quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O sofrimento


Cada indivíduo tem uma escala pessoal de sofrimento, que está relacionada com uma escala pessoal de necessidades: uns resistem melhor à dor, outros são mais sensíveis, uns são mais fortes emocionalmente, outros choram por tudo e por nada. As mesmas situações podem provocar em cada um de nós emoções diversas, sofrimentos diferentes. Todos precisamos ou desejamos diferentes coisas; e mesmo quando necessitamos das mesmas coisas, a intensidade dessa necessidade varia. Por conseguinte, tudo parece ser o resultado das leis cegas da natureza e do comportamento humano, e não o resultado de qualquer arbítrio divino. Há uma abundância de mal no nosso mundo. Se podemos preveni-lo, então temos a obrigação moral de o fazer. Richard Swinburne, um filósofo britânico, estabelece uma distinção entre mal moral (todo o mal causado deliberadamente pelos seres humanos ou permitido por negligência) e mal natural (todo o mal que não sendo produzido por seres humanos, resulta das puras leis da natureza). Não é propriamente o mal natural que ocupa os debates entre teístas e ateístas. É o ato intencional e deliberado de causar o mal, ou seja, o mal moral que mereceu a maior atenção de Kant, e o qual ele nunca acreditou que alguma vez pudesse ser erradicado.

É naqueles raros momentos de epifania, ou de tremenda desgraça, que somos tomados pela crença em Deus, ora benevolente, ora castigador. Mas, se pensarmos bem, é difícil imaginar realmente um mundo sem qualquer tipo de sofrimento. E podemos apresentar um conjunto de argumentos para mostrar que para termos algo que consideramos um bem, temos de arcar com coisas que consideramos um mal. A hipótese de um Deus benevolente é muito menos plausível do que a hipótese de que não há qualquer Deus e que o bem e o mal que temos ora resulta da operação em cadeia das leis da natureza, ora do próprio comportamento humano. Teríamos indícios da existência de Deus se depois de termos descoberto através da medicina a possibilidade biológica de tantas doenças, e ainda assim, depois de termos descoberto isso, verificássemos com espanto que nunca ninguém tinha tido uma doença mais grave do que uma constipação. Ou se depois de um grande terramoto, ou de cheias tremendas, por milagre ninguém tivesse morrido. Isso sim, seria motivo para pensar que há Deus. Mas, sendo o contrário o que acontece, logo será mais lógico não alimentarmos o pensamento esperançoso de um Deus em nosso auxílio.

Ser tolerante é aceitar o direito de alguém ter posições ou ideias ou convicções diferentes das nossas, ainda que possam estar erradas. Mas a falsa tolerância pode abrir as portas ao mal absoluto como foi o caso do nazismo. E o fanatismo, como é exemplo o dos jihadistas, consiste em usar sistematicamente o sentimento de ofendido para eliminar o outro. Mas a tolerância tem a ver com a aceitação das posições do outro, e não a aceitação do relativismo epistémico. Não é tolerável a afirmação de que o Holocausto não existiu ou que um certo indivíduo é menos inteligente do que outro por mero preconceito racista. Também não é tolerável o intolerante. 

Não é raro sermos confrontados com dilemas éticos. O utilitarismo é a corrente de pensamento que melhor tem lidado com os dilemas éticos, ao contrário dos deontologistas. Para um utilitarista pode haver circunstâncias em que a única maneira de minimizar as más consequências, isto é, de evitar um mal maior, é infringir uma lei moral. Considerando as consequências, pode ser seguramente melhor que morra um em vez de vinte. Como pode a morte de vinte ser melhor do que a morte de um? Para um deontologista há proibições que são absolutas, ainda que ao cumpri-las possamos produzir um resultado pior do que se não cumpríssemos. No cenário de estares a ver um terrorista que vai matar 20 pessoas e ao mesmo tempo teres a possibilidade de matares o terrorista e assim salvares 20 pessoas – se fores um absolutista moral puro vais recusar-te a matar o terrorista porque obedeces ao princípio absoluto de que não deves matar; mas se fores um utilitarista não vais ter dúvida nenhuma de que o valor da vida de 20 pessoas é muito superior ao valor da vida de uma só, e por isso deves matar o terrorista.

