segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A vida


Numa afronta à visão mecanicista do Universo, Bergson esgotava salas de espetáculo a falar sobre élan vital, farsa e evolução criativa, a turistas intelectuais. As leis da física eram excelentes para a matéria inerte, mas a nossa consciência, a nossa memória, não podiam ser reduzidas ou dissecadas experimentalmente. Proust foi um dos muitos intelectuais que assistiram às duas palestras na Sorbonne entre 1891 e 1893. Já em 1913, a presença de Bergson na Universidade de Colúmbia provocou o primeiro engarrafamento automóvel de sempre na cidade de Nova Iorque.

Proust leu o Matter and Memory de Bergson, em 1909, quando estava a começar a escrever Do Lado de Swann. Bergson havia casado com uma prima de Proust em 1892. No entanto, apenas há registo de uma conversa entre Bergson e Proust, em que discutiram a natureza do sono. Esta conversa é relatada em Sodoma e Gomorra. No entanto, para Bergson, Proust nunca passaria de um primo que lhe oferecera uma excelente caixa de tampões para os ouvidos. Quando Proust começou a escrever Em Busca do Tempo Perdido, Bergson já era uma celebridade. Proust tinha a certeza de que cada leitor que lesse o seu romance iria reconhecer em si próprio o que ele diz. Isto seria a prova da sua veracidade. Isto era o que Bergson se fartava de insistir: "a realidade é melhor compreendida subjetivamente, quando acedemos às suas verdades intuitivamente". E Proust serviu-lhe a ideia na forma de um bolo amanteigado, aromatizado com raspa de limão e em forma de concha.

Em 1911, a psicologia não fazia a menor ideia de como os sentidos faziam a ligação com o interior da caixa negra. Mas Proust sabia que os sentidos do olfato e paladar suportavam um fardo de memória muito particular. Hoje não há psicólogo, ou neurologista, que não saiba que o cheiro e o paladar são singularmente sentimentais. São os únicos sentidos que se ligam diretamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro. Daí o facto de estes sentidos serem os melhores para convocar o nosso passado. Todas as memórias estão repletas de erros. A nossa lembrança do passado é imperfeita. O exemplo mais paradigmático disto são as histórias de mulheres abusadas sexualmente no passado. Mesmo que as suas histórias sejam invenções, elas acreditam genuinamente nelas. Por isso não de trata do caso de estarem a mentir. A memória é um processo incessante, não um repositório de informação inerte. 

Embora a ciência seja sempre o nosso método principal para investigar o Universo, é ingénuo pensar que a ciência, por si só, pode resolver tudo, ou que tudo possa sequer ser resolvido. Sabemos agora o suficiente para sabermos que nunca saberemos tudo. É por isso que precisamos da arte. Ela ensina-nos a viver com o desconhecido. Só o artista pode explorar o inefável sem nos oferecer uma resposta, porque às vezes não há resposta. Quando nos aventuramos para lá dos limites do nosso conhecimento, tudo o que temos é a arte. É claro que os artistas devem escutar o seu chamamento e não ignorar as descrições inspiradoras da ciência sobre a realidade. Mas, ao mesmo tempo, a ciência tem de reconhecer que as suas verdades não são as únicas verdades. Nenhuma área do conhecimento  tem o monopólio. Todo o conhecimento se mistura com sonhos, preconceitos, esperanças e sentimentos. 

Apesar de gostarmos de imaginar a vida como um relógio suíço, concebido por um relojoeiro cego, a verdade é que na evolução da vida na Terra nada é previsível. A biologia molecular, confrontada com a indisciplina da vida é obrigada a respeitar o caos. Aconteceu aos biólogos o mesmo que aconteceu aos físicos. Estes tiveram que aceitar a irrealidade fixa do espaço e do tempo. O mundo era indeterminado e incerto. Na biologia, como seria de esperar, o motor da evolução era a mutação aleatória com erros de edição em catadupa. Em 1968, o geneticista japonês – Mottoo Kimura descobriu que o ADN, ou melhor, o genoma, mudava a uma taxa cem vezes superior à prevista pelas equações da evolução. A mudança do ADN era de tal ordem que a seleção natural não podia ser responsável por todas as adaptações. 

