terça-feira, 3 de maio de 2022

A Europa que se foi fazendo a seguir ao Império Romano do Ocidente




Império Romano após a divisão criada pelo Imperador Teodósio. Em vermelho, o Império Romano do Ocidente, e em roxo, o Império Romano do Oriente (ou Império Bizantino)

Só foi a partir do Império Romano do Oriente, sob imperador  Justiniano [462 - 565] que governou de 527 até à sua morte, que o Ocidente após a sua queda em 476 com as invasões dos Bárbaros, começou a levantar a cabeça com um exército sob o comando de Belisário e Narses, os generais com os quais Justiniano recuperou o controlo da Itália e do Norte de África. 
O último imperador romano do Ocidente, Rómulo Augusto, foi deposto em 476 por um grupo de mercenários. Poucos territórios (e tropas) restavam ao seu serviço. Os comandantes e chefes que tentavam manter o Estado Romano nos últimos anos também eram, na maioria dos casos, de origem bárbara. Os soldados estavam organizados em unidades que derivavam daquelas das reformas de Constantino no século IV, e não em pesadas legiões de marcha; eram regimentos de infantaria e cavalaria pequenos e independentes que podiam ser combinados da forma que fosse necessária para reforçar as milícias de fronteira. 

No Ocidente, nenhum exército foi revivido para preservar os restos daquela civilização romana pela qual seus destruidores professavam uma grande admiração. Com efeito, o renascimento era impossível, pois a sua base de sustentação, uma tributação regular e equitativa — embora se tivesse tornado muito iníqua no período tardio do Império —, fora destruída. Os reis bárbaros taxavam da melhor maneira que podiam, mas as receitas eram insuficientes para sustentar soldados disciplinados. De qualquer forma, os conquistadores eram profundamente avessos à disciplina, preservando em seu íntimo uma crença teutónica na liberdade do guerreiro e em sua igualdade com os companheiros. Os godos, lombardos e borgonheses haviam sido lavradores antes que a pressão da estepe os empurrasse para o outro lado do Reno. E esperavam viver da agricultura quando chegaram às novas terras. Na Itália, cada um recebeu um terço do lote do morador no qual foi assentado, uma adaptação extorsiva do velho sistema imperial de designar um terço do local de um morador a um soldado acantonado; na Borgonha e no Sul da França, a proporcionalidade foi definida em dois terços. Dessa forma, os soldados se estabeleciam como agricultores indesejados em terras dispersas, desperdiçando as virtudes militares que os tinham tornado tão poderosos no ataque, sem produzir para o governo o excedente regular com o qual se poderia ter reconstruído um exército civilizado, mantenedor da paz.

Ao contrário da Grécia clássica, Roma foi uma civilização da lei e da realização física, não de ideias especulativas e criatividade artística. A imposição de suas leis e a incansável ampliação de sua extraordinária infraestrutura física exigia menos esforço intelectual que energia ilimitada e disciplina moral. Era dessas qualidades que o exército era a fonte última e, com frequência, em particular na engenharia de obras públicas, o instrumento direto. Portanto, era inevitável que o declínio dos poderes do exército — mesmo se provocado tanto por fracassos administrativos e económicos internos quanto por crises militares nas fronteiras — trouxesse consigo o do próprio Império, e que o colapso do exército significasse a queda do Império do Ocidente.

Os reinos que se sucederam no Ocidente não aprenderam quão valiosa era a instituição que tinham destruído e como seria difícil substituí-la. Todavia, a autoridade moral na Europa depois de Roma migrou para as instituições cristãs, firmemente estabelecida graças à conversão dos francos em 496, que transferiu para a Igreja Católica em Roma a continuidade do que restou do Império. 

A história da Europa ocidental no final do século VI e no seguinte é uma triste crónica de conflitos constantes entre casas reais dos reinos sucessores, moderadas apenas quando, no início do século VIII, o primeiro rei carolíngio estabeleceu a sua primazia nas terras francas de ambos os lados do Reno. O surgimento dos carolíngios resultou de uma luta interna, mas também pode ser visto como uma resposta às novas ameaças — notadamente, o avanço dos muçulmanos no Sul da Espanha e da França e os ataques dos Vikings e Saxões. A vitória de Carlos Martelo sobre os muçulmanos em Poitiers em 732 repeliu definitivamente os mouros para o outro lado dos Pireneus. As campanhas de seu neto - Carlos Magno - consolidaram uma linha de fronteira na Alemanha junto ao Elba e ao alto Danúbio e trouxeram o reino italiano dos Lombardos, que incluía a cidade de Roma, para o novo Império fundado com a sua coroação pelo papa Leão III no Natal do ano 800.

