terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

A inviolabilidade da vida humana


Não é de agora que movimentos e organizações abolicionistas, nomeadamente a Amnistia Internacional (AI), lutam contra a pena de morte, pela inviolabilidade da vida humana. Há quatro décadas que a Amnistia Internacional lançou a campanha para a abolição da pena de morte no mundo. Nessa altura, apenas 16 países tinham abolido a pena de morte. Hoje, o número subiu para 104, constituindo um enorme e claro progresso relativamente à sua abolição. O relatório anual da Amnistia Internacional de 2016 sobre a pena de morte regista 1032 execuções e um total de 3117 sentenças. Em 2017 regista 993 execuções em 23 países. Em 2018, 36 países ainda haviam praticado a pena de morte, com a China à frente com 2400 e a Índia em último com 1 caso. Mas 50 países ainda mantinham em vigor a pena de morte, se bem que já não era praticada há pelo menos dez anos. E 6 países aboliram a pena de morte para crimes comuns, mas mantinham-na para crimes contra a humanidade, ou crimes de guerra – Brasil, Equador, Chile, Guatemala, Burkina Faso e Cazaquistão. 


Em que lugar fica o valor da vida humana? A pena de morte não é aceitável para a maioria da sociedade portuguesa. Portugal foi o primeiro Estado soberano da Europa moderna a abolir a pena de morte. Antes de Portugal apenas se regista o Grão-Ducado da Toscana em 1786. Em 1852 é abolida para crimes políticos; e em 1867 para crimes civis, exceto por traição durante a guerra, pelo que continuava no Código de Justiça Militar. Em 1870, por via de decreto com força de lei, declarava-se expressamente que era abolida a pena de morte nos crimes civis em todas as províncias ultramarinas. Foi readmitida em 1916, quando Portugal entrou na Guerra, apenas para traição em tempo de guerra (indispensável apenas no teatro da guerra). Em 1976, a Constituição da República Portuguesa determina a abolição total da pena de morte.

Em direito criminal, a pena deve ser uma sanção com natureza preventiva, repressiva e retributiva, de valor moral correspondente à culpabilidade do arguido. Ao longo da história estiveram em vigor, e ainda estão em alguns países, penas cruéis, como a mutilação de membros, morte por lapidação (apedrejamento), crucifixão, enterramento, morte na fogueira, etc. Os abolicionistas consideram ilegítima a pena de morte com os seguintes fundamentos: A vida é o bem supremo do Homem e, por isso, apenas Deus pode dispor dela; a execução da pena de morte torna irreparável um eventual erro judiciário, como, aliás, tem acontecido, em várias ocasiões, sobretudo nos EUA; A pena de morte é contrária ao fim das penas, que é a reinserção social do delinquente. Os defensores da pena de morte justificam-na dizendo que ela é o único meio de legítima defesa do Estado ou da sociedade, para impedir a prática dos crimes mais violentos.

Na nova redação do Catecismo (Nuova redazione del n. 2267 del Catechismo della Chiesa Cattolica sulla pena di morte – Rescriptum “ex Audentia SS.mi”, 02.08.2018), lê-se o seguinte:

2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.

Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.
A redação anterior dizia: "A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte se for esta e única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um agressor”.

Isto será mais um progresso ou desenvolvimento da doutrina católica de admitir a moralidade da pena de morte em si mesma, independentemente do facto de aquela constar ou não da legislação penal e da sua aplicação concreta? Será mesmo uma rotura com a doutrina? Em outubro de 2017, o Papa Francisco, por ocasião do XXV aniversário do Catecismo da Igreja Católica, aludiu à necessidade de mudar o texto do Catecismo, no que respeitava à pena de morte. Disse então o Papa: “Por isso é necessário reiterar que, por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa”. Ora, estas afirmações, em linha com a nova redação do Catecismo, com data de 2 de agosto de 2018, levam-nos a interpretar que o Catecismo, até essa data, não estava em conformidade com os princípios da inviolabilidade da vida humana.

