segunda-feira, 23 de maio de 2022

A propósito do 1º caso de crime de guerra julgado na Ucrânia

 

Um soldado russo de 21 anos, que confessou o assassinato de um civil de 62 anos, foi condenado a prisão perpétua por crimes de guerra. “Nunca tive tanta vergonha do meu país", disse Boris Bondarev, diplomata russo na ONU que se posicionou contra a invasão. Os combatentes ucranianos retirados de Azovstal vão ser julgados num tribunal da autoproclamada República Popular de Donetsk.
Desde “Os Julgamentos de Nuremberga 1945/46” – que foram numa série de tribunais militares, organizados pelos Aliados, depois da Segunda Guerra Mundial. E do caso do julgamento de Eichmann em Jerusalém, que após um julgamento de grande publicidade em Israel, foi considerado culpado por crimes de guerra e enforcado em 1962 – que as tentativas iniciais de o interpretar como um ultraje cometido por criminosos de nascença, sádicos, loucos, depravados sociais ou indivíduos de outra forma moralmente incompletos não encontraram qualquer confirmação nos factos envolvidos.

O atual curso do pensamento histórico foi sumariado de modo perspicaz por Kren e Rappoport:
Por critérios clínicos convencionais, não mais que dez por cento dos SS poderiam ser considerados “anormais”. Esta observação bate com o testemunho geral de sobreviventes indicando que na maioria dos campos havia normalmente um ou no máximo uns poucos SS conhecidos por fortes explosões de crueldade sádica. Os outros nem sempre eram pessoas decentes, mas seu comportamento era pelo menos considerado compreensível pelos prisioneiros…
A maioria dos que executaram o genocídio eram pessoas normais, que passariam facilmente em qualquer peneira psiquiátrica conhecida, por mais densa e moralmente perturbadora. Isso também é teoricamente intrigante, em especial quando visto em conjunto com a “normalidade” daquelas estruturas da organização que coordenaram as ações desses indivíduos normais no empreendimento do genocídio. Já sabemos que as instituições responsáveis pelo Holocausto, mesmo se consideradas criminosas, não eram, em nenhum sentido sociologicamente legítimo, patológicas ou anormais. 

Como diz a famosa frase de Hannah Arendt, o problema mais difícil que os iniciadores da Endlösung encontraram (e resolveram, por assim dizer, com sucesso estarrecedor) foi “como superar… a piedade animal que afeta todos os homens normais na presença do sofrimento físico”. Sabemos que pessoas alistadas nas organizações mais diretamente envolvidas no negócio do assassinato em massa não eram nem anormalmente sádicas nem anormalmente fanáticas. Podemos supor que participavam da aversão humana quase instintiva à aflição do sofrimento físico e da inibição ainda mais universal contra tirar a vida. 

Quando, por exemplo, eram recrutados membros para os Einsatzgruppen [grupos de ação] e outras unidades similarmente próximas do cenário efetivo dos morticínios, havia um cuidado especial em eliminar — barrar ou expulsar — todos os indivíduos entusiasmados, de muita carga emocional ou ideologicamente superzelosos. Sabemos que iniciativas individuais eram desencorajadas e se fazia muito esforço para manter toda a tarefa num quadro estritamente impessoal, prático, eficiente. Ganhos e motivações pessoais em geral eram censurados e punidos. Mortes induzidas por desejo ou prazer, ao contrário das perpetradas de modo organizado e obedecendo a ordens, podiam levar (pelo menos em princípio) a julgamento e condenação, como o assassinato ou homicídio comum. Em mais de uma ocasião, Himmler manifestou profunda e, com toda probabilidade, autêntica preocupação com a preservação da sanidade mental e dos padrões morais dos seus muitos subordinados envolvidos diariamente em atividades desumanas; também manifestou o orgulho de que, a seu ver, tanto a sanidade como a moralidade saíram incólumes do teste. 