A legitimidade de Carlos Magno derivava do reconhecimento pelo Papa de que era o sucessor dos imperadores romanos através de uma descendência fictícia; seu poder dependia de suas forças armadas, que não se assemelhavam de forma alguma ao exército romano, mesmo em seu estágio final de decadência. Os primeiros reis francos, tal como outros soberanos bárbaros, tinham mantido como centro militar de seus séquitos grupos de guerreiros escolhidos com que podia contar para lutar com bravura e a qualquer momento — o equivalente da Cavalaria dos Companheiros de Alexandre. Na época das conquistas, não se colocava o problema de como seriam mantidos e, em tempos turbulentos, viviam improvisadamente. 

Mas quando um reino estabelecia fronteiras, embora mal definidas, e procurava manter a estabilidade em seus domínios, os guerreiros do rei precisavam de uma fonte de sustento mais estável que a pilhagem ou expropriação temporária. A solução foi acomodar os membros do bando de guerra germânico dentro da velha prática romana do precarium, espécie de arrendamento pelo qual os lavradores cultivavam lotes de uma propriedade rural. Na época de prosperidade do Império Romano, um precário era pago em dinheiro; como as desordens dos séculos V e VI tiraram o dinheiro de circulação, o pagamento de arrendamento deu lugar à realização de serviços de vários tipos. Não foi um processo complexo, embora tenha sido gradual, para os adeptos de um soberano, que já lhe deviam uma obrigação pessoal e, em troca, se beneficiavam do seu patrocínio, transformar essa relação em uma na qual se prestava serviço militar em troca do favor patronal. Mas o patrocínio era expresso pela concessão de um precarium. Essa relação atendia a ambas as partes: o vassalo (da palavra celta para dependente) recebia um meio de subsistência. O soberano assegurava-se de seus serviços militares; e o laço entre os dois era selado pela realização de um ato de homenagem que, quando cristianizado pela intervenção da Igreja, ficou conhecido como voto de fidelidade ou lealdade.

O arranjo conhecido por nós como feudalismo, nome derivado do feudum que o patrono concedia ao vassalo, tornou-se a base geral sobre a qual os reis montavam exércitos e a classe militar detinha terras na Europa carolíngia a partir de meados do século IX. Na mesma época estabeleceu-se também que os feudos seriam hereditários dentro das famílias, desde que continuassem a prestar seus serviços. A formalização desses elementos datados do ano 877, quando Carlos, o Calvo, rei dos francos ocidentais e neto de Carlos Magno, decretou na Capitulação de Kiersey que os feudos poderiam passar de pai para filho. Ele já decretara que todo homem livre — o que significava quem tinha terras ou levava armas — deveria ter um patrono ou senhor e que cada homem que tivesse um cavalo, ou devesse ter um, deveria vir montado à assembleia na qual, pelo menos uma vez por ano, o exército seria passado em revista. Quando cada homem passou a ser obrigado a ter um senhor, quando cada detentor de um benefício passou a ser obrigado a servir como soldado montado e quando cargos, benefícios e obrigações militares se tornaram hereditários, o feudalismo estava completo.

O feudalismo carolíngio, apesar da ênfase que colocava na posse de cavalos, não deve ser equiparado ao sistema militar dos nómadas. As terras cultivadas da Europa ocidental não podiam sustentar uma população equina muito grande e os exércitos feudais que respondiam ao chamado às armas não tinham nada em comum com as hordas das estepes. A diferença advinha, em larga medida, da cultura militar diferenciada das tribos teutónicas, que encorajava a luta corpo a corpo com armas afiadas, uma tradição reforçada pelos seus confrontos com os exércitos romanos antes que tivessem perdido o treinamento legionário. Essa cultura fora preservada quando os guerreiros ocidentais passaram a montar e foi reforçada pelas potencialidades do equipamento que vestiam e as armas que usavam montados. A própria sela tornara-se um assento sólido, em parte porque, a partir do início do século VIII, ela se tornou o ponto de fixação do estribo acabado de ser introduzido.

