segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Copy-paste de Countdown de Alan Weisman



A cada quatro dias há mais um milhão de pessoas no planeta. Mais pessoas e menos recursos. Alan Weisman examina como podemos encolher a nossa pegada humana coletiva para que não empurremos mais espécies - incluindo a nossa – para fora da existência. A resposta: reduzir gradualmente e não violentamente o número de humanos no planeta cujas atividades, indústrias e estilos de vida estão a prejudicar a Terra.
Definir uma população humana ideal para a Terra é um conceito explosivo. Weisman, um dos mais brilhantes escritores ambientais, relata-nos uma viagem pelo mundo, desde os assentamentos de Israel e das planícies do México até às movimentadas ruas do Paquistão e cidades do Reino Unido. Em busca de respostas, ele fala com muita gente: líderes religiosos, demógrafos, ecologistas, economistas, engenheiros e agrónomos.
Sahel

A Líbia, com 6 milhões de pessoas, ocupando o nº 17 em tamanho do território, apenas o nº 103 em população, tem petróleo, mas não tem água. As nascentes do norte da Líbia são contaminadas pela água do mar, a água potável desses 90% chega pela obra-prima de Muammar Kadhafi, o “Grande Rio Feito pelo Homem” – a maior rede de canais ligados a mais de mil fontes perfuradas que entram num aquífero que dista a 500 metros da areia, no sul. A água que eles extraem é a que se acumulou quando o Saara estava repleto de plantas e animais, um período que terminou há cerca de 6 mil anos, quando o eixo da Terra sofreu um ligeiro desvio. Tais acontecimentos alteraram profundamente o Norte de África.

O Saara está crescendo rumo ao cinturão semiárido em direção ao sul, conhecido como Sahel, que separa o deserto das savanas tropicais da África Central. Contornando a parte superior do continente africano, o Sahel tem 965 quilómetros de largura em seu ponto mais largo – pelo menos por enquanto.

No Níger, nação do oeste africano, ao sul da Líbia, Al-Haji Rabo Mamane é chefe de Bargaja, uma vila do Sahel, com 2 mil habitantes, a 20 quilómetros ao norte da fronteira com a Nigéria. Um homem de 70 anos e cavanhaque branco, ajusta a sua djalabiya azul-celeste ao redor dos calcanhares descalços, endireita seu gorro azul e bordado, sagrado, e começa a falar; tem 17 filhos, ainda vivos, mas já perdeu outros tantos. Ele está sentado num belo tapete azul e verde, debaixo de um toldo de palha. Os últimos anos têm sido difíceis. Em 2010, poucas lavradas no Níger chegaram à colheita. O milhete, cereal básico, secou todo e morreu nas espigas, com a antecipação da grande seca. O mesmo aconteceu com o amendoim. O sorgo, geralmente tolerante ao calor, cresceu, mas não produziu sementes. O gado ficou sem pasto. 


“Então, nossas crianças começaram a morrer.” O World Food Programme tentou levar alimento humanitário via aérea para 5 milhões de pessoas desesperadas, mas Mamane ainda perdeu três – apesar de que, como chefe, ele pôde mandar uma esposa ao centro de saúde administrado por médicos franceses, em Maradi, capital da região e segunda cidade mais populosa do Níger. Lá, ela os viu morrer de malnutrição, um após o outro. Ela é a esposa mais jovem. “Eu me casei com ela quando ela tinha 12 anos, quando estava fresca”. Todos os seus bebés morreram; um tinha três anos, outro tinha dois. Um morreu depois de apenas uma semana. Em 2011, ele perdeu mais dois. Duas de suas outras esposas estavam amamentando; malnutridas, elas ficaram anémicas e seus seios secaram. Os bebés morreram de anemia e do oportunismo da malária. “Minha esposa mais jovem ainda estava tão aborrecida que eu pensei em me divorciar dela, para lhe dar outra chance com outro homem. Mas, felizmente, ela está grávida novamente.” Um murmúrio de aprovação surge entre os homens que estão à sua volta.