O que o Papa Francisco quer significar é que a Palavra de Deus é uma realidade dinâmica, sempre viva, que progride e cresce, porque tende para uma perfeição que os homens não podem deter, fortalece-se com o decorrer dos anos, cresce com o andar dos tempos, desenvolve-se através das idades. Mas não significa de modo algum uma mudança de doutrina. O que está na mente do Papa Francisco é afirmar agora a imoralidade da pena de morte em si mesma; e não apenas a imoralidade da aplicação concreta da pena de morte. São estas subtilezas semânticas, por ventura metafísicas e teológicas, que fazem toda a diferença. Mas se não atendermos a essas subtilezas, podemos concluir que estamos perante uma coisa nova, uma mudança, não estamos mais perante o mesmo dogma. Estamos perante uma rotura com tudo o que, a este respeito, a Igreja sempre ensinou, e não de um simples progresso.

O Papa João Paulo II, na sua encíclica Evangelium Vitae (EV) de 1995 — depois de expor o seu ensino sobre até onde pode ir a legítima defesa, e sobre o problema da pena de morte — aborda a questão do carácter absoluto e sem exceções do quinto mandamento não matarás. Levado à letra, contudo, o mandamento “não matarás” tem valor absoluto quando se refere à pessoa inocente. A morte direta e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral.


Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, que havia fugido para a Argentina depois da Guerra com nome falso, acabou por ser localizado em 1960 pela Mossad, que o levou para Israel a fim de ser julgado. E assim foi condenado à morte e executado em 1 de junho de 1962. Este julgamento teve um grande aparato e acompanhado com interesse por todo o Ocidente. Hannah Arendt, que a propósito escreveu o livro intitulado “Eichmann em Jerusalém – A banalidade do mal”, quis dizer com este título que Eichmann encarnava o mal desprovido de pensamento, nunca tendo tido uma gota de pensamento acerca do que andava a fazer. E isso chocou-a e surpreendeu-a, porque contradizia a nossa retórica a respeito do mal moral. Eichmann personificou a agência do mal da forma mais extrema alguma vez praticada, sem um pingo de responsabilidade nem juízo.

O que diferencia o nazismo do bolchevismo, que encobriu o problema do mal com a capa da hipocrisia, é o facto de o nazismo ter assumido às claras que a “Lei da Natureza" era a criação de uma raça de senhores, implicando logicamente o extermínio de todas as raças declaradas inaptas para a vida. Ao passo que para o bolchevismo o que estava em causa era a “Lei da História", a criação de uma sociedade sem classes, implicando logicamente a liquidação de todas as classes moribundas.
Assim, as vidas individuais tornaram-se supérfluas através da sua conversão em matéria inanimada utilizada para alimentar os mecanismos de extermínio, e assim acelerando o movimento das “Leis ideológicas da Natureza e da História”. O mal humano a esta dimensão, demonstrado nas experiências conduzidas nos laboratórios dos campos de concentração totalitários, pôde expandir-se ilimitadamente por toda a Terra, porque lhe faltava a autorreflexão a título individual, solitária, da consciência do remorso.

No núcleo da abordagem moral do comportamento humano está o “Si próprio” de cada um de nós. No núcleo da abordagem política está o Mundo. E a preocupação com o Mundo, ao fazer o “Si” transitar da esfera do pensamento para esfera da ação, sequestra a preocupação de se salvar a si próprio. A esfera da ação é o campo do agente obediente e cumpridor do dever, que logicamente o despe de qualquer sentido de responsabilidade ao nível da sua consciência, e como tal perde o sentido das consequências da ação. 

É em momentos como este que não resistimos a voltar a Sócrates e a tudo o que Platão escreveu acerca dele, um condenado à morte sob pressão da opinião pública da Atenas de um tempo distante. Ainda assim nada que se possa comparar com a Berlim de Hitler. E Sócrates disse, segundo Platão: “É melhor sofrer a injustiça do que fazê-la”. Sócrates “ajuizou da sua situação e decidiu permanecer e morrer em Atenas por vontade dos homens e não por vontade dos deuses. Em todo o caso, no derradeiro momento antes de ingerir a cicuta, pediu a um dos seus discípulos que desse de ex-voto a Asclépio um galo com a maior crista que encontrasse.

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