Para citar Arendt de novo, “por sua ‘objetividade’ (Sachlichkeit), as SS se diferenciavam de tipos ‘emotivos’ como Streicher, esse ‘tolo idealista’, e também de certos ‘figurões do partido germânico teutónico que se portavam como se usassem chifres e pele de animais’”. Os líderes SS contavam (com razão, ao que parece) com a rotina da organização, não com o zelo individual; com a disciplina, não com a dedicação ideológica. A lealdade à sangrenta tarefa devia ser — e era de facto — um derivado da lealdade à organização.

O perpetrador alemão do genocídio em campos como Auschwitz não era um tipo especial de alemão. 
Qualquer integrante da Polícia da Ordem podia ser guarda num gueto ou num comboio de transporte de judeus em direção ao morticínio. Todo advogado no Departamento Central de Segurança do Reich devia estar pronto para liderar as unidades móveis onde os detidos eram gaseados. Era tudo considerado uma opção natural para o serviço nos campos de extermínio. Em outras palavras, todas as operações necessárias eram executadas com o pessoal que estivesse à mão.

E, então, como foram esses alemães comuns transformados nos perpetradores do extermínio em massa? Na opinião de Herbert C. Kelman, inibições morais contra atrocidades violentas tendem a ser corroídas se satisfeitas três condições, isoladas ou em conjunto: 1) a violência é autorizada (por práticas governadas por normas e a exata especificação de papéis); 2) as vítimas da violência são desumanizadas (por definições e doutrinações ideológicas); 3) foram expressas repetidas vezes naqueles princípios de ação racional que receberam aplicação universal pelas instituições mais representativas da sociedade moderna.

Há uma disciplina da organização; mais precisamente, a exigência para obedecer a ordens superiores, acima de quaisquer outros estímulos à ação, devotada ao bem-estar da organização, tal como definido nas ordens superiores, acima de todas as outras devoções e compromissos. Dentre estas outras influências “externas” que interferem com o espírito de dedicação e portanto marcadas para a supressão e extinção, as mais destacadas são as opiniões e preferências pessoais. O ideal da disciplina aponta para a total identificação com a organização — que, por sua vez, só pode significar disposição de obliterar a própria identidade separada e sacrificar os próprios interesses (por definição, interesses que não coincidem em parte com a tarefa da organização). 

Em ideologia organizacional, a disposição para esse tipo extremo de auto sacrifício é enunciada como uma virtude moral; na verdade, como a virtude moral destinada a pôr fim a todas as demais exigências morais. A observância altruísta dessa virtude moral é então vista, nas famosas palavras de Weber, como a honra do funcionário público: “A honra do funcionário público está investida na sua capacidade de executar de forma conscienciosa a ordem das autoridades superiores, exatamente como se a ordem expressasse a sua própria convicção. Isso vale mesmo se a ordem lhe parece errada e se, a despeito de seus protestos, a autoridade a mantiver.” Esse tipo de comportamento significa, para um servidor público, “a disciplina moral e a abnegação no mais alto grau”.

 Através da honra, a disciplina substitui a responsabilidade moral. A deslegitimação de tudo que não seja regra interna da organização como fonte e garantia do que é adequado, portanto a negação de autoridade à consciência pessoal, torna-se então a mais elevada virtude moral. O mal-estar que o exercício de tais virtudes pode por vezes causar é compensado pela insistência da autoridade superior de que ela e somente ela é responsável pelos atos dos subordinados (na medida, claro, em que se conformam ao seu comando). 