Ele tampouco tem certeza do número de esposas. Embora o Corão lhe permita até quatro esposas, contanto que possa cuidar delas com responsabilidade; ao longo dos anos, algumas esposas ficaram, algumas partiram. Algumas delas também morreram. Uma, ele sabe, tem três filhos ainda vivos. Três de nove partos. Seu filho mais velho, Inoussa, agachado na beirada do tapete do pai, veste uma djalabiya azul-marinho, com gorro de prece roxo, e faz uma soma na terra, com o dedo. “Ano passado, esta vila perdeu 180 crianças. Inoussa, de 42 anos, tem três esposas que lhe deram onze filhos, seis ainda vivos. Ele é considerado rico, pois tem um hectare inteiro só para ele, para lavrar. Há cinquenta anos, todos tinham dois hectares, mas a terra foi tão fracionada entre os tantos filhos que os dois hectares que um dia alimentaram uma família de vinte agora precisam sustentar sessenta ou setenta. “Temos esses problemas, que não sabemos como resolver”, diz o pai. “Temos gente demais”, responde Inoussa. Olhos franzidos se voltam para ele. “Sim”, diz ele, “choramos porque estamos a ser esmagados pelas nossas próprias crianças.” Por toda a sua vida, ele ouviu que todo nascimento é uma bênção. Deus dá, contudo Deus também tira.

Há dois anos, quando pararam de trabalhar por três dias para rezar pela alma do último filho morto, eles tomaram uma decisão: ir à clínica em Maradi, com as três esposas para começarem a tomar a pílula do planeamento familiar. Inoussa não tentou esconder isso na vila, e os outros homens não esconderam o seu desconforto quanto ao que ele havia feito. Ele não tentou convencê-los: “Eles puderam ver os resultados com os seus próprios olhos". As três esposas eram muito magras, mas agora ganharam peso. Ninguém engravida há dois anos. Isso é bom, porque ter onze filhos é um grande teste para a resistência delas.

À medida que ele explica isso, os outros homens parecem perplexos. No Níger, cada mulher tem, em média, de sete a oito filhos – a taxa de fertilidade mais alta da Terra. As suas esposas deveriam ter-lhe dado 21 filhos, mas pararam sem chegar nem à metade disso. A poucos metros de onde os homens estão conversando, duas das esposas do chefe estão sentadas no chão de terra, perto da porta, ouvindo. Nenhuma delas pesa mais de 40 quilos. Na região rural do Níger, os melhores alimentos, como ovos, vão para os homens. Em seguida, as crianças são alimentadas. Em épocas difíceis, as mulheres mal comem. Hassana, a esposa mais alta e mais velha, está amamentando um filho chamado Chefiou, de quatro meses. Ela tem dois outros, um casal. Mas uma mãe também mantém a contagem de suas perdas. O primeiro, um menino, morreu com quatro anos. A segunda, uma menina, com um ano e sete meses. O terceiro e o quarto viveram. O quinto morreu aos três anos. O sexto, com um ano. Eram meninas. Ela pousa Chefiou em seu colo e limpa os olhos com a bainha de seu hijab florido. “É muita tristeza ter e perder um filho. Deus dá vida, depois tira. Mas eu não posso ir contra a vontade de Deus. Porque sei que Deus também poderá tirar a minha vida quando Ele quiser.” Ela já ouviu falar sobre planeamento familiar. Isso não lhe interessa. "Quando chega uma crise de alimento e uma doce criança morre, você tem de continuar tendo outras, enquanto puder. Se eu parasse, e se as que eu tenho não sobreviverem? Não teria nada." Mas será que apenas três não têm uma chance melhor porque haveria mais alimento para eles?

“Se nós pudéssemos garantir comida suficiente, eu não teria de ter sempre um em meu útero e outro nas minhas costas, então, sim. Mas essa garantia não existe.” Ela desvia o olhar para a sua colega esposa, Jaimila, encolhida num outro canto, com um khimar azul sobre uma saia de batik escondendo a sua gravidez. “Além disso, se houvesse menos crianças e mais comida, os maridos simplesmente correriam para ter mais esposas, e as esposas irão competir umas com as outras, para terem mais filhos. Então, novamente, não haverá comida suficiente.” Ela se casou tarde, aos 16 anos. Jaimila, nem tanto, pois tinha 12 anos quando casou com o chefe, e seus três bebés morreram. Ela não se lamenta por não ter a oportunidade de encontrar um marido mais jovem, em vez de ter filhos de um homem de setenta anos? “Mas ele é o chefe”, responde, intrigada pela pergunta.

Há um dizer no Níger: um velho com dinheiro é um jovem. As esposas de outros homens perdem até mais bebés, e mais depressa, pois o chefe tem mais terras e animais. Embora, ultimamente, ninguém tenha muito. “Se eu ainda tivesse meus três, ou se Deus me der mais três, depois deste, talvez eu possa parar, algum dia. Mas eu teria de ir até Maradi, para ter as pílulas. E ele logo estará velho e não vai querer. Então, eu deixo a ideia de lado.”

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