A origem do estribo talvez seja indiana, mas no século V foi adotado pelos chineses e depois pelos povos da estepe, de onde o seu uso migrou rapidamente para a Europa. Sabemos que no Ocidente, a partir do século VIII, o guerreiro montado cavalgava numa sela alta, colocava seus pés em estribos e, em consequência, podia manejar armas e usar equipamentos até então associados exclusivamente ao soldado a pé. É verdade que os persas e depois os bizantinos tinham colocado em campo esquadrões de cavaleiros com armaduras em datas anteriores, mas não sabemos como estavam equipados, nem como lutavam. Mas não há dúvida de que no século IX o cavaleiro feudal da Europa ocidental já usava cota de malha de ferro, levava um escudo e tinha suficiente liberdade com as mãos para manejá-lo junto com uma lança ou espada, em movimento.

Durante o século IX começou uma nova onda de ataques ao Ocidente que não poderia ter sido contida pelas hostes de guerreiros quase sempre a pé, desajeitados e raramente convocados dos reinos. Esses ataques tinham três pontos de origem: 1) as terras islâmicas; 2) a estepe; 3) as costas da Escandinávia. 

A partir das terras islâmicas montou-se um regime de pirataria e espoliação no Mediterrâneo que relembrava o dos vândalos no século VI, dependente do uso dos mesmos portos africanos. Os sarracenos, como ficaram conhecidos no Ocidente os invasores islâmicos, atuavam com toda a liberdade porque, desde a dissolução da frota romana no século V, não havia marinha estatal no Mediterrâneo ocidental para proteger as costas e garantir a segurança no mar. Em 827, a Sicília, que fora amiúde o ponto de apoio para potências agressivas — Atenas, Cartago, Vândalos —, foi ocupada; pouco depois, os piratas estabeleceram bases na ponta da bota italiana e no Sul da França; no século X, a Córsega, a Sardenha e até mesmo Roma foram atacadas. Os sarracenos foram finalmente expulsos da Itália pelos esforços dos bizantinos, a única potência que ainda mantinha uma frota de galeras. Mas isso só aconteceu depois de pilhagens e destruições do Ródano ao Adriático, por vezes bem dentro do continente.

A ameaça das estepes consistia nos magiares que, deslocados para oeste pelo poder crescente dos turcos, apareceram na planície do Danúbio em 862. A partir dali, lançaram uma série de incursões típicas, mas de alcance extraordinariamente longo mesmo para padrões hunos, que em 898 os levaram à Itália, atraindo Berenger, rei da Itália, e seu exército de 15 mil cavaleiros para uma batalha desastrosa junto ao rio Brenta, em setembro de 899. Em 910, confrontaram as tropas gerais dos francos orientais, convocadas pelo último imperador carolíngio, Luís IV, o Infante, perto de Augsburgo, e obtiveram uma grande vitória que lhes permitiu cruzar à vontade a Alemanha nos dez anos seguintes. Henrique I, o Passarinheiro, rei dos saxões e dos francos entre 919 e 936, restringiu gradualmente as depredações dos magiares construindo muitas fortalezas na fronteira oriental, mas mesmo assim eles conseguiram penetrar até à França e Borgonha, em 924 e 926, e apesar de uma derrota em 933 invadiram novamente a Itália em 954. 

Em 955, Oto I, sacro imperador romano, conseguiu reunir finalmente forças suficientes para cercar os magiares. Com um exército de 8 mil homens, a maioria da Suábia, e bávaros, contornou o acampamento dos magiares junto a Augsburgo, que estavam sitiando, cruzou o rio Lech para fechar a linha de recuo deles e esperou o ataque. Os magiares, cuja arma principal era o arco composto e cuja formação tática ainda era a mesma das hordas hunas das estepes, comportaram-se exatamente como Oto esperava. Cruzando o Lech para tentar abrir uma rota de fuga, foram atraídos para uma batalha confusa com as suas costas para o rio, e atropelados até à destruição pelos inimigos encouraçados. Os sobreviventes, dispersos, foram perseguidos pela gente armada do campo.

