domingo, 16 de fevereiro de 2020

Eutanásia. A complexidade e os paradoxos da consciência humana


O Parlamento português, no próximo dia 20 de fevereiro, vai debater e está prevista a primeira votação na generalidade dos projetos de lei a favor da despenalização da morte assistida ou eutanásia, apresentados, desta vez, pelos partidos: Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda, PS, PAN e PEV. Todos eles limitam a eutanásia a situações excecionais e muito restritas. Para além de voluntária, ou seja, exclusivamente a pedido do próprio doente reiteradamente, o doente tem de estar numa situação que obedeça a certos critérios. É claro que esses critérios só podem ser validados medicamente, e por mais do que um médico.

Não há dúvida que qualquer aprovação de um destes projetos provoca uma mudança profunda na lei portuguesa. Mas isso não pode nem deve ser motivo para alarme ou sobressalto social. A despenalização da eutanásia (mais abaixo se especificam diferenças entre mais do que um tipo de eutanásia), que é o que o Parlamento português pretende legislar, já existe em alguns dos países mais desenvolvidos do mundo. Atualmente em Portugal, é proibida qualquer participação na morte antecipada a pedido de doentes terminais em grande sofrimento por doença incurável para a qual a medicina nada mais tem para oferecer para a mitigação desse sofrimento. Quem o fizer pode ser punido com uma pena até três anos de prisão. Todas as propostas deixam de fora os menores de idade e pessoas incapazes de tomar uma decisão inequivocamente voluntária e consciente.

O que está em causa é alguém estar a sofrer horrivelmente devido a uma doença, da qual vai morrer inexoravelmente, só não sabe quando, a passar por um sofrimento físico e psíquico insuportável, e ter a consciência clara de que esse sofrimento se irá acentuar até que a morte sobrevenha. Atualmente, em Portugal, como é punida por lei a assistência a um pedido de eutanásia, em particular por um profissional de saúde, das duas uma: ou o médico ajuda o doente a morrer clandestinamente, e se arrisca a ir parar à prisão; ou então apenas resta ao doente continuar a sofrer e sentir-se desprezado no seu sentimento de perda da sua dignidade humana. Porque para muitos não é só a dor física que é intolerável. É também a “qualidade de vida” perdida em troca por mais tempo de vida indesejado. E quanto mais rica tenha sido essa “qualidade de vida”, menos fará sentido valorizar semanas ou meses de vida adicionais. Quando começamos a sentir o vazio de toda a nossa autoestima, o fim parece perfeitamente razoável e até desejável para muitos de nós. Para muitos de nós a qualidade de uma vida digna vivida com plena autonomia, é muito mais importante que a “quantidade de vida”.

No século XVI quando Thomas More publicou a sua Utopia, More retratava a eutanásia para os que estão desesperadamente doentes como uma das instituições importantes de uma comunidade ideal imaginária. Nos séculos seguintes, os filósofos britânicos (em particular David Hume, Jeremy Bentham e John Stuart Mill) puseram em questão a base religiosa da moralidade e a proibição absoluta do suicídio, da eutanásia e do infanticídio. Eles apresentaram como principais razões a seu favor a misericórdia para com pacientes que sofrem de doenças para as quais não há esperança e que provocam grande sofrimento e, no caso da eutanásia voluntária, o respeito pela autonomia. Atualmente, certas formas de eutanásia gozam de um largo apoio popular e muitos filósofos contemporâneos têm sustentado que a eutanásia é moralmente defensável. A oposição religiosa oficial (por exemplo, da Igreja Católica Romana), no entanto, manteve-se inalterada, e a eutanásia voluntária activa continua a ser um crime na maior parte dos países. No século XVIII Immanuel Kant, embora acreditasse que as verdades morais se fundam na razão e não na religião, pensava, não obstante, que “o homem não pode ter poder para dispor da sua vida”.