Mas então se não era a seleção natural a impulsionar a evolução do nosso genoma, então o que era? Era o caos – respondeu Kimura. Isto provocou uma tempestade no seio dos neodarwinistas, tendo chegado ao ponto de lhe chamarem um criacionista. Grande é o poder da incompreensão constante. A seleção natural é importante, mas não é a única. Afinal a vida era muito descuidada. No interior das nossas células pedaços de proteínas ou ácidos aminados flutuam sem destino ao sabor das interações aleatórias. Parecendo um paradoxo, a individualidade era filha do caos. A diversidade é praticamente infinita. Para todos os efeitos, cada um de nós é único, irrepetível. Até os gémeos homozigóticos são únicos, sendo diferentes nos detalhes. 
A descoberta de que a biologia floresce na desordem é uma mudança de paradigma. Quanto mais sabemos, quanto mais a ciência avança, menos a vida se parece com um relógio. O caos está por todo lado. A vida é altamente irregular, desordenada e mais ou menos imprevisível. Tal como aconteceu tantas vezes na história da ciência, a ideia fixa da ordem determinista demonstrou não ter pernas para andar. Estamos mesmo condenados a ser livres, como sentenciou Sartre. Todas as tentativas reducionistas para resolver a vida fracassaram. Não é bem assim: não somos totalmente livres, nem totalmente determinados; somos indeterminados. O mundo está cheio de contingências, mas nós somos capazes de decidir o nosso caminho. É a nossa autodeterminação. A vida está repleta de liberdade de movimentos, uma plasticidade que desafia qualquer determinismo.

O paradigma científico que começou com o sonho iluminista, que ainda vigora, sentencia: "se uma coisa não pode ser quantificada ou calculada, então não pode ser verdadeira". E dado que este paradigma tem demonstrado ter sido bem-sucedido na explicação de muita coisa, seria de esperar que pudesse explicar tudo. Mas a realidade é bem mais complexa para esperarmos uma coisa dessas, a começar pela nossa própria mente, com a qual formulamos as nossas proposições: a vida é apenas química; e a química é apenas física. Somos uma espécie de poeira a acumular-se lentamente no caos.

No processo de construção do “Eu”, emergência é a palavra chave. Eu ou consciência: um processo que emerge das profundezas do ser. Mas como é que o Eu emerge? Se a mente é um conjunto de “esboços múltiplos”, como diz Daniel Dennett, portanto, bocados ou fragmentos de sensações, como chegamos ao pensamento? Bem, Dennett não tem outra escapatória senão dizer que o Eu é ilusório, um fantasma na máquina. Recorrendo às experiências da visão cega, na verdade, os portadores da doença com este diagnóstico, veem. O que lhes falta é a consciência de que veem. Os pacientes de visão cega são incapazes de aceder conscientemente àquilo que o cérebro está a fazer quando está a ver. É isto que imprime um fascínio tão pungente aos doentes que padecem de visão cega: têm a consciência divorciada das sensações.

O cérebro é o maior nó do Universo. Cada um dos neurónios está ligado a milhares de outros neurónios. É desta conectividade interativa e recursiva que emerge a consciência. Já é possível mapear onde ocorrem determinadas experiências percetivas, mas não onde ocorre, por exemplo a atenção, ou a consciência, e muito menos o local onde se esconde o Eu, porque estas são propriedades emergentes que não têm uma origem única. A neurociência está agora a ser realista quanto ao que as suas experiências podem explicar. Definir a consciência apenas em termos de oscilações no córtex cerebral é muito pouco para dar conta da imensidão que é a nossa subjetividade. Sentimos o Eu como um todo, e a neurociência só consegue ver pedaços, ou fragmentos. Ora, se a ciência nos divide em pedaços, temos de recorrer à arte para reunir de novo esses pedaços.


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