Os escandinavos, por seu turno, os Vikings, não podiam ser sumariamente expulsos, pois seus ataques se desencadeavam mediante um recurso contra o qual nenhum reino europeu tinha antídoto: o barco de guerra marinho. Os povos das costas setentrionais da Europa eram navegadores aventureiros havia séculos; os romanos tinham mantido uma frota no litoral saxão, na Britânia e na Gália para deter a pirataria dos Vikings. Foi o colapso dessa frota, no século V, que permitiu a anglos, saxões e jutos, vindos da Dinamarca e do Norte da Alemanha, colonizar a futura Grã-Bretanha. O esvaziamento das terras a leste do Reno por via das migrações levou a uma certa acalmia. Mas no final do século VIII a fome de terras na Noruega e na Suécia impeliu os escandinavos a renovar a sua procura por lugares de colonização, para pilhagem e para oportunidades de comércio em termos ditados por eles. Isso ocorreu no preciso momento em que tinham aperfeiçoado um barco que poderia transportar guerreiros a longas distâncias e sobre mares encapelados. As chaves da superioridade do barco longo dos Vikings sobre as outras embarcações da época eram o seu perfil estreito e quilha profunda, permitindo que navegasse à vela para barlavento, junto com a larga secção transversal a meia da nau, que o tornava adequado para ser remado quando não havia vento e abicasse em praia aberta, longe de portos guarnecidos.

Os Vikings, palavra nórdica que significa pirata, estavam entre os povos mais belicosos e resistentes que jamais assaltaram a civilização, com a sua disposição para a luta corpo a corpo intensificada no século de disputas por terras que precedeu a sua era de viagens. A partir do primeiro ataque ao mosteiro de Lindisfarne, no norte da Inglaterra, em 793, os Vikings aventuraram-se cada vez mais longe, surpreendendo Sevilha, na Espanha muçulmana.  
Em 834, devastaram o centro mercantil de Dorstadt, na foz do Reno, Em 859 chegaram ao Mediterrâneo em 859. E em 877 começaram uma invasão do território anglo-saxónico que acabou, na metade do século X, fazendo de toda a região central e Norte da Inglaterra um reino dinamarquês ultramarino. As viagens extensas que por saltos espantosos de navegação, levaram-nos à Islândia e à Groenlândia no século seguinte.

No Báltico, conhecidos como "rus" , passaram a fazer um comércio armado, saindo da Suécia, atravessando o Báltico e descendo pelos grandes rios russos, chegaram ao contacto com os bizantinos ortodoxos e os islâmicos muçulmanos. No Ocidente, os nórdicos, ao mesmo tempo que conquistavam o centro da Inglaterra, colocavam uma cabeça-de-ponte no Norte da França, que em 911 o rei foi obrigado a ceder-lhes um feudo - a Normandia. A partir da aquisição da Normandia, passando a ser conhecidos por normandos, em 1027 estabeleceram-se em Nápoles e Sicília, e em 1066 conquistaram a Inglaterra. 

Os meios militares sozinhos não eram suficientes para deter a devastação provocada pelos vários atacantes dos séculos IX e X. A Europa ocidental tinha necessidade, como a China diante dos nómadas da estepe, de alguma força cultural com que pudesse neutralizar o barbarismo e assimilá-los ao mundo governado. Os sarracenos, devido à sua religião, não podiam ser assimilados. Eles também atacavam e pilhavam, com a garantia moral dos ghazi, que eram guerreiros islâmicos de fronteira. Porém, vikings e magiares ainda viviam no mundo primitivo de deuses vingativos ou distantes a que pertenciam os povos teutónicos e da estepe antes de ouvirem a palavra de Cristo ou Maomé. Portanto, eram pagãos. A Igreja cristã já realizara um extraordinário trabalho de pacificação na Europa ocidental, como foi o caso da conversão dos francos em 496.

A conversão foi muitas vezes imposta pela ponta da espada, mas os cristãos, tal como o inglês Bonifácio, apóstolo dos germânicos, também morreram como mártires no esforço de implantar o Evangelho entre os povos pagãos. Foi pelos mesmos meios que os magiares foram convertidos no final do século X, fazendo da Hungria um bastião de resistência, quer contra as invasões vindas da estepe asiática, quer vinda dos escandinavos. 

