quarta-feira, 11 de maio de 2022

'Rasputitsa': a guerra obedece às leis da natureza



Na campanha do exército de Hitler na Rússia, no ano seguinte à Blitzkrieg na França, a Rússia oferecia ao invasor, particularmente o mecanizado, liberdade de movimentos. Entre as suas fronteiras de 1941, e as três cidades: São Petersburgo, Moscovo e Kiev, distantes mil quilómetros entre si, o terreno nunca se eleva a mais de 150 metros. Enquanto os rios, que atravessam essa imensa planície quase sem árvores, tendem a correr no sentido da linha de avanço, em vez de atravessá-la. Nada sólido deveria impedir a investida do invasor. Nada sólido a impede. O Dnieper corre para o Mar Negro. Os pântanos do degelo tornaram-se uma importante base de operações dos resistentes soviéticos contra a retaguarda da Wehrmacht. E embora a eficácia dessas operações tenha sido duvidosa, eram uma fonte de intranquilidade persistente do exército alemão à medida que a sua linha de frente na Rússia avançava para leste.




O início do degelo iria deter o avanço soviético, deixando a linha do Dnieper nas mãos dos alemães. E isso de facto aconteceu. Mas com mais frequência a “rasputitsa” trabalhou contra a Alemanha. Foi prolongada na primavera de 1941, atrasando assim por várias semanas decisivas o início da invasão, e novamente no outono, forçando o adiamento do avanço sobre Moscovo. Naquele ano, a chegada tardia dos gelos do inverno, que restauram uma crosta resistente na superfície da estepe, deixou os tanques da Wehrmacht literalmente atolados longe demais da capital para que pudessem assegurar a sua captura na data prevista. A rasputitsa de março e a de outubro revelaram-se bons generais para a Rússia em 1941 e podem, com efeito, tê-la salvo da catástrofe naquele ano. Rasputitsa é uma estação do ano em que viajar em estradas não pavimentadas se torna difícil, devido às condições lamacentas da chuva ou da neve derretida. Na Rússia, o termo rasputitsa refere-se à primavera ou outono, e também refere-se às condições da estrada durante esse período.

O que está claro é que a congruência de fatores operando permanentemente e fatores contingentes – clima, vegetação, topografia e as alterações que o homem fez na paisagem – são de primordial importância no desfecho de uma guerra. O homem e a sociedade são seus objetos e, contudo, a maioria dos seres humanos durante a maior parte do tempo coopera para o bem comum. É, pois, a imprevisibilidade do comportamento humano, sobretudo a do comportamento violento, a título individual e em grupos, que desafia os analistas a fornecer explicações. O indivíduo violento é a principal ameaça à norma de cooperação dentro de grupos, e o grupo violento, a causa principal da rutura da sociedade.

Os estudos sobre comportamento individual e grupal tomam direções diferentes, mas compartilham um terreno comum, ao qual o debate acaba retornando: o homem é violento por natureza ou a sua potencialidade para a violência é condicionada por fatores externos?

Estão em minoria aqueles que insistem em que o homem é naturalmente violento; ainda que muitos não aceitem a analogia, o argumento deles é o mesmo dos teólogos cristãos que defendem a história da Queda e a doutrina do pecado original. A maioria rejeita essa caracterização. Eles consideram que o comportamento violento seja como uma atividade aberrante em indivíduos defeituosos, seja como uma reação a tipos particulares de provocação ou estímulo, inferindo-se daí que, se esses gatilhos da violência forem identificados e mitigados ou eliminados, a violência poderá ser banida das relações humanas.

Em maio de 1986, em um encontro na Universidade de Sevilha, a maioria dos presentes assinou uma declaração, baseada na Declaração sobre Raça da UNESCO, condenando a crença na natureza violenta do homem em termos absolutos. A Declaração de Sevilha contém cinco artigos, cada um deles começando com “É cientificamente incorreto...”. O conjunto de artigos equivale a uma condenação de todas as caracterizações do homem como naturalmente violento. É negado: 1) Que herdamos uma tendência a fazer a guerra de nossos ancestrais animais; 2) Que a guerra ou qualquer outro comportamento violento está geneticamente programado em nossa natureza humana; 3) Que no decorrer da evolução humana tenha havido uma seleção por comportamento agressivo mais do que por outros tipos de comportamento; 4) Que os humanos tenham um cérebro ‘violento’; 5) Que a guerra seja causada por ‘instinto’ ou qualquer motivação isolada.

