sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A verdade da arte acerca da realidade


A verdade acerca da realidade é daqueles temas que tem ocupado a mente humana ao longo de milénios. É razoável dizer que uma obra de arte é verdadeira se acreditarmos que a ação retratada é verosímil. As obras de arte representacionais, como é o caso do retrato de uma pessoa representada por um pintor, representam estados de coisas, ou objetos, retratados de uma certa maneira. Isto prende-se naturalmente com o conceito de verdade, porque podemos perguntar: “Essa pessoa existe de facto no mundo?” Ou se um objeto representado existe e se realmente existe da forma como é representado. Ou ainda se uma representação de um determinado tipo de coisas nos oferece um exemplo representativo desse tipo de coisas. Se assim for, podemos dizer que a obra é verdadeira, ou verdadeira relativamente a um determinado aspeto.

As obras de arte, se conseguem retratar situações de que tivemos experiência, de tal modo que essa representação parece apoiar-nos acerca da explicação da experiência que tivemos, então é plausível a verosimilhança da situação retratada. Também se diz, em especial acerca da narrativa de ficção, que, devido à sua capacidade para descrever várias situações imaginárias alternativas, nos pode elucidar sobre a forma como devemos viver.

Estamos em Paris na viragem do século XX, onde jovens artistas e escritores vindos das mais diversas partes do mundo se encontram para novos caminhos à procura da verdade na arte. Entre muitos mais, são exemplos:

Cézanne [1839-1906], Matisse [1869-1954], Proust [1871-1922], Gertrude Stein [1874-1946], Pablo Picasso [1881-1973], Georges Braque [1882-1963], Derain [1880-1954], Juan Gris [1887-1927], Appolinaire [1880-1918], Francis Picabia [1879-1953], Ezra Pound [1885-1972], Ernest Hemingway [1899-1961], James Joyce [1882-1941]. 



Cézanne defrontou-se com o escárnio para com as suas pinturas. Quando os críticos "oficiais" de arte, contemporâneos de Cézanne, viram pela primeira vez as suas pinturas, disseram que ele era absolutamente louco; a sua arte era uma distorção deliberada da natureza. Cézanne acreditava que a vista não bastava. Era preciso reflexão. O que Cézanne intuía era que as nossas impressões exigem interpretação. Sempre que abrimos os olhos, o cérebro entrega-se a um ato espantoso de criação. Hoje a neurociência diz que são as células no córtex visual que constroem silenciosamente as imagens das coisas que pretendemos ver. A visão seria incompleta sem o ato voluntário da nossa perceção. E em base disso, muitos afirmam que a realidade não anda por aí à espera de ser testemunhada; a realidade é construída pela mente. Mas, mesmo que todas as pessoas do meu país ou do mundo inteiro acreditem em algo, o facto de o acreditarem não o torna verdadeiro. O facto de em tempos passados toda a gente pensar que era verdade que a Terra não se movia, é falso dizer que a Terra estava parada quando toda a gente pensava que a Terra estava parada, e que passou a mover-se quando as pessoas começaram a pensar que se move. 

Em 1903, Gertrude Stein deixa a faculdade de medicina de John Hopkins no Maryland, apenas a um semestre da licenciatura em medicina, e muda-se para Paris, instalando-se na casa do irmão que acabara de comprar um quadro de Cézanne. Gertrude Stein e o irmão visitavam frequentemente os Matisse que constantemente retribuíam as visitas. De vez em quando madame Matisse convidava-os para almoçar, o que acontecia principalmente quando recebia alguma lebre de presente. Lebre estufada feita por madame Matisse à moda de Perpignan era algo fora do comum. Tinha também vinho de primeira, um pouco pesado, mas excelente. Mas de quem se tornou realmente próxima foi de Picasso. As paredes da casa do irmão começavam a ficar repletas de quadros dele, Leo era um bom patrono dos pintores, e um dia Picasso não teve como dizer não a um pedido de Gertrude, que lhe fizesse um retrato. Picasso lutou com o retrato de Gertrude como nunca tinha lutado com outra pintura.

Bem, Stein pousou para este retrato, que se vê aqui na imagem, umas 90 vezes. Dia após dia, Stein regressava ao apartamento de Picasso no alto das colinas de Montmartre. Muita coisa aconteceu durante esse tempo, muita conversa sobre filosofia, William James e Einstein, e claro, mexericos da vanguarda. Um dia, de repente, Picasso irritou-se, e cobriu de tinta toda a cabeça dizendo: “já não posso olhar mais para ti”. E deixou assim o retrato. Picasso só concluiu o quadro meses mais tarde (1906) depois de ter ido passar uns tempos a Espanha. Quando regressou a Paris o estilo que trazia já era outro. Pegou de novo no retrato de Gertrude Stein, e aplanou a testa, dando-lhe a tez de uma máscara primitiva. Era parecida com um retrato de mulher que Picasso havia visto no apartamento dos Stein, da autoria de Cézanne. Como sabemos agora, Cézanne viria a revelar-se o precursor de toda aquela malta de pintores.

Stein confidenciaria mais tarde: “Ver as coisas de maneira diferente é realmente difícil. Tudo nos impede: os hábitos, a escola, a razão. De facto, existem muito poucos génios no mundo”. William James era o seu herói. James visitou uma vez o apartamento dos Stein em Paris. E viu as paredes repletas de Cézanne, Matisse e Picasso. "Eu disse-lhe" - disse ele enquanto olhava para os quadros e suspirava - "que devia manter a mente sempre aberta".

Gertrude Stein, ao contrário da geração de escritores que a precedeu, dizia que as nossas palavras eram simbólicas, e não como espelhos da realidade. E mais tarde Chomsky viria a dar-lhe razão. A abordagem dos behavioristas à linguagem estava absurdamente errada. Chomsky demonstrou com grande eloquência que as estruturas que governam a linguagem vinham de dentro da mente. Uma segunda ideia de Chomsky era que determinadas frases contêm dependência a longa distância de outras palavras muito anteriores na frase. A estrutura da linguagem – uma estrutura que as suas palavras compõem – faz parte da estrutura do cérebro.

A neurociência sabe agora que a mente depende da carne. As emoções são produzidas pelo corpo. Por efémeros que pareçam, os nossos sentimentos estão na realidade enraizados nos movimentos dos músculos, nas palpitações e nas entranhas das vísceras. A mente é corpórea, e não apenas cerebral. Nós somos corpo e alma, ou corpo e mente, conforme o gosto das palavras, ou o odor dos sovacos do carrasco quando chicoteia a alma do escravo. As subtilezas da alma perdem-se se ignorarmos as subtilezas do corpo. E as subtilezas do corpo perdem-se se ignorarmos as subtilezas da alma. E é isso que acontece quando a arte e a ciência sofrem de incompreensão mútua.

Há muitas maneiras diferentes de descrever a realidade. A verdade da arte é diferente da verdade da ciência. A ciência não consegue descrever a nossa experiência concreta. E a arte é inútil para descrever os quarks, os genes ou as galáxias. Há pelo menos uma coisa que podemos dizer: não é possível reduzir a arte à física.


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