Com efeito, a Europa depois do Império Romano, sem o Cristianismo teria sido um lugar bem diferente. Isso não quer dizer que algo não tenha ficado da civilização romana. Mas as instituições civis de Roma eram fracas demais para proporcionar uma base para a reconstituição da ordem e, na ausência de exércitos disciplinados, todo o continente entrou em conflitos endémicos sobre direitos territoriais e tribais. Porém, havia limites ao que a Igreja de Roma podia alcançar em sua obra de pacificação.

No Oriente, os bispos cristãos persistiam na prática de Constantinopla se subordinar ao imperador bizantino. Nas antigas terras cristãs que caíram nas mãos dos muçulmanos, as autoridades religiosas e seculares uniram-se na pessoa do califa. Mas no Ocidente o Papa do Vaticano resistia a essas acomodações. Sucessor de Roma e sediado em Roma, o papado buscou, a partir da queda do Império Romano, estabelecer a distinção entre autoridade religiosa e secular e justificar a subordinação da segunda à primeira. Carlos Magno restaurou o Império Romano, a que chamou Sacro, pela espada, mas o seu título de imperador devia a legitimidade, aos olhos dos papas, à sua coroação por Leão III na Sé de São Pedro.

No século XI a Igreja, pela sua riqueza, faz soar mais alto o seu poder temporal. Tornara-se mais rica e mais confiante em toda a parte. Suas terras, amiúde obtidas por legados caridosos, proporcionavam aos governantes muitos de seus feudos militares; seus mosteiros, igualmente fundados sobre heranças caridosas, tornaram-se centros de uma forte teologia que encontrava os argumentos para reforçar as pretensões papais à primazia. Esses argumentos censuravam o desenvolvimento da prática pela qual imperadores e reis, que designavam ou “investiam” bispos e abades em seus postos, usavam homens dóceis como instrumentos do governo civil, notadamente na convocação e manutenção de forças militares. Os teólogos admitiam com relutância a moralidade do combate quando realizado para impor ou restaurar os direitos legais de um soberano; a advertência de Cristo de “dar a César o que é de César” proporcionava, por extensão, a justificação necessária. Todavia, mantinham que matar e ferir eram pecados pelos quais era preciso fazer penitência.

Depois da batalha de Hastings, em 1066, os bispos normandos impuseram aos seus próprios cavaleiros um ano de preces e jejuns por matar um homem, quarenta dias por ferir —, embora Guilherme, o Conquistador, tivesse lutado contra Haroldo e os anglo-saxões com a aprovação do Papa de sua reivindicação de que buscava a restituição de seus direitos de soberano. No grande “conflito de investidura” entre o Papa Gregório VII e o Sacro Imperador Romano Henrique IV, no século XI, cuja questão manifesta era a da precedência na nomeação de bispos, Gregório não relutou em montar uma aliança de normandos e germânicos para lutar contra o imperador. No entanto, pairava sempre a dúvida cristã de como a bênção de Cristo aos pacificadores podia ser reconciliada com o impulso do homem a cavalo, mesmo quando cavalgava sob a bandeira papal, de ceder à ânsia de sangue quando enfrentava um semelhante de espada em punho.

Era uma questão de consciência que não podia ser evitada na Europa, onde metade da alta sociedade que não trabalhava usava trajes religiosos, enquanto a outra metade usava armaduras e mantinha cavalos de guerra. A classe dos cavaleiros do século XI ainda era tosca e os costumes da cavalaria ainda estavam por vir. Apenas duzentos anos antes, o decreto carolíngio de que “cada homem que tem um cavalo deve vir montado à hoste” tinha “trazido junto com as fileiras da nobreza fundiária uma horda de aventureiros presunçosos cujo principal título para acederem à nobreza [...] era que montavam em um animal nobre”. A Europa continuava a ser uma sociedade essencialmente guerreira. A lei de Deus caía em ouvidos moucos quando o sangue fervia e quando a lei civil não tinha uma jurisdição maior que o poder de um senhor de impor os direitos que o título lhe dava.