A Declaração de Sevilha ganhou apoios de peso. Foi, por exemplo, adotada pela Associação Antropológica Americana. No entanto, ela não ajuda o leigo que está ciente de que a guerra tem origens antigas, sabe que povos sobreviventes da “Idade da Pedra”, como os montanheses da Nova Guiné, são indiscutivelmente belicosos, tem consciência de impulsos violentos dentro de si mesmo.

Numa época esperançosa da história da humanidade, uma época de desarmamento efetivo e da adoção do humanitarismo como um princípio nos assuntos mundiais, o leigo busca naturalmente a reafirmação de que os redatores da Declaração de Sevilha estão corretos.

Assim, o sucesso na eliminação da guerra deveria ser idêntico ao sucesso obtido pela humanidade ao longo dos dois últimos séculos na alteração, para melhor, das circunstâncias materiais da vida. Sucesso também nos esforços contra as doenças, a escassez, a ignorância e as condições adversas do trabalho. A história da guerra deveria então ter-se tornado um assunto de antiquários. Infelizmente, não é isso que o leigo observa. E certo tipo de cientistas, como por exemplo antropólogos e sociólogos, só para exemplificar, sentem-se perplexos pelo facto de os leigos cada vez mais não acreditarem neles.

E o imperativo kantiano? Para dizer a verdade, não sabia muito sobre ele, dissera eu ao pobre-diabo do Eichmann. Na Ucrânia ou no Cáucaso, questões dessa ordem ainda não me preocupavam, eu me afligia com as dificuldades e as discutia com seriedade, com o sentimento de que se tratava de problemas vitais. Mas esse sentimento parecia ter-se perdido. Eichmann era um burocrata de grande talento, extremamente competente nas suas funções, com uma envergadura incontestável e um considerável sentido de iniciativa pessoal, mas unicamente no âmbito de tarefas delimitadas: num posto de responsabilidade, em que tivesse que tomar decisões, por exemplo, no lugar de seu Amtchef Müller, estaria perdido; mas como quadro médio teria sido o orgulho de qualquer empresa europeia.

Nunca percebi se alimentava um ódio particular contra os judeus. Simplesmente construíra a sua carreira em cima deles, que se tornaram não somente a sua especialidade, como de certa forma a sua moeda de troca, e, mais tarde, quando quiseram tomá-la, defendeu-a com unhas e dentes, o que é compreensível. Mas poderia igualmente ter feito outra coisa, e, quando diz aos seus juízes que achava um erro o extermínio dos judeus, podemos acreditar nele. Uma vez a decisão tomada, devíamos levá-la a cabo, e disso ele estava bem consciente: afinal, a sua carreira dependia disso. Não era certamente o tipo de pessoa que eu gostasse de frequentar, a sua capacidade de pensar por si só era das mais limitadas, e, ao voltar para casa naquela noite eu me perguntava porque fora tão expansivo, porque penetrara com tanta facilidade num ambiente familiar e sentimental que em geral tanto me repugna.
A despeito de toda a sua cordialidade, eu sabia que ele me considerava um estranho em seu departamento, e portanto uma ameaça potencial à sua autoridade. E pressentia que ele enfrentaria com astúcia e obstinação qualquer obstáculo ao que considerava seu objetivo, que não era homem de se deixar acuar facilmente. Eu compreendia muito bem a sua apreensão diante do perigo colocado pelas concentrações de judeus: mas para mim, caso necessário, esse perigo podia ser minimizado, convinha simplesmente refletir e tomar as medidas adequadas. Por enquanto eu mantinha o espírito aberto, não chegara a nenhuma conclusão, guardava o meu julgamento para quando a minha análise estivesse concluída.

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