quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Dualismo cognitivo, não ontológico


A autoconciência é diferente da consciência. A consciência em primeira pessoa é a premissa das relações interpessoais, e são dessas mesmas relações que depende a nossa natureza como pessoas. Se considerarmos os animais não humanos, apesar de muitos dos quais serem conscientes, é duvidoso que sejam autoconscientes. Tomemos o exemplo da dor. A dor é algo que podemos ver num outro, é um conhecimento que podemos ter na terceira pessoa, assim como podemos saber se alguém está alegre ou deprimido. Mas saber “como é” sentir uma dor é um conhecimento veiculado pelo entendimento, ou seja, é consciente e na primeira pessoa. “Saber como é” ter uma dor, apenas justamente o podemos saber tendo-a. A ideia da “essência de uma dor”, é algo interior, aquilo que os filósofos de língua inglesa designam por “qualia”. É a qualidade dos fenómenos internos que precisam de uma autoconsciência - 
a consciência das criaturas como nós que podem dizer o que estão sentindo - para percepção imediata e criteriosa do próprio estado fenomenológico. É esta subjetividade da existência de um self que consagra o Eu no uso da nossa linguagem. É a atribuição na primeira pessoa dos estados mentais que legitima a crença de que há algo mais no nosso estado mental consciente que está vedado aos meios externos da ciência física. O processo interno apresenta-se tal como ele é dentro de nós, e isso mostra algo que jamais pode ser observado por outro, na medida em que apenas está disponível pela via introspetiva. 

Mas há aspetos distintos no que diz respeito aos qualia. Ver a cor vermelha é uma experiência visual distinta de sentir uma dor, degustar um vinho, ou cheirar um perfume. Descrever a cor vermelha de uma maçã, por exemplo, pode ser partilhado com outros quando acompanhado de um ato ostentatório. Nós podemos mostrar a uma criança uma maçã vermelha e dizer: "isto é o vermelho", para lhe ensinar as cores. Coisas vermelhas são coisas que são assim; e ver a cor vermelha é uma experiência visual que se tem quando olhamos para alguma coisa assim. Olhar a cor vermelha é diferente de olhar a cor verde porque as coisas vermelhas são diferentes das coisas verdes. Neste exemplo de qualia há um certo carácter externo que é diferente quando falamos de dores, ou sabores, uno cenário que é totalmente interno, ainda que um observador externo possa percecionar sinais indiretos, quando os manifestamos no nosso comportamento, ou o tentamos exprimir através da linguagem. Isto vem ao encontro de John Locke, e creio já no sentido abordado por Aristóteles, sobre as qualidades secundárias. Será que elas realmente estão ali, nas coisas que parecem possuir, ou será que estão apenas na nossa cabeça?

O que se pode dizer é que existem modos de conceptualizar estas questões, que em termos filosóficos continuam ainda abertos a muita controvérsia. São usados conceitos para os quais as ciências físicas empíricas pouco podem contribuir. O que podemos fazer é acertar conceitos por acordo mútuo, no respeito por uma intersubjetividade em que a autoridade reside justamente no nível da primeira pessoa. 
Quando lhe pergunto, “O que você fará?”, a minha pergunta busca uma resposta. É algo bem diferente da pergunta “O que ele fará?”, e as duas questões não são instâncias substitutas de um simples esquema “O que x fará?”. Uma pergunta busca uma decisão, a outra busca uma previsão e, ao buscar decisão, estou me dirigindo ao Eu do outro. Para fazer isso, comprometo-me àquelas “razões independentes de desejos” formadas por conceitos que não têm papel nenhum na descrição do mundo físico: conceitos como direito, dever, justiça, virtude, pureza, que informam nossas trocas interpessoais. A pergunta “porquê”, nas relações interpessoais, não é aquele tipo de pergunta que possa ser respondida por um neurologista. O que nos interessa é o que está na mente do outro. 

O “Eu” permite identificar a mim mesmo na primeira pessoa que estou apto a viver a vida de um ser racional, e este facto me situa na rede de relações interpessoais da qual derivam os preceitos básicos da racionalidade. A ciência não me pode dizer quem eu sou. Mas as pessoas, além de serem sujeitos, também são objetos que podem ser encontrados no mundo do aqui e agora. O Eu e o Tu são do domínio da intencionalidade (na expressão da fenomenologia husserliana) ou seja, da consciência de alguém para alguém. É o mundo da vida, o mundo aberto à ação.

Há uma diferença entre o mundo vivido, o mundo que se nos manifesta, e ao qual nós reagimos por via das nossas percepções e sensações, razões e motivos que comandam as nossas ações; e o mundo da ciência, que é o relato que emerge da tentativa sistemática de explicar o que observamos. Os dois mundos não são comensuráveis. Não existem correspondências diretas entre estes dois mundos. Assim, a fenomenologia das qualidades secundárias na primeira pessoa, não figuram assim com tanta facilidade nas teorias da física, como figuram na nossa linguagem comum. Uma coisa são os qualia; outra coisa são comprimentos de onda de luz refratada. Wilfrid Sellars distingue o espaço da lei, no qual eventos são representados de acordo com as leis da física, do espaço dos afetos e razões, em que os eventos são representados de acordo com as normas de justificação e raciocínio que governam a ação humana. Esses dois pontos de vista são incomensuráveis: isto é, não podemos deduzir de um deles uma descrição do mundo como visto pelo outro. O mundo da vida é irredutível ao mundo das leis da ciência física. É o caso, por exemplo, da música. Uma sinfonia do ponto de vista do músico, ou do melómano, é incomensurável com o ponto de vista do especialista em acústica.

A autoconsciência seria sempre seria deixada para trás por parte de qualquer relato puramente físico. Seriam uma espécie de resíduo irredutível de uma explicação neurológica. As razões para isso são muitas, mas as duas mais importantes são a fenomenologia em primeira pessoa e a intencionalidade. Os dualistas cognitivos argumentam que a introspecção revela um caráter interior irredutível dos nossos estados mentais, os qualia, que não são acessíveis a qualquer teoria física. Além disso, os estados mentais têm a característica peculiar de “direcionalidade” sui generis que não podem ser reduzidos a qualquer relação entre eventos físicos ou coisas.


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