Foi, portanto, um alívio para a Igreja e os reis quando, no final do século , a disputa pela investidura foi encoberta por uma nova chamada às armas contra um inimigo comum não cristão. Em 1088 foi eleito papa Urbano II, um monge de Cluny, um dos mosteiros centrais da teologia do poder papal, que tratou imediatamente de restabelecer pela diplomacia as boas relações com o Sacro Imperador Romano. Ao mesmo tempo, começou a pregar que era pecado cristão lutar contra cristão. Em 1095, no Concílio de Clermont, recordou a ideia da Trégua de Deus, o armistício da Quaresma e dias santos, e exortou os cristãos a “deixar de matarem uns aos outros e, em vez disso, travarem uma guerra justa”. Lembrou também seus ouvintes de que, após o desastre de Manzikert, 24 anos antes, os Bizantinos haviam feito um apelo para o Ocidente, para que fosse em defesa da Cristandade no Oriente, que os Turcos muçulmanos continuavam a penetrar nas terras cristãs e que a cidade sagrada de Jerusalém estava em mãos islâmicas. Fez então um apelo para que se montasse sem demora uma campanha para devolvê-la à Igreja. Estava lançada a Primeira Grande Cruzada.

No século X, os muçulmanos da Espanha, sob o comando do dinâmico al-Mansur, tinham conquistado territórios dos pequenos reinos cristãos que sobreviviam no Norte da Península Ibérica, e jovens cavaleiros devotos do resto da Europa, incluindo normandos, italianos e franceses, foram combatê-lo. Para tanto, foram estimulados pelos abades de Cluny, que se interessavam especialmente pelo bem-estar dos peregrinos que iam ao ameaçado santuário do apóstolo Tiago, em Compostela. O patrono da expedição de 1073 foi o papa Gregório VII, um dos protagonistas do conflito sobre a investidura, que ao mesmo tempo que relembrava o mundo de que “o reino da Espanha pertencia à sé de São Pedro.

Assim, os cavaleiros e soldados cristãos foram estimulados pelas autoridades da Igreja a deixar de lado suas pequenas querelas e partir para as fronteiras da cristandade para lutar contra o infiel. Como recompensa de seus serviços, poderiam tomar posse das terras que reconquistassem e receberiam benefícios espirituais. A terra que fosse conquistada tinha de ser mantida, em última instância, sob suserania papal. Embora os grandes príncipes estivessem propensos a ficar de fora, os cavaleiros ocidentais responderam imediatamente ao apelo da guerra santa. Seus motivos eram, em parte, genuinamente religiosos. Estavam envergonhados de lutarem entre si: queriam lutar pela cruz. Mas havia também uma fome de terras a incitá-los, em particular no Norte da França, onde a prática da primogenitura estava sendo implantada. Na medida em que os senhores não se dispunham a dividir suas propriedades e seus cargos, que começavam a se concentrar em torno de castelos de pedra, os filhos mais novos tinham de procurar fortuna noutro lado. Havia uma inquietação geral e um gosto pela aventura na classe cavalheiresca da França, notadamente entre os normandos, separados por poucas gerações de seu passado de pirataria. A oportunidade de combinar o dever cristão com a aquisição de terras num clima meridional era muito atrativo.

Militarmente, os cruzados proporcionam o retrato mais preciso da natureza da guerra europeia no longo interregno entre o desaparecimento dos exércitos disciplinados de Roma e o reaparecimento das forças estatais no século XVI. A guerra dos cruzados era uma peleja estranha que confrontava a tradição do corpo-a-corpo dos guerreiros da Europa setentrional com as táticas evasivas e de fustigação dos nómades da estepe. O califado do Egito, antes de sua usurpação pelos mamelucos, dependia muito da cavalaria ligeira árabe e berbere, que lutava com lança e espada, em vez de arco composto, e portanto competia em termos desiguais com os cruzados encouraçados. Em Ascalon, em 1099, por exemplo, Godofredo, futuro rei de Jerusalém, destroçou um exército desse tipo. Mas com a chegada de Saladino do califado de Bagdá, em 1174, e particularmente depois que Baybars estabeleceu o poder mameluco no Egito, em 1260, foi contra o enxame da estepe que os cruzados tiveram de lançar aquela carga única e definitiva da qual dependia sua capacidade de vencer batalhas e, lutando sempre inferiorizados numericamente, a balança da vitória inclinou-se progressivamente contra eles.