Há argumentos a favor e contra a eutanásia igualmente respeitáveis, mas é necessário estabelecer algumas distinções: 

  • Eutanásia voluntária - eutanásia executada por A a pedido de B, para benefício de B. Há uma relação íntima entre a eutanásia voluntária e o suicídio assistido (praticado, por exemplo, na Suiça), em que uma pessoa ajuda outra a acabar com a sua vida obtendo o fármaco letal e colocando-o à disposição dessa pessoa para que se suicide sem a interferência de mais ninguém. Por exemplo, coloca-se um copo com a substância diluída na frente do doente, incluindo uma palhinha no caso de se tratar de um tetraplégico, e o doente sem mais ajuda de ninguém ingere o líquido contido no copo.
  • Eutanásia involuntária - Embora os casos claros de eutanásia involuntária possam ser relativamente raros (por exemplo, em que A mata B sem o consentimento de B para o impedir de cair nas mãos de um carrasco sádico), houve quem defendesse que algumas práticas médicas largamente aceites (como as de administrar doses cada vez maiores de medicamentos contra a dor que eventualmente causarão a morte do doente, ou a suspensão não-consentida do tratamento, equivalem a eutanásia involuntária.
Quer se trate de eutanásia voluntária, quer involuntária, ambas poderão ainda ser subdivididas em activa ou passivaA pode matar B, digamos, administrando-lhe uma injecção letal; ou A pode matar B negando-lhe ou retirando-lhe o tratamento de suporte à vida. Os casos do primeiro género são vulgarmente referidos como eutanásia “activa”, enquanto os casos do segundo género são frequentemente referidos como eutanásia “passiva”. 

Há alguns problemas em distinguir entre matar e deixar morrer, ou entre eutanásia activa e passiva. A administração de uma injecção letal seria matar; enquanto que não pôr um paciente num ventilador, ou tirá-lo, seria deixar morrer. No primeiro caso, o paciente morre devido a acontecimentos postos em acção pelo agente. No segundo caso, o paciente morre porque o agente não intervém num curso de acontecimentos já a decorrer e que não é produzido por ele. É plausível que um agente que mata causa a morte, enquanto um agente que deixa morrer permite apenas que a natureza siga o seu curso.

Devem os médicos fazer esforços “heróicos” para acrescentar mais umas quantas semanas, dias, ou horas à vida de um doente terminal sofrendo de cancro? A maior parte dos autores concorda que há alturas em que o tratamento de suporte à vida deve ser retirado e se deve permitir que um doente morra. Este ponto de vista é partilhado mesmo por aqueles que veem a eutanásia ou o termo intencional da vida sempre como incorreto.

Atualmente, a distinção entre meios de suporte à vida que são vistos como normais e obrigatórios e meios que não o são é a maior parte das vezes expressa em termos de meios de tratamento “proporcionais” e “desproporcionais”. Um meio é “proporcional” se oferece uma esperança razoável de benefício para o doente; é “desproporcional” se não o faz.

A administração de analgésicos cuja finalidade é exclusivamente minorar o sofrimento ao doente, ainda que se possa admitir que indiretamente lhe pode abreviar a morte, é formalizada pelo Princípio do Duplo Efeito. São Tomás de Aquino, a quem é atribuída a origem do Princípio do Duplo Efeito, aplicou esta distinção entre consequências diretamente desejadas e meramente previstas às ações de autodefesa. Se uma pessoa é atacada e mata o atacante, a sua intenção é defender-se a si mesma, não matar o atacante. O médico pode “admitir” ou “permitir” que uma consequência (como a morte da pessoa) ocorra, embora essa consequência não seja desejada por ele.


Entre eutanásia ativa e passiva há as seguintes diferenças: 1) Na eutanásia ativa, o médico faz alguma coisa que provoca a morte do paciente. Mas por regra o médico só o faz a pedido do próprio paciente. O médico que administra a um paciente com cancro uma injeção letal provocou, com o seu gesto, a morte do seu paciente, sem dúvida; e a causa da morte foi o ato médico. 2) Na eutanásia passiva, o médico não faz nada e deixa o paciente morrer. Pode fazê-lo mesmo que não seja a pedido, e o que resulta é a morte devido ao mal de que padece.

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