Weber completou a sua definição da honra do funcionário público dando forte ênfase à “exclusiva responsabilidade pessoal” do chefe, “responsabilidade que ele não pode e não deve rejeitar ou transferir”. Quando instado a explicar, no julgamento de Nuremberg, porque não renunciou ao comando do Einsatzgruppe cujas ações pessoalmente desaprovava, Ohlendorf invocou precisamente este senso de responsabilidade: se expusesse as ações de sua unidade para se ver livre de obrigações que, garantiu, o indignavam, estaria deixando que seus homens fossem “erroneamente acusados”. Obviamente, Ohlendorf esperava que a mesma responsabilidade paternalística que observou em relação a “seus homens” seria praticada por seus superiores para com ele; isso o eximia da preocupação com a avaliação moral de suas ações, que poderia com segurança deixar a cargo dos que o comandavam. “Não creio que esteja em posição de julgar se suas decisões… eram morais ou imorais… Submeto minha consciência moral ao facto de que eu era um soldado e, portanto, um pião em posição relativamente baixa dentro de uma grande engrenagem.”

A administração SS transformava tudo que caía em sua alçada — inclusive as vítimas — em parte integrante da cadeia de comando, sujeito às regras estritamente disciplinares e livre de julgamento moral. O genocídio foi um processo múltiplo; como observou Hilberg, incluiu coisas feitas pelos alemães e coisas feitas — sob ordens alemãs que em última instância remetia ao Führer, embora muitas vezes com dedicação que beirava a desistência de si mesmo — pelas vítimas judaicas. Esta é a superioridade técnica de um extermínio em massa deliberadamente projetado e racionalmente organizado em relação a acessos desenfreados de orgia assassina. 

A cooperação das vítimas com os executores de um pogrom é inconcebível. A cooperação das vítimas com os burocratas da SS foi parte do projeto: com efeito, foi uma condição crucial do seu sucesso. “Um vasto componente de todo o processo dependia da participação dos judeus — tanto os simples atos individuais quanto a atividade organizada em conselhos… Os supervisores alemães buscavam nos conselhos judaicos informações, dinheiro, mão de obra ou policiamento e os conselhos lhes davam tudo isso diariamente.” 

Esse espantoso efeito de estender com sucesso as regras da conduta burocrática, completado com a deslegitimação de lealdades e motivos morais alternativos no geral para abranger as pretendidas vítimas da burocracia, com isso empregando seus talentos e mão de obra na execução da tarefa de sua própria destruição, foi alcançado (muito como na atividade corriqueira de qualquer outra burocracia, sinistra ou benigna) de uma maneira dupla. O cenário externo da vida no gueto foi concebido de tal forma que todas as ações de seus líderes e habitantes só podiam ser “funcionais” para os propósitos alemães. “Tudo que visasse a manter sua viabilidade [do gueto] estava promovendo simultaneamente um objetivo alemão… A eficiência judaica em alocar espaço ou distribuir rações era uma extensão da eficiência alemã. O rigor judeu na taxação ou na utilização da mão de obra era um reforço da severidade alemã; até a incorruptibilidade judaica podia ser um instrumento do governo alemão.”

O cuidado era de tal modo especial que a cada passo do caminho as vítimas eram colocadas numa situação de opção onde pudessem aplicar critérios e ação racional, e na qual a decisão racional invariavelmente concordava com o “desígnio administrativo”. “Os alemães foram notavelmente bem-sucedidos em deportar judeus por etapas, porque os que permaneciam raciocinavam que era necessário sacrificar uns poucos para salvar muitos.” Por sinal, mesmo aqueles já deportados tinham a oportunidade de empregar a sua racionalidade até o fim. As câmaras de gás, sedutoramente chamadas de “banheiros”, eram uma visão bem-vinda depois de dias e dias em imundos vagões para gado. Aqueles que já sabiam da verdade e não alimentavam ilusões ainda tinham uma opção entre uma morte “rápida e sem dor” e outra precedida por sofrimentos extras reservados para os insubordinados. Daí não apenas as articulações externas do cenário do gueto, sobre o qual as vítimas não tinham controlo, eram manipuladas de modo a transformar o gueto como um todo numa extensão da máquina de extermínio; também as faculdades racionais dos “funcionários” dessa extensão eram empregadas para omitir o comportamento motivado pela lealdade e cooperação com os fins burocraticamente definidos.

Sem comentários:

Enviar um comentário