Isso não significa que para um utilitarista não exista uma forte obrigação de não matar seres humanos. O que admitem é exceções: em casos justificados de autodefesa; ou em caso de terminar o sofrimento misericordiosamente a quem o suplique. E se alguém está a ser torturado até à morte, e se sabemos que essa pessoa não quer ser um mártir religioso, mas ter uma morte misericordiosa, o utilitarista acha que não prejudica essa pessoa ao abreviar-lhe a morte, uma vez que morrerá de qualquer maneira pela tortura, só que em grande sofrimento. O utilitarista argumenta que lhe terá prestado um bem, feito um favor.

Se Deus, o suposto Criador do mundo, existe realmente, e se é de facto infinitamente bom e infinitamente justo, ao mesmo tempo que é omnipotente (ou seja, pode tudo), omnipresente (ou seja, está em toda a parte e tudo presencia), e omnisciente (ou seja, sabe tudo), então, como pode haver tanto mal num mundo criado e controlado por uma entidade assim? Se Deus existe, se é assim perfeito e se tem estas qualidades, porque razão não impede o mal? Se Deus tem todas estas qualidades que os teístas afirmam que tem, ou seja, é omnipotente e perfeitamente bom (entre outras), então como pode permitir que haja tanto mal no mundo? Se Deus é perfeitamente bom e sumamente justo, então porque razão não criou os humanos como seres igualmente perfeitos e justos? Ou então, porque não os deixou iguais a todos os outros animais, longe do bem e do mal? Se for verdade que Deus é o responsável pelo livre-arbítrio dos seres humanos, poder-se-á dizer que a decisão que Deus tomou quanto à atribuição desta faculdade aos humanos foi uma decisão perfeitamente boa e justa? Se Deus conhece as verdades morais e, portanto, sabe o que é absolutamente bom, então, como pôde tomar uma decisão que compreendia o sério risco de permitir a existência do mal no mundo? Para os ateístas esta objeção é importantíssima, sendo a sua crítica dirigida não ao livre-arbítrio (que também consideram um bem), mas à atribuição a Deus da perfeita bondade. 
Se Deus pode fazer as pessoas de tal modo que, nas suas escolhas livres, tanto podem preferir o que é bom como o que é mau, também podia fazer as pessoas de tal modo a escolherem sempre livremente o bem. Por que não o faz? Se não há nenhuma impossibilidade lógica de um homem escolher livremente o bem numa ou em várias ocasiões, também não há uma impossibilidade lógica para que ele escolha livremente o bem em todas as ocasiões. Deus não esteve numa alternativa de escolhas entre o autómato inocente e o ser livre de escolhas em que por vezes pode estar a malfeitoria. Esteve aberta para Ele a possibilidade obviamente melhor de fazer seres que agiriam sempre livremente, mas seguiriam sempre o bem. Claramente, não ter contemplado esta possibilidade, revela a inconsistência da Sua omnipotência e suma bondade. 

Os ateístas argumentam que não é próprio de um ser omnisciente, conhecedor das verdades morais e perfeitamente bom, permitir que haja qualquer possibilidade de o mal se instalar, ou, pelo menos, não impedir a propagação do mal, a partir do momento em que começa a manifestar-se. Com efeito, espera-se de um Deus perfeitamente bom e omnipotente que, mal constate que essa liberdade não foi bem usada, que acarreta muitos males, tire como conclusão dessa constatação a urgência de impedir o mal. Ainda que tal decisão acarrete a suspensão temporária da liberdade humana, vale a pena se é dela que o mal decorre. Ora, como sabemos, o mal existe. Pelo menos, um tal Deus com os referidos atributos, não pode existir.

Os teístas, ao apelarem ao livre-arbítrio, e ao afirmarem que os seres humanos são livres, não estando sujeitos à determinação de Deus — procurando, assim, desresponsabilizar Deus pelo mal —, ao afirmarem que Deus não controla e não pode controlar os seres humanos, estão a negar implicitamente a omnipotência de Deus. A única hipótese que resta ao teísta é afirmar que Deus fez os homens tão livres que deixou de os poder controlar. Mas isto implica na mesma que Deus não é, afinal, omnipotente. Por outro lado, se os teístas estivessem a sugerir que o livre-arbítrio não passa de uma indeterminação do agente, então deixaria o ato para o bem ou para o mal entregue ao acaso. Neste caso como seria possível afirmar a importância da liberdade? Tudo isto carrega uma série de inconsistências, como, por exemplo, um Deus omnipotente criar seres que não pode controlar. Mas também seria uma incoerência dizer que Deus criou seres com toda a liberdade de escolher o que fazer, e ao mesmo tempo ter o poder de os controlar. 

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