segunda-feira, 16 de maio de 2022

Os primórdios da civilização e da guerra



O ethos das sociedades que começaram a sedentarizar-se pelo desenvolvimento da agricultura, é com efeito um ethos forjado no grupo, que evoluiu entre a caça e a recolecção, de uma forma bastante ambivalente, variando entre o cooperativo e o litigioso. Esta é a narrativa da chamada Civilização Ocidental: "entre o recuo do gelo e o aparecimento da escrita na Suméria, o homem — embora trabalhando ainda com as mesmas ferramentas de pedra — aprendeu, com esforço, de maneira errática e com muitas partidas em falso, as técnicas de limpar o terreno, arar e colher numa meia dúzia de regiões que se tornariam os centros de grandes civilizações.

Evidentemente, não se deu um salto direto do seu modo de vida da era glacial, Idade da Era da Pedra Lascada ou Paleolítica, para a agricultura intensiva. Os historiadores geralmente concordam que o homem começou a domesticar animais gregários sob um certo controlo. Há indícios de pastoreio no Norte do Iraque que datam de 9000 a.C. Os vales dos rios Tigre e Eufrates, Nilo, Indo e Amarelo mostram-nos que houve uma progressão cumulativa da colheita sistemática de grãos silvestres para a plantação e, por fim, para a seleção de melhores variedades. Mas os historiadores não estão de acordo sobre onde e como o homem estabeleceu os primeiros povoamentos agrícolas, o que é compreensível, uma vez que os indícios são tão retalhados. Uma primeira avaliação foi a de que ele escolhera as terras altas dos vales dos rios referidos, mais saudáveis e secas do que o solo mais abaixo, mais pantanoso, onde a limpeza por queimadas podia fazer sucessivas aberturas férteis na cobertura vegetal.

O Neolítico é determinado pelo surgimento de um novo tipo de instrumento de pedra, feito de basalto ou granito pesado e amolado por abrasão — os magníficos machados e enxós polidos. 
Alguns historiadores defenderam a tese de uma revolução: o Neolítico. As demandas da agricultura exigiram novas habilidades de trabalhar com ferramentas ou, alternativamente, novos instrumentos tornaram possíveis o avanço floresta adentro. É certo que instrumentos de sílex lascado provocam pouco dano em grandes árvores, enquanto um machado polido pesado pode derrubar uma árvore quase que de qualquer tamanho. No entanto, o simples determinismo tecnológico dessa teoria não durou muito, embora sugerisse que um padrão ainda mais simples de avanço agrícola teria ocorrido com nossos ancestrais da Idade da Pedra Polida: dos flancos dos morros do Crescente Fértil para as planícies aluviais dos grandes rios, e da queimada para o cultivo sazonal de terras baixas fertilizadas por inundações.

Em Jericó, a 180 metros abaixo do nível do mar, no árido vale do Jordão, os arqueólogos acharam os restos do que, por volta de 7000 a.C., fora uma cidade de três hectares, abrigando entre 2 e 3 mil habitantes, que viviam do cultivo da zona fértil do oásis circundante; suas variedades de trigo e cevada eram importadas de outro lugar, assim como a obsidiana de alguns de seus instrumentos. Pouco depois, em Çatal Hüyük, na Turquia moderna, cresceu uma cidade muito maior, de doze hectares e com cerca de 5 a 7 mil habitantes, levando uma vida de considerável sofisticação. As escavações revelaram a presença de uma ampla variedade de bens importados, supostamente trocados, uma variedade igualmente ampla de bens artesanais produzidos localmente, sugerindo uma divisão do trabalho, e, o que é mais impressionante, vestígios de um sistema de irrigação, indicando que seus habitantes já praticavam uma forma de agricultura que anteriormente se julgava característica apenas dos povoamentos muito maiores e posteriores dos grandes vales dos rios já referidos.

De significação essencial para os historiadores militares é a estrutura dessas duas cidades. Çatal Hüyük é construída com as paredes de fora das casas mais externas apresentando uma face contínua, sem aberturas, de forma que mesmo que um intruso fizesse um furo nelas, ou no telhado, ele “se encontraria não dentro da cidade, mas de uma única peça da casa”. Jericó, de forma ainda mais impressionante, está cercada por um muro contínuo de três metros de espessura na base, quatro metros de altura e cerca de 650 metros de circunferência. No pé do muro há um fosso cortado na rocha de nove metros de largura e três metros de profundidade; dentro do muro, em certo ponto, há uma torre de mais quatro metros e meio que serve de posto de observação e, embora não se projete para fora para formar um flanco, como o fariam mais tarde os bastiões, de plataforma de luta. Ademais, Jericó é construída de pedra, em vez de barro como a de Çatal Hüyük, indicando que se empreendeu um intenso e coordenado programa de trabalho, consumindo milhares de homens. Enquanto a conformação de Çatal Hüyük pode ter sido escolhida simplesmente para afastar os ladrões ou atacantes ocasionais, Jericó é bem diferente em propósito: incorporando dois elementos que iriam caracterizar a arquitetura militar até ao advento da pólvora — o muro de barragem e a torre de menagem —, bem como o ainda mais duradouro fosso, ela constitui uma verdadeira fortaleza fortificada, à prova de tudo, exceto o ataque prolongado com máquinas de cerco.