Contudo, fizeram esforços decididos para melhorar sua eficácia contra métodos militares que lhes eram estranhos, notadamente pela incorporação, ao lado de suas forças montadas, de um número significativo de soldados de infantaria que, com armas afiadas, arcos e, por fim, bestas mecânicas, apresentavam uma face feroz aos cavaleiros sempre que avançavam para dividir e alvejar em detalhe um grupo de cavaleiros. Os soldados a pé tinham sido de pouca valia nas guerras contra magiares e vikings e menos ainda nas guerras sobre direitos que eram a obsessão da Europa feudal. Em território europeu, os homens montados efetivamente desestimulavam os sem montaria a portar armas, pois eles poderiam — especialmente se fossem moradores de cidades — defender e até reivindicar direitos não reconhecidos pelos guerreiros. Porém, na Terra Santa, os soldados de infantaria tinham seu valor, especialmente para proteger o carregamento da bagagem sem os quais os cruzados não podiam fazer suas campanhas, bem como os flancos vulneráveis do corpo montado quando disposto em ordem de batalha.

Na Europa, estava-se tornando uma questão de honra para um guerreiro não se esquivar do choque, uma continuação, numa forma elaborada, do código do lutador da falange. Nas cruzadas, o guerreiro ocidental defrontou-se com um adversário cuja tradição era bem diferente e que não via desonra alguma em lutar à distância e manobrar para evitar o golpe crítico. Com o passar do tempo, os cruzados adaptaram-se ao estranho desafio, incorporando um número cada vez maior de soldados de infantaria locais e escolhendo, sempre que possível, de acordo com a prática da região, lutar em lugares onde seus flancos ficassem protegidos por obstáculos. Enquanto isso, os muçulmanos se aproximavam da prática ocidental; há indícios de que no século XIII começaram a imitar a cerimónia ocidental da justa. O velho voto de fidelidade, pelo qual a Igreja celebrara a aceitação submissa pelo vassalo do benefício de um grande homem, foi transformado: agora o cavaleiro prendia-se pelo serviço pessoal ao senhor e jurava não apenas obedecer, mas também se comportar de forma cavalheiresca, o que significava levar uma vida honrada e até virtuosa.

Não demorou muito para que o foco do ideal cavalheiresco fosse transferido, no mundo dos cruzados, da pessoa do senhor para a da própria Igreja. No final do século XII, havia várias ordens monásticas que, embora originalmente dedicadas a obras pias tradicionais como a manutenção de hospitais para peregrinos à Terra Santa e seu bem-estar durante a jornada, estavam assumindo rapidamente uma outra função: a de lutar para defender a própria Terra Santa. Essas ordens de cavaleiros, os Hospitalários e Templários, logo se tornaram um esteio do esforço das cruzadas; além de recrutar e levantar fundos na Europa, construíram grandes castelos na Palestina e na Síria. 
A influência imediata dos Hospitalários e Templários no campo de batalha foi levar outros guerreiros cristãos, como os que lutavam contra os sarracenos na Espanha e os que travavam guerra contra os prussianos e lituanos pagãos, a criar ordens similares. Dessas, a mais importante foi a dos Cavaleiros Teutónicos que fundaram na Prússia conquistada um regime militar de cujas propriedades secularizadas Frederico, o Grande, quinhentos anos depois, recrutou o núcleo de seu corpo de oficiais. Na fundação das Ordens Militares, podemos perceber as origens dos exércitos regimentados que surgiram na Europa no século XVI. Pode-se dizer que a dissolução das ordens monásticas nos países protestantes durante a Reforma levou para os exércitos estatais os soldados laicos, través dos monges guerreiros que se secularizaram. 

