventor, e imitador da natureza. Em vez da repetição maciça das formas é o sfumato (esfumado) que torna enigmática a imagem do rosto feminino.


O conhecimento do mundo visível torna-se o meio para o conhecimento de uma realidade ordenada segundo regras logicamente coerentes. O pintor é dono de todas as coisas que podem cair no pensamento humano. É senhor de gerar a beleza nas coisas que quiser. E também de gerar coisas monstruosas, se quiser. Do ponto de vista social o Renascimento é, pela natureza das forças que o agitam, incapaz de se aquietar num equilíbrio que não seja lábil, e provisório. Entra-se aqui numa dialética entre a harmonia e a proporção das partes de que se havia ocupado Platão por influência pitagórica; e o esplendor neoplatónico que Platão havia exposto em Fedro. No Renascimento, a chamada "grande teoria" atinge um alto grau de perfeição, segundo a qual a beleza consiste na proporção das partes. Ao mesmo tempo assistimos ao surgimento de forças centrífugas que impelem para uma inquietação surpreendente. O progresso das ciências guiadas pela Matemática, com que o Renascimento havia relançado a "grande teoria", leve à descoberta de harmonias mais complexas.

Em todos os séculos, filósofos e artistas sempre forneceram definições do Belo. Por isso, graças aos seus pensamentos é possível reconstruir uma história das ideias estéticas através dos tempos. Mas a fealdade aconteceu de maneira diferente. Na maioria dos casos, definiu-se o Feio em oposição ao Belo. Mas quase nunca se lhe dedicaram tratados extensos, somente alusões paramétricas e marginais. Portanto, embora uma história da beleza se possa servir de uma ampla série de escritos teóricos, dos quais se pode deduzir o gosto de uma época, uma história da fealdade, na maioria dos casos, nunca existiu. 
Podemos somente supor que os gostos das pessoas comuns corresponderiam, de algum modo, aos gostos dos artistas do seu tempo. Neste contexto, quão desagradável, quão feia é a representação pictórica de um Cristo na Cruz ?


Dizer que belo e feio são relativos consoante os tempos e as culturas não significa que não se tenha sempre procurado vê-los como definitivos em relação a um modelo estável. Darwin relevava que o que provoca o desagrado numa dada cultura nem sempre o provoca noutra, e vice versa. Conclui que há vários indícios do desprezo e do desagrado idêntico numa grande parte do mundo. Nesse sentido, alguns filósofos interrogam-se se se poderia pronunciar um juízo estético de fealdade visto que o feio provoca reações passionais, como o desagrado descrito por DarwinEntre o feio em si e o feio formal temos a representação artística dos dois.

Em Platão, o mundo das ideias é que era o verdadeiro mundo. O real. E tudo o que existia no mundo das ideias só podiam ser belas, perfeitas. O belo era exclusivo do mundo das ideias. Portanto, o feio existiria só na ordem do sensível como aspecto da imperfeição do universo físico em relação ao mundo ideal. É na linha de Santo Agostinho, e de São Tomás de Aquino, no pensamento escolástico, que encontraremos vários exemplos de uma justificação do feio no quadro da beleza total do universo, onde também as deformidades e o mal ganham o mesmo valor. Entre luzes e sombras se manifesta a harmonia do conjunto. Diz-se que também os monstros são belos enquanto são seres. E como tais, contribuem para a harmonia do conjunto em que o pecado rompe a ordem das coisas. A ordem é restabelecida pelo castigo. Os condenados ao inferno em Dante são exemplo de uma lei de harmonia. Ou então, procurar-se-á atribuir a impressão de fealdade aos nossos defeitos perceptivos pelos quais, para alguns, o feio pode parecer por defeito, ou falta de luz. A distância; ou o olhar de viés; ou o ar do tempo nevoento: deformam o contorno das coisas.