A descoberta de Jericó em 1952-58 obrigou a uma revisão completa das teorias dominantes sobre quando começaram a agricultura intensiva, a vida urbana, o comércio de longa distância, a sociedade hierárquica e a guerra. Até então, achava-se que tudo isso tinha surgido com a fundação da economia de irrigação na Mesopotâmia e daquelas que se acreditava terem derivado dela, no Egito e na Índia, em algum momento anterior a 3000 a.C. Depois das escavações de Jericó, ficou claro que pelo menos a guerra — pois para que serviriam muralhas, torres e fossos sem um inimigo fortemente armado, bem organizado e decidido? — começara a perturbar o homem muito antes do surgimento do primeiro grande império.

Porém, entre Jericó e a Suméria, não temos traços de como evoluíram os acontecimentos militares. Isso talvez se deva ao facto de que, em um mundo ainda muito vazio, o Homo sapiens estava devotando suas energias antes à colonização que ao conflito. Na Europa, já havia aldeias agrícolas em 8000 a.C. e a agricultura estava avançando para oeste a uma velocidade de cerca de um quilômetro e meio por ano nas zonas mais férteis, alcançando a Grã-Bretanha por volta de 4000 a.C. Houve povoações urbanas em Creta e na costa da Grécia no Mar Egeu em 6000 a.C. e uma cerâmica desenvolvida na Bulgária em torno de 5500 a.C.

Por outro lado, em 4500 a.C. os cultivadores da Bretanha estavam começando a erguer as tumbas megalíticas que ainda hoje homenageiam seus ancestrais. Na mesma época, cinco dos seis grupos étnicos distintos que habitam a Índia estavam estabelecidos, levando um modo de vida da Idade da Pedra Lascada em povoamentos dispersos. E havia uma florescente cultura neolítica nos férteis planaltos do Norte e Noroeste da China em 4000 a.C., baseada no solo de loesse do rio Amarelo. Apenas a Austrália, a África e as Américas continuavam unicamente nas mãos dos caçadores coletores, nunca numerosos, embora os ameríndios vindos da Sibéria, que tinham cruzado o estreito de Behring por volta de 10.000 a.C., trazendo com eles técnicas avançadas de caça da Ásia, tivessem conseguido extinguir os grandes animais de caça do continente, inclusive o gigantesco bisonte e três espécies de mamute, em cerca de mil anos.

Em quase toda a parte, a densidade populacional permanecia baixa. Embora o número de habitantes do mundo tenha passado dos 5 ou 10 milhões em 10.000 a.C. para talvez 100 milhões em 3000 a.C., em pouquíssimos lugares havia alta densidade populacional. Os caçadores precisavam de 2,5 a 10 Km quadrados de território para sustentar cada indivíduo. Os agricultores podiam sustentar as suas famílias em extensões muito menores. Na cidade egípcia de El-Amarna, por exemplo, fundada pelo faraó Akhenaton por volta de 1540 a.C., estimou-se que a densidade era de cerca de duzentos habitantes por quilómetro quadrado de solo produtivo. Isso, no entanto, ocorria nas plantações regadas pelo rico vale do Nilo e, de qualquer forma, muito adiante do período que estamos focalizando. Entre 6.000 e 3.000 a.C., as povoações agrícolas dispersas pela Europa oriental não ultrapassavam o tamanho de 50 a 60 lares; na Renânia, no quinto milénio a.C., os agricultores subsistiam fazendo queimadas nas grandes florestas, abandonando periodicamente e depois reocupando aldeias que nunca abrigavam mais que trezentas a quatrocentas pessoas.

A terra era efetivamente livre para qualquer um que quisesse andar uns poucos quilómetros e queimar alguma floresta — como os camponeses pobres ainda faziam na Finlândia do século XIX. A produção, por sua vez, deveria ser tão baixa que havia pouco que valesse a pena roubar, exceto imediatamente após a colheita, mas as dificuldades de transportar o produto do saque — ausência de animais de tração e transporte, falta de estradas, falta talvez mesmo de recipientes — tirariam o sentido da ação. O roubo, especialmente com violência, somente justifica os riscos envolvidos se a recompensa vier numa forma compacta de valor intrínseco alto. As cargas de navios cumprem esses requisitos, mas não havia navios cargueiros para piratear no quarto milénio a.C.. Os grandes excedentes agrícolas também servem, em particular se estiverem armazenados em pontos de fácil acesso e fuga, e mais ainda se estiverem guardados de forma transportável — em fardos, potes, sacos ou cestas, ou como rebanhos vivos. Então, evidentemente, a terra que é a fonte desse produto da pilhagem torna-se ela mesma um alvo, mesmo que os intrusos não tenham as habilidades para administrá-la, como aconteceria tantas vezes. Nos milénios em que o homem estava a aprender a plantar e colonizar as terras vazias do Médio Oriente e da Europa, havia uma única região que produzia grandes excedentes expostos à predação por vias de acesso que favoreciam os movimentos rápidos. Tratava-se da planície aluvial dos rios Tigre e Eufrates, conhecida dos historiadores antigos como Suméria. É dos Sumérios que temos as primeiras provas seguras da natureza da guerra para percebermos os traços que levaram a humanidade civilizada a perpetuar o instinto da guerra.



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