As Cruzadas deixaram mudanças no mundo militar europeu que não se apagaram mais. Elas restabeleceram a presença dos Estados latinos (católicos romanos) no Mediterrâneo oriental, não só na Palestina e na Síria, mas de forma mais duradoura na Grécia, em Creta, em Chipre e no Egeu, o que permitiu às cidades do Norte da Itália, em especial Veneza (onde a vida e o comércio urbano não tinham morrido completamente), reabrir um próspero comércio com o Médio Oriente, e mais tarde, com o Extremo Oriente, e reviver o transporte seguro de bens entre portos de todo o Mediterrâneo. O dinheiro que ganharam com isso financiou a maioria das guerras travadas durante o século XV entre elas e, mais tarde, entre a França e os Habsburgo do Sacro Império Romano pelo domínio ao sul dos Alpes. Elas deram um poderoso impulso para fortificar a libertação da Espanha do islão (a Reconquista), bem como a ampliação para leste da fronteira cristã, na direção da Rússia e da estepe. 

Tendo debilitado os bizantinos, nada fizeram para deter o avanço dos turcos otomanos nos Balcãs; no início do século XV, eles já tinham chegado ao Danúbio, conquistando no processo o reino cristão da Sérvia e ameaçando o da Hungria. Em compensação, os cruzados tinham confrontado os reis belicosos da Europa e seus turbulentos vassalos com a ideia de um objetivo mais amplo para a guerra que as querelas intermináveis sobre direitos. Eles reforçaram a autoridade da Igreja em seus esforços para conter o impulso guerreiro dentro de uma estrutura ética e legal e, por mais paradoxal que pareça, ao ensinar à classe cavaleira europeia a disciplina da guerra útil, assentaram os alicerces para a ascensão de reinos efetivos. Com a afirmação do poder central dentro de suas fronteiras, esses reinos deram finalmente à luz uma Europa onde o conflito deixou de ser uma condição endémica da vida quotidiana e se tornou um empreendimento ocasional e, depois, externo.

O desenvolvimento desse padrão teria sido difícil de perceber para os coetâneos dos confusos séculos XIV e XV. Na grande disputa por direitos que levou à Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra (1337-1457), na guerra entre Habsburgo, Wittelsbach e Luxemburgo pela coroa do Sacro Império Romano e dos imperadores para controlar seus súbditos rebeldes da Boémia e da Suíça, e nas guerras das cidades italianas, qualquer ideia de que o domínio social e político, sem falar do militar, do homem a cavalo poderia estar a chegar ao fim teria parecido fantasiosa. Contudo, era esse o caso. A guerra montada entre homens encouraçados, travada na crença de que recuar do golpe na linha de batalha era uma ofensa, não só ao dever, mas à honra pessoal, acabou se revelando tão autodestruidora quanto o código da falange na Grécia antiga. Com efeito, há provas consideráveis de que mesmo em seu auge, no século XV, a guerra entre cavaleiros não era o que parece para nós ou o que seus devotos acreditavam que deveria ser na época. As armaduras cada vez mais pesadas e impenetráveis usadas pelos guerreiros montados (placas em vez de malha depois da metade do século XIV) estavam mais adequadas ao artificialismo das justas que às exigências do campo de batalha. Da mesma forma que a guerra moderna de investidas relâmpago encouraçadas e ataques aéreos precisos atinge a sua perfeição teórica apenas nos campos de treinamento, é bem possível que a armadura brilhante do guerreiro do século XV alcançasse o seu objetivo teórico de proteção diante da lança do adversário em um torneio e não contra uma flecha ou espada no campo de batalha. 

Das três batalhas da Guerra dos Cem Anos, temos conhecimento detalhado: Crécy (1346), Poitiers (1356) e Agincourt (1415). Os cavaleiros ingleses lutaram desmontados e apoiados por arqueiros nos três casos, e o grosso dos franceses desmontou nas duas últimas. Havia a ideia de que cavaleiros encouraçados, cavalgando joelho contra joelho, lanças em riste, em densas ondas de fileiras sucessivas, poderiam ter atacado uns aos outros sem que ocorresse uma catástrofe instantânea para ambos os lados no momento do impacto. Mas a guerra de ferro da Idade Média, tal como a dos gregos, era uma coisa horrível e sangrenta. Pior por sua recorrência e pela coragem sanguinária daqueles que se prendiam a ela. Apesar de todos os altos motivos envolvidos — independência cívica entre os gregos, fidelidade e cavalheirismo com os cavaleiros —, um certo primitivismo ocultava-se sob a superfície. Os gregos lutaram até à exaustão pela lógica de seus próprios métodos. O eclipse do modo cavalheiresco de guerrear teve uma causa externa: a chegada